Na esquina, jamais

É ali que o fantasma do avô paterno está sentado à espera, emborcado em busca de uma última golfada de ar que nunca chega
Ilustração: FP Rodrigues
01/10/2023

Estatelou-se no pedregulho, a poeira como última refeição. A boca retorcida em busca de uma derradeira golfada de ar, a barriga inchada a esmagar as entranhas. O coração instável, o fígado aos pedaços, a vida a esvair-se do corpo apodrecido. Um homem derrotado. Não tenho quase nenhuma lembrança de meu avô paterno, mas ao recordá-lo (algo que não consigo repelir, como se o transformasse em escudo a proteger-me de um fim contra o qual luto bravamente), sempre o vejo feito um animal abandonado ao relento naquelas terras selvagens e um tanto inóspitas. O pai sempre nos contou na infância a história do seu pai, nosso avô, numa circularidade que agora me parece demoníaca. Sem tristeza ou empolgação, desfiava a sombria narrativa: o homem alcoólatra encontrado morto na rua, pouco mais de quarenta anos de vida. Dizem que era um sujeito bonito, esguio e metido a malandro. Da sua fisionomia nada restou. Não há nem uma mísera foto sua em nosso risível álbum familiar.

A pergunta me pegou de surpresa — apesar de não ser novidade: “Pai, por que você não bebe?”. Estávamos sentados à espera de algumas empanadas. A noite espreitava serena pela porta de vidro do pequeno restaurante de um argentino a orgulhar-se de sua gastronomia. Ela, minha filha mais velha, mirava-me com sua beleza irretocável — uma jovem a transpor com as tempestades inevitáveis a fronteira da adolescência. Em breve, será uma linda mulher. Mas ainda guarda certa ingenuidade infantil. Um breve silêncio, um leve esgar numa tentativa de sorriso, o remexer-se na cadeira: tudo para construir uma espécie de resposta definitiva, algo como um epitáfio na lápide de mármore do cemitério esquecido. Poderia contar uma longa história de morte e violência doméstica, mas resumi tudo na única frase de efeito capenga: “Porque, minha filha, as minhas piores lembranças estão aprisionadas numa garrafa”. Talvez para me proteger, a filha de cabelos longos e louros apenas me devolveu um inexpressivo e gentil sorriso. O assunto morreu ali, mas revoluteia em mim feito um demônio aprisionado na garrafa que me acompanha pelos dias de turbulência e ansiedade.

Quando recebi a ligação do meu sobrinho — “O vô (no caso, meu pai) está caído na rua, mas não consigo carregá-lo sozinho.” —, tive certeza de que a maldição familiar dá muitas voltas para acabar sempre no mesmo lugar. Não estava morto, apenas as engrenagens do corpo não davam mais conta de arrastá-lo até em casa. O viço dos músculos definhou juntamente com a vergonha. Na nossa infância, quando o corpo do pai ainda armazenava vigor e fúria, eu e o irmão íamos sempre buscá-lo nas esquinas: vinha aos trancos e barrancos e, perto de casa, entornava feito um animal abatido. A vergonha fincada nos olhos da vizinhança. Nem ligávamos para o falatório previsível, tínhamos medo dos socos e chutes que o pai nos entregava quando a sanha etílica sobrevivia à queda. Sempre preferimos o pai tombado na rua, pássaro abatido pelo bodoque de cachaça.

O pai é um forte se comparado ao seu pai, meu avô. Trambalha, cai, mas não morre. É muito estranha essa nossa dinastia canhestra de alcoólatras. Na garrafa genealógica que construímos há ainda meu irmão, meu sobrinho e eu. Todos homens, todos condenados ao alcoolismo, a cair na rua, a morrer ao relento, carniça farta aos urubus. O pai parece ser o pró É ali que o fantasma do meu avô paterno está sentado à minha espera, emborcado em busca de uma última golfada de ar que nunca chega ximo: é um homem velho, consumido pela bebida, arqueado, fétido, sem forças para evocar uma animalidade que há muito o abandonou. É apenas um espectro à espera de nada. Mas resiste com bravura e certa arrogância. Após dias no hospital, voltou à rotina diária de carregar os trapos de casa ao bar todas as manhãs, após um breve período abstêmico imposto por um médico otimista em excesso.

Diante de mais uma vergonha, prometi: “Não vou mais beber”. Uma promessa de um bêbado contumaz perante à possibilidade de um amor duradouro por uma mulher que não merecia o mesmo destino da minha mãe: sufocada, às vezes, quase até a morte por um marido governado pelo álcool a borbulhar num caldeirão mexido pelo demônio. A promessa, concretizada há mais de vinte anos, gerou a adolescente de olhos azuis a perguntar “Pai, por que você não bebe?”, olhando-me com a certeza de que escondo segredos diabólicos de um passado que muito a envergonharia.

Quando eu chegava bêbado, apenas um menino de 15 anos, a mãe me amparava. Talvez tivesse esperanças de que eu não me transformasse em besta enfurecida. Não brigava, nem dava sermão. Parecia uma mulher resignada com a única herança paterna possível aos filhos. Colocava-me na cama e velava minha embriaguez infantil. Eu e o irmão seguimos cedo os passos do pai em direção ao bar. Afinal, se trabalhávamos desde criança, tínhamos o direito de sermos homens precoces. Se a vida sexual era apenas uma réstia a espreitar em vagabundas revistas, o bar era uma possibilidade concreta: estava ali, a poucos metros de casa, de portas abertas. Naquela época, não havia nenhuma indicação “beba com moderação”, “proibida a venda a menores de 18 anos”. O mundo era um falso oásis à nossa volúpia por transformar os corpos impúberes em homens de verdade, resistentes, independentes e bêbados.

A sina etílica familiar sempre começou cedo. E, para quase todos, segue vida afora, até o derradeiro momento em que o corpo arqueja feito árvore calcinada. Desde quando deixei a bebida trancafiada num calabouço sombrio, luto para afastar-me dos muitos fantasmas ao redor. Mas uma obsessão me enrodilha: angustia-me a possibilidade de morrer em pé. Sim, estar andando e cair morto no meio da rua. Muitos pesadelos já inundaram as madrugadas: eu tranquilamente a caminho de casa e, de repente, a morte a cortar meu passos, o corpo magro e desajeitado a despencar nas encostas da rua, a boca agônica, a morte a arrastar-me para a escuridão. A vergonha final, mesmo sóbrio. E, talvez, alguém a gritar aos meus filhos: “Teu pai caiu morto lá na esquina”.

Quando o garçom depositou as empanadas na mesa, éramos quatro pessoas envoltas no amor que nos une. A água no copo mirava-me com orgulho espantoso. Bebemos e comemos felizes com as boas possibilidades da vida. Mas eu estou sempre de olho nas esquinas. É ali que o fantasma do meu avô paterno está sentado à minha espera, mesmo que não seja de braços abertos, mas emborcado em busca de uma última golfada de ar que nunca chega.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

Rascunho