Zen, de Pedro Xisto

Obra-prima do poeta pernambucano nos faz repensar a máxima mallarmaica de que um poema não se faz com ideias, mas com palavras
01/12/2020

Hoje em dia, e faz tempo, quando se diz que “fulano é zen”, subentende-se que o tal fulano é uma pessoa tranquila, meditativa ou mesmo algo lunática. São noções estereotipadas, que expressam um tipo de entendimento que certa sensibilidade ocidental dirige à atitude zen-budista, uma “escola” que, da China, passa ao Japão a partir do século 12 e aí encontra solo farto para sua expansão. Um famoso koan zen conta que um discípulo insistia junto ao mestre querendo saber “o que era o zen”. O mestre, em vez das lendárias pauladas, mantém silêncio. De repente, o obcecado aluno cai num abismo, ficando com os dentes agarrado a um galho apenas. O mestre então lhe pergunta: pode me dizer o que é o zen?

Esse poema do pernambucano Pedro Xisto (Limoeiro, 1901; São Paulo, 1987), desacompanhado do título, se assemelha à pergunta do mestre: é necessário concentração e paciência para se chegar a ele, para “interpretá-lo”, para ver na figura rigorosamente geométrica as letras que ali se abrigam. Faço, com frequência, esse exercício em sala de aula, e bem poucos são os alunos que resolvem a charada poética. Mesmo depois que informo o título, muitos ainda não conseguem ver que, lembrando Drummond, “sob a pele das palavras há cifras e códigos”.

Aparentemente, nada mais oposto à filosofia zen do que o rigor cartesiano que caracteriza a Poesia Concreta brasileira. O lúdico aparato “verbivocovisual” persegue uma isomorfia construtora, tendo como pilar a geometrização paratática de seus elementos constituintes, isto é, a utilização premeditada do espaço de modo a possibilitar probabilidades combinatórias de coordenação (como no famoso Tensão, de Augusto de Campos). Essa calculada estrutura concretista parece se contrapor ao modus operandi da maneira zen.

Se, de um lado, o zen segue um caminho anticonceitual, para que o pensamento não se submeta a um objeto, e o sujeito flua, assim, numa espécie de “grau zen da linguagem” (parodiando Barthes), de outro, a poesia visual precisa se organizar em esquemas rígidos de construção para que o aleatório não se imponha e para que o cálculo ganhe primazia. Ambos, no entanto, concisos e gestálticos, fogem ao paradigma metafísico e buscam num só espaço-tempo o alcance daquilo que, sem dúvida de modo diverso, desejam: que o sujeito seja o ponto de passagem por onde o transverbal icônico se manifeste — no zen, em elementar silêncio; na poesia visual, em imagem-coisa.

Publicado no livro Logogramas, de 1966 (e depois em Caminho, de 1979), Zen pertence a uma fase posterior ao concretismo inicial. Na década de 1950, em termos estéticos, ressaltam a decretação — retórica — do fim do verso frásico e a predileção por múltiplos arranjos espaciais. Em termos históricos e culturais, o poema encena precisamente a presença no Brasil, e ademais no mundo, dessa forma mentis oriental. Em Poética e visualidade: uma trajetória da poesia brasileira contemporânea, Philadelpho Menezes inclui essa obra de Xisto no subcapítulo Poesia semiótica: design de signos ou chaves léxicas? e sobre ela argumenta:

O casamento perfeito entre o design do signo verbal, sua sintaxe e sua semântica, se dá no poema “ZEN” (…) a leitura linear da palavra “zen” é substituída pela visão de conjunto geométrico da forma plástica, nos remetendo à imagem de um templo oriental visto de frente, ou sugerindo, pela conformação rigorosamente simétrica, a estrutura do pensamento oriental desenvolvido sobre a composição dos opostos complementares, a simplicidade na formulação e a própria escrita chinesa, ainda haja parcialmente pictográfica.

Cabe ao leitor, à frente desse poemagem (ou poiezen), ver com oswaldianos olhos livres, para, nesse gesto gestáltico, captar na série de traços rigidamente simétricos a combinação de figuras geométricas e, nela, a inscrição — como se num palimpsesto de uma só superfície — da palavra “zen”.

No grande retângulo que circunscreve o poema, há três quadrados, sendo que o quadrado do meio é composto, por sua vez, por dois retângulos menores; os quadrados laterais se subdividem, cada um deles, em dois triângulos isósceles. A perfeição do equilíbrio e do tamanho das linhas sugere que o poema funciona como uma máquina arquitetural na qual o sujeito se dilui. Dizendo de outro modo, é como se o esforço do sujeito criador quisesse levar a linguagem a um ponto em que ele, sujeito, se subsuma no objeto criado. (Tal atitude, francamente zenista, lembra o célebre lance de Michelangelo, que, quando perguntado como conseguira esculpir tão perfeito “Moisés” do bloco de pedra, teria respondido: “Tudo que fiz foi tirar o excesso”.) Refazendo o périplo: mesmo onde não se cria estar — ou seja: numa lógica estritamente matemática –, o “efeito zen” pode surgir, pois como disse Suzuki, no clássico Introdução ao zen budismo, “O zen é o ar, o zen é a montanha, o zen é o trovão, o zen é o raio, a flor primaveril, o calor do verão, o frio do inverno; mais do que tudo isso, o zen é o homem”. Homem que, em estado-zen, devém ar, montanha, trovão — poema.

Para ler e ver a palavra “zen” dentro da escultura gráfica verbivisual que a comporta, é necessário desprendimento e concentração para decupar o poema, como se composto por fotogramas, “isolando” os traços e linhas que compõem as letras “Z”, “E” e “N”. Gonzalo Aguilar confessa, em seu fundamental Poesia concreta brasileira: as vanguardas na encruzilhada modernista, a dificuldade que teve para decodificar Zen:

Devo reconhecer, ainda correndo o risco de parecer demasiado inepto, que me custou bastante encontrar a palavra “zen” neste “texto” de Xisto e que a encontrei quase distraidamente. O esforço em compreender (mal dirigido) só reforçou a minha percepção habitual.

A descoberta da palavra sob a pele que a re/vela já é em si uma epifania, uma revelação, um zênite.

A esse olhar abstrato que “vê diretamente para dentro das coisas, sem pensar nem refletir”, Kenneth David Jackson nomeou exatamente de “olhar zen”. Comentando, a propósito, o poema de Pedro Xisto dirá que, ali, “além do seu equilíbrio e a coincidência entre as letras e a forma geométrica, a imagem é palíndroma, caindo sobre si mesma, como se se anulando; a estrutura reforça e libera a palavra ‘ZEN’, agora vista como ideia ou conceito e não apenas palavra ou grafia” (ver Augusto de Campos e o trompe l’oeil da poesia concreta, em Sobre Augusto de Campos, organizado por Flora Süssekind e Júlio Castañon Guimarães).

No poema de Pedro Xisto, as linhas e figuras geométricas que “escondem” a palavra “zen” — descoberta pelo insight visual que o leitor é levado a experimentar, induzido pelo título — são o retângulo, o quadrado e o triângulo (logo: linhas retas). Por isso, vem sendo objeto constante de questões vestibulares, como na Fuvest 2011, em que se deve assinalar a alternativa correta entre, por exemplo: “O equilíbrio e a harmonia do poema ZEN são elementos típicos da produção poética brasileira da década de 1960. O perímetro do triângulo ABF é igual ao perímetro do retângulo BCJI”; ou: “O concretismo poético pode utilizar proporções geométricas em suas composições. No poema ZEN, a razão entre os perímetros do trapézio ADGF e do retângulo ADHE é menor que 7/10”. Essa apropriação do poema pela “disciplina matemática” se conecta com o que diz Umberto Eco em seu artigo Zen e Ocidente, pensando o apelo oriental para nós e aquilo que, aqui, fazemos:

(…) o Ocidente, mesmo quando aceita com alegria o mutável e recusa as leis causais que o imobilizam, não renuncia a redefini-lo através das leis provisórias da probabilidade e da estatística, pois — ainda que nessa nova e plástica acepção — a ordem e a inteligência que “distingue” são sua vocação.

Entre o fetiche de um mitificado zen — promessa de felicidade e abolição do sofrimento — e o fato de sermos, para o bem e para o mal, demasiadamente ocidentais e logocêntricos, essa obra-prima de Pedro Xisto nos faz repensar a máxima mallarmaica de que um poema não se faz com ideias, mas com palavras. Porque, aqui, em ZEN, a palavra deve ser desentranhada da ideia, de seu “dezenho”. (É, como vimos, o que os críticos dizem.)

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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