Café dos mortos

A história de Natália e Zé Bonitinho, dois personagens à margem que vagavam sem esperança pelas esquinas de um estranho lugar chamado Santo Inácio
01/02/2022

Nunca soube seu nome. Chamavam-no apenas de Zé Bonitinho — triste alusão a um personagem de certo programa humorístico na tevê. Mastiga o pão com a língua; faltam-lhe os dentes na boca de sorriso infantil, meio débil, mal desenhado no rosto disforme. Os olhos espetados no vazio pintam e aguçam os traços de um homem perdido, sozinho e falante. A loucura a triscar os calcanhares. Talvez não passe de um personagem de Faulkner.

Murmura, enquanto observa, ao lado do caixão, o lamento agoniado e as lágrimas. Não se comove por estar diante do morto; o copo plástico de café na mão direita e o pão na esquerda. Feito um boi preguiçoso, rumina com engenhoso método. Língua a bailar livre, feliz, lambuzada. Respira fundo o cheiro dos crisântemos e admira os tufos de algodão sufocados no nariz do morto. Talvez tenha vontade de tirá-los e lambê-los para descobrir se o gosto fúnebre é o mesmo escondido debaixo das unhas.

É uma lembrança permanente. Há algum tempo, desisti de cemitérios. Simplesmente não vou, não presto homenagens ao cimento ordinário a abrigar a irmã e a mãe — duas mulheres unidas pela desgraça familiar. Não me preocupam os ladrões de bronze do túmulo alheio. É possível que até os nomes femininos da nossa exígua família tenham deixado de existir. Mesmo com minha indiferença fúnebre, Zé Bonitinho segue a percorrer velórios em C. — esta cidade que nos enterra a todos sem pena, pressa ou arrependimento. É comum que o expulsem. Muitos fingem uma raivosa indiferença.

Deixei há muitos anos o bairro onde vivíamos. Raramente retorno. Meu irmão herdou a precariedade da casa familiar. Sua herança tem cupins, traças e goteiras. A minha, apenas lembranças.

Às beatas dominicais, Natália era puta. Talvez não passasse de uma personagem rodriguiana. Bonita não era: caroços lhe tornavam a pele um caminho irregular rumo à perdição. As pernas grossas sustentavam o corpo de proporções vastas e misteriosas. Pontos negros pintavam-lhe os dentes e dos confins da boca saltava o gosto azedo do amanhecer. Estava sempre nas esquinas do Santo Inácio, o bairro que de santo tem apenas o nome e as velhinhas chupando bala de goma com os restos da dentadura. Natália aguardava a vida afagar-lhe a cara, fincar unhas no limite dos olhos e crivar de rugas, pelancas e indiferença todo o corpo. Esperava, acredito, que a morte a arrastasse para o céu. A mãe, agarrada à capelinha da novena, decretava, talvez com aval de seu deus: vai arder no inferno. Desde a infância, sempre tive certa atração pelo inferno. Em parte, por culpa da mãe.

Quando moleque — calção de tergal, cabelo espetado pelo redemoinho e bola de capotão embaixo do braço —, eu passava quase todos os dias na esquina de Natália, como a havia batizado. Jamais tive certeza de seu verdadeiro nome. Tudo, aos meus olhos de menino, era um grande mistério. Ela, com as reentrâncias gastas, sempre ali estava, alisando o cabelo de geometria imprecisa com as unhas compridas e mal pintadas. Parada, olhava-me de relance a passar rápido, arisco qual rato a atravessar a sala de jantar. Da outra esquina, observava os gestos desajeitados de Natália. Ela sempre esperava por alguém.

Natália e Zé Bonitinho dividiam o mesmo espaço urbano: o Santo Inácio. Eram seus personagens. Todos fingiam ignorar-lhes. O louco e a puta. “Vagabunda, desgraçada, cadela no cio.” Era odiada pelas mulheres, falsamente ignorada pelos homens e amada por nós, os meninos — míseros amantes na palma da mão. Eu a amava em todos os meus sonhos, mas a timidez que dominou minha infância impedia-me de tentar tocar-lhe a carne áspera. “Lá vai o louco.” Faltava muita criatividade aos filisteus. Eram cheios de lugares-comuns. Nunca os ignorei. Acompanhei-os com a avidez da imaginação infantil.

Ao velório da minha mãe, Zé Bonitinho não foi. Ou, pelo menos, não o vi. Teria um banquete a sua espera. O pai — possivelmente no afã de pagar pelos hematomas causados à esposa ao longo da vida — encarregou-se do farnel: um saco de pão e fatias de mortadela formavam a última ceia, sem nenhum apóstolo à mesa. Nada mais triste do que velório de pobre.

Num início de tarde, não vi Natália. Apenas o poste, solitário. O vazio daquela esquina atravessou-me e senti pela primeira vez uma saudade inesquecível. Voltei para casa com o kichute novo reluzindo nos pés e a bola acariciada nas mãos. Quando o pai chegou do trabalho, fiquei sabendo da história. Saiu nos jornais. O burburinho cortava as ruas do Santo Inácio, que teimava em negar sua santidade. Naquele domingo, Natália colocou o surrado vestido. Foi ao bailão sacolejar o corpo e, quem sabe, tentar esquecer que era triste. Na volta, acompanhada de um homem que nunca se soube quem era, caminhou em direção ao campinho de futebol do Tanque Velho. Ninguém sabia explicar o absurdo nome para um time de futebol. No vestiário apertado, Natália e o homem estiraram os corpos e esqueceram líquidos esparramados pelo chão poeirento. No silêncio da escuridão, ouviu-se um gemido; bem longe, perdendo-se nas esquinas visitadas por Natália.

Na segunda-feira pela manhã, encontraram o corpo. O olhar sem direção, o rio de sangue e o corpo pregado no chão pintavam uma triste figura. No jornal popular: “(…) 21 facadas”. Quem as contou apontara o dedo para cada uma delas? A foto em nada lembrava o corpo de Natália. Não tive tempo de percorrê-lo como a violência das facadas que naquele domingo o tornaram um pouco mais inesquecível.

Não sei se Zé Bonitinho foi ao velório de Natália.

Rogério Pereira

Nasceu em Galvão (SC), em 1973. Em 2000, fundou o jornal de literatura Rascunho. É criador e coordenador do projeto Paiol Literário. De janeiro de 2011 a abril de 2019, foi diretor da Biblioteca Pública do Paraná. Tem contos publicados no Brasil, na Alemanha, na França e na Finlândia. É autor dos romances Antes do silêncio (2023) e Na escuridão, amanhã (2013, 2ª edição em 2023) — finalista do Prêmio São Paulo de Literatura, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) e traduzido na Colômbia (Babel Libros) — e da coletânea de narrativas breves Toda cicatriz desaparece (2022), organizada por Luiz Ruffato.

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