Insônia

Ali mesmo fazíamos a assepsia dos corpos de muitos ossos e pouca carne, pois a suculência de um tico-tico é apenas um estalo entre os dentes
Ilustração: Raquel Matsushita
03/01/2021

Nem o pavor me fez parar, suspender o gesto final. Meus dedos finos confundiam-se com o graveto a sangrá-la. Quando saí de casa, não tinha a intenção de matar. Levava no bolso do calção a faca de serrinha para catar o mato para a salada — comíamos feito porcos o pouco que a natureza nos entregava. O sol dividia a manhã pela metade. A ronda diária era feita com a eficaz displicência da infância. Bastava percorrer os carreiros sovados, buscar as pequenas clareiras. As arapucas — prisões insignificantes de bambu — estavam meticulosamente armadas. Éramos — eu e meus primos — astutos engenheiros da sobrevivência: todo passarinho saía direto da armadilha para a panela. Não havia maldade: degolávamos as aves no tanque de lavar roupa. Ali mesmo fazíamos a assepsia dos corpos de muitos ossos e pouca carne. A suculência de um tico-tico é apenas um estalo entre os dentes. Em seguida, bastava jogar as carcaças na panela sobre o fogão a lenha. A mãe nem ligava mais para a intrusão na insípida refeição familiar.

De longe, via-se o debater-se frenético — a sanha por liberdade era incapaz de salvá-la. O carreiro bifurcava-se em direção a duas grandes arapucas. A passos apressados, quase uma corrida, larguei o corpo mata adentro. Mesmo à distância era possível ter certeza de que não se tratava de um simples pardal, de uma corruíra desavisada. Só poderia ser uma sabiá do peito vermelho, que tanto perseguíamos, mas que nos ludibriava com facilidade risível. O sol infiltrava-se pelas frestas da mata. A imagem pintava uma falsa serenidade. Logo, teria de voltar a casa com a serralha — um mato amargo e rugoso que fingíamos ser uma espécie de alface selvagem. O chuchu refogado, pedaços de frango e algum passarinho completariam o almoço, cujo cardápio se repetia com desprezível regularidade.

Com uma das mãos acalmei a arapuca, que solitária arranhava a terra úmida. Fazer e armar uma arapuca é simples, algo prosaico a um menino criado com um pé na roça e outro no asfalto. É uma espécie de pirâmide a abrigar farelos para atrair os pássaros — um arremedo de casa de doces da bruxa. Ao menor toque no gatilho (nada mais que um filete de madeira) escondido entre a comida e ciscos, a arapuca desaba sobre o pássaro. Ninguém nos dizia — nem mesmo o padre nas sonolentas missas de domingo — que arderíamos nos confins do inferno devido a nossas caçadas pueris. Caçávamos para comer. Não devia ser pecado saciar a fome na carne possível. Como tínhamos acabado de chegar da roça à cidade grande, matar um pássaro era como pescar um peixe. Só não sabíamos multiplicá-los como fazia o Cristo a que a mãe tanto se amparava. Mas talvez houvesse algum limite na ética bruta que nos guiava.

Deslizei a mão lentamente para baixo da arapuca. Todo o cuidado para não deixar qualquer fresta possível à fuga. Sim, uma sabiá do peito vermelho (ou algo parecido aos meus olhos daltônicos) debatia-se na tentativa da liberdade. Senti o corpo da ave preencher meus dedos de menino. O calor do corpo exalava medo. A maciez contrastava com as bicadas que tentava desesperadamente desferir. Deve ser um pavor pressentir a morte tão perto. Ela sabia que morreria. Eu sabia que a mataria. Só não imaginava que, naquele dia, o inferno estaria de portas abertas a minha espera.

No começo, mesmo na violência da batalha, amparei com certa delicadeza sua agonia. Com as mãos em concha, envolvi a sabiá e disparei a casa. Estava feliz pela caçada. Mas tudo mudou de repente, numa brusquidão assustadora. A bicada violenta a ponto de sangrar minha pele libertou o animal que se alojava em meu corpo de criança. Estaquei feito um cavalo xucro e assustado. A baba despontava nos cantos da boca. De joelhos, conduzi a ave ao chão, entre ciscos, folhas e restos da natureza. Parecia ainda mais desesperada. O graveto transformou-se em adaga. O Cristo pregado no crucifixo no quarto da mãe relampejava em meus olhos. Debateu-se na primeira estocada. As asas em desabalado martírio. Os olhos em fúria. Ambos sabíamos: era questão de segundos e a morte estaria entre nós. Pressionei o graveto com mais força contra o pescoço fino. Aos poucos, lentamente, sentia o sangue misturar-se às penas. O movimento pela vida arrefecia. Poderia tê-la levado ao tanque e cumprido o ritual cotidiano: a tesoura fazia as vezes de guilhotina. O resto era apenas o barulho da água a escorrer da torneira, a diluir o sangue, até que o ralo parasse de sugar a morte. Mas foi ali: no silêncio da mata. A morte na ponta dos meus dedos. A vida escapando num pio inaudível há quase quarenta anos.

É este ruído — um pipiar constante, triste, agônico — que muitas vezes embala minha insônia, enquanto esmago o travesseiro e sinto as penas vermelhas a sangrar.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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