Zumbi saldo, de Elisa Lucinda

Poemas de Elisa Lucinda são marcados pelo tom coloquial, oralizante, direto, referencial
A poeta e atriz Elisa Lucinda
27/01/2017

Zumbi, meu zumbi.
Hoje meu coração eu arranco
Zumbi hoje eu fui ao banco
E ainda estou presa
Escuto os seus sinos
e ainda estou presa na senzala Bamerindus
Presa definitivamente
Presa absolutamente
à minha conta
corrente.

O poema Zumbi saldo pertence ao primeiro livro de poemas da capixaba Elisa Lucinda, O semelhante, publicado em 1995. De lá para cá, a poeta-atriz lançou outros livros e veio consolidando uma trajetória marcada pela militância em questões relacionadas à vida das mulheres, dos negros, dos desfavorecidos e divulgando, em grandes centros, o estado do Espírito Santo, em particular a bela e bucólica vila de Itaúnas. Seus poemas, em geral bem mais longos que Zumbi saldo, se marcam pelo tom coloquial, oralizante, direto, referencial, que facilita a declamação e seduz os espectadores de shows de poesia.

Os dez versos, apesar de polimétricos (de duas a treze sílabas), têm uma cadência, conseguida basicamente por efeito de rimas, repetições vocabulares e jogos aliterativos. Há rimas em arrAnco / bAnco; prEsa / definitivamEnte / absolutamEnte / corrEnte; e ZumbI / sInos / BamerIndus, restando o penúltimo verso como um verso branco, embora os sons da palavra “conta” (à exceção da vogal a, átona) retornem no verso derradeiro — “corrente”. As repetições, em poema tão curto, de “Zumbi”, “hoje”, “eu”, “ainda”, “presa” e do sufixo “-mente” colaboram para a cadência da leitura. Mas, mais que tudo, impõem-se as aliterações nasais, presentes em todos os dez versos, dando um andamento harmonioso — a despeito do “conteúdo” — ao poema. É bem possível que esse choque, entre a harmonia sonora e o teor e desfecho do poema, produza certa (desconfortável) sensação de humor, se não mesmo algum movimento de riso.

Tal estrutura sonora sustenta, como se vê, uma espécie de comparação entre a senzala de outrora e a senzala contemporânea, representada, sem subterfúgios, na nomeação direta de uma rede bancária (já extinta, porque incorporada a alguma outra rede). O conglomerado financeiro funciona como uma espécie de metáfora dos grilhões que prendem o/a poeta: ter dinheiro, ter saldo, pertencer ao sistema produtivo é o que importa, é o que pode fazer o cidadão sentir-se efetivamente livre. A quebra na passagem do penúltimo para o último verso (“à minha conta / corrente”) constitui um caso de ambíguo enjambement, pois o verso derradeiro completa, sim, o sentido do anterior, mas tem, também, sentido avulso, autônomo: o sintagma “conta corrente” significa, em síntese, um serviço do banco para guardar e movimentar dinheiro, é uma “conta vigente”; mas — no contexto em que Zumbi é evocado e se fala de prisão, sinos e senzala — nos versos “conta / corrente” a “corrente” ganha valor substantivo e impõe um sentido radicalmente crítico: a conta é ancestral corrente, grilhão, argolas de ferro que prendiam os escravos, até há bem pouco tempo.

Em Interesse pelo corpo, um dos excertos de Dialética do esclarecimento, Adorno e Horkheimer falam sobre as diferentes formas de sofrimento a que o corpo foi levado ao longo da história. Afirmam que passa pelo corpo a dominação que, socialmente, se concretiza na desigualdade econômica entre as classes. Nesse texto, dos anos 1940, articulam uma análise que, de modo algo surpreendente, se ajusta aos dias que correm: “Quando a dominação assume completamente a forma burguesa mediatizada pelo comércio e pelas comunicações e, sobretudo, quando surge a indústria, começa a se delinear uma mutação formal. A humanidade deixa-se escravizar, não mais pela espada, mas pela gigantesca aparelhagem que acaba, é verdade, por forjar de novo a espada”. Tal “gigantesca aparelhagem” atende, no poema, pelo nome “Bamerindus”. Há, entre tantos, dois números exorbitantes: de um lado, o lucro estratosférico dos bancos; de outro, a população imensamente miserável, endividada, refém de agiotas profissionais: os bancos e demais instituições afins. A sequência reiterada de “estou presa”, “estou presa”, “Presa definitivamente” e “Presa absolutamente” (quatro de dez versos) mostra o caráter dramático, agônico de uma situação terrivelmente opressora. A espada, apontaram os filósofos alemães, muda de forma. A corrente, percebe a poeta, também. O corpo sofre — “Meu coração eu arranco” — para (tentar) dar conta de tanta exploração.

O poema de Elisa Lucinda mobiliza uma série de questões. Desde o título, e dentro do poema, Zumbi — símbolo da luta pela liberdade — é chamado a testemunhar, séculos depois de sua morte (e com o corpo esquartejado à mostra como lição para possíveis revoltosos), o triste “saldo” de tanta luta: “ainda estou presa na senzala Bamerindus”. O saldo, aqui, possui (como “corrente”) duplo sentido: pensado em relação à luta dos negros quilombolas, escravizados, assassinados, significa a herança, a resistência, a militância; no jargão bancário, saldo é o que resta quando confrontados débito e crédito. Em ambos os casos, o saldo não é nada bom: a senzala se institucionalizou em forma de gigantescas aparelhagens capitalistas de abuso e desmando econômico, chamadas bancos; e, pode-se deduzir, estando definitiva e absolutamente presa à conta que acorrenta, o saldo deve ser, como o da maioria da população brasileira, ínfimo ou negativo.

Ao trazer para os versos um eu lírico feminino, a poeta amplifica o quadro de opressão sobre o sujeito que fala no poema: é negro (basta a evocação a Zumbi, sem necessidade de “biografar” a autora), é mulher (veja-se o adjetivo “presa”), é pobre (conforme o saldo que se lamenta) e, como arremate, é poeta. É como poeta, no entanto e sobretudo, que essa mulher se manifesta e faz de sua voz singular uma voz a mais no coletivo dos descontentes. Voz feminina que, só em terras capixabas, reúne poetas de gerações distintas, como Deny Gomes e Suely Bispo, Mara Coradello e Josely Bittencourt, Renata Bomfim e Silvana Pinheiro, para ficar em poucos nomes.

No início dos plúmbeos e autoritários anos 1970, Jorge Ben lançava a canção Zumbi, em que fala que “Há um grande leilão/ Dizem que nele há/ Uma princesa à venda/ Que veio junto com seus súditos/ Acorrentados em carros de boi”: a imagem da brutal animalização e coisificação do homem se agudiza no registro de homens negros — tornados escravos à força, sequestrados de suas terras à base de armas e mortes — “acorrentados” e misturados aos bois, como se bois fossem. A canção de Ben Jor e o poema de Lucinda evocam Zumbi para que a resistência e a transformação ganhem força e concretude. A corrente de ferro de antes se perpetua agora em conta corrente bancária. A comparação entre as “correntes” não quer jamais suavizar toda a dor, todo o drama e todo o sofrimento da escravidão. Quer apenas, a partir do poema Zumbi saldo, de Elisa Lucinda, chamar a atenção para as modernas formas de exploração, que têm gigantescas aparelhagens em pleno funcionamento. Com versos e canções, com práticas mais justas e éticas, com melhor e mais digna distribuição de renda, com liberdade e educação para a autonomia, com reformas rigorosas tendo a revolução no horizonte do possível, talvez consigamos um saldo muito, muito mais favorável. Eu quero ver, eu quero ver, eu quero ver.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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