A voz de minha bisavó
ecoou criança
nos porões do navio.
Ecoou lamentos
de uma infância perdida.
A voz de minha avó
ecoou obediência
aos brancos-donos de tudo.
A voz de minha mãe
ecoou baixinho revolta
no fundo das cozinhas alheias
debaixo das trouxas
roupagens sujas dos brancos
pelo caminho empoeirado
rumo à favela.
A minha voz ainda
ecoa versos perplexos
com rimas de sangue
e
fome.
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.
A voz de minha filha
recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem — o hoje — o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
o eco da vida-liberdade.
Este talvez seja o mais conhecido poema de Conceição Evaristo. Há, de fácil acesso, algumas análises e reflexões sobre ele e a partir dele. Publicado originalmente em Cadernos negros, de 1990, reaparece no livro Poemas da recordação e outros movimentos, de 2008. Seu tom didático, aguerrido, consciente, crítico e esperançoso explica, em parte, a empatia e a emoção que provoca no leitor, que — negro ou não, mulher ou não, pobre ou não — com ele se identifica, se solidariza. O leitor repete, de certo modo, o movimento que faz o poema, ao colocar a voz do “eu lírico” como porta-voz de uma comunidade que inclui mas ultrapassa a sua existência particular. Este leitor, com alguma sensibilidade, há de se envolver com a história do drama dos afrodescendentes, e ele mesmo se tornar uma voz a multiplicar o poema a outros leitores.
A obra da escritora mineira vem se destacando no cenário de nossa literatura, aliando rigor e militância, engenho ficcional e compromisso ético. Suas narrativas articulam uma complexa gama de valores culturais da ancestralidade negra, sem deixar de entender e apontar as motivações históricas da desigualdade, da opressão, da escravidão. E a história que se conta em Vozes-mulheres pertence a esse conjunto de obras de arte que têm no horizonte a tentativa de despertar nas pessoas o sentimento de que tais condições bárbaras e desumanas, se jamais deveriam ter existido, jamais deverão se repetir. Os 32 versos se distribuem em seis estrofes que, sem cessar, nos lembram disso, a partir da repetição dos signos do “eco” e do “recolhimento”, por nove vezes, mesmo número do signo “voz”. Em mais da metade dos versos, portanto, alguma variação de voz, eco e recolhimento se inscreve, pontuando uma constante postura ativa ao longo do tempo, mesmo em face das terríveis adversidades do cativeiro.
O poema é testemunho de uma história que vem do período da escravidão (bisavó) ao tempo atual (filha), projetando um futuro redentor (vida-liberdade) para o povo negro oprimido, coisificado, animalizado pelos “brancos-donos de tudo”. A corrente-eco que há de quebrar a corrente-prisão se fará de geração a geração, de estrofe a estrofe, pela resistência (difícil, sofrida) da voz, do eco: ecoou, ecoou, ecoou, ecoou, ecoa, eco. A transformação também se faz aos poucos, dorida sempre, mas marcando em cada etapa um avanço rumo à liberdade, ao respeito, à humanidade. A “infância perdida” da bisavó, metonímia de uma vida inteira perdida, se transmuta em “obediência” da avó, mas já entre a senzala e a casa-grande do sinhô branco; daí, a “revolta” se avoluma na voz da mãe lavadeira e favelada na cidade pós-escravidão (de fato, Conceição nasceu em uma favela, filha de uma lavadeira); a filha da mãe lavadeira elabora os “versos perplexos” em vista, “com rimas de sangue/ e/ fome” (o destaque visual indica a imensa gravidade da questão); a filha da escritora emblematiza a continuidade da luta, em patamar de civilidade e dignidade, e para tanto deverá reunir “a fala e o ato”, a teoria e a prática, ou seja, há “um desenvolvimento da própria resistência gerada pelas vozes — do lamento ao medo, do medo ao sussurro, do sussurro ao fazer poético, a elaboração da linguagem, e disso à ação”, conforme assinalam Nelci Silvestre e Alba Feldman (ver também textos de Ana Claudia Duarte Mendes e de Camila de Matos Silva e Sávio Freitas, entre outros).
Na obra de Conceição Evaristo se dá a ver a história da dor do povo negro. No conhecido conto que dá título ao livro Olhos d’água, e em outras narrativas, também — feito o poema — a força da geração e das vozes se manifesta. Nessa direção, dirá Adorno em Teoria estética que “as obras de arte não recalcam; mediante a expressão, ajudam o difuso e o flutuante a entrar na consciência”, ou seja, um poema, não sendo sociologia ou psicanálise ou história em sentido estrito, colabora intensamente para que o cidadão, o leitor possa entender a sociedade, a cultura, o mundo ao qual pertence. Com Vozes-mulheres, recordamos que existiram (a) inabitáveis porões de navio em que escravos eram transportados como cargas a vender; (b) toneladas e toneladas de “roupagens sujas dos brancos” que, cúmplices entre si, exploraram outros homens e do trabalho (nada ou muito mal remunerado) e do sacrifício deles se enriqueceram; (c) “vozes mudas caladas/ engasgadas nas gargantas” que, dia a dia, década a década, século a século, tentaram se fazer ouvir, mas em vão: só no Brasil, cerca de cinco milhões de africanos foram trazidos à força, vendidos, escravizados, e milhares faleceram nos próprios porões, sendo jogados ao mar, coisas descartáveis. Aquilo que pode estar “difuso e flutuante” poemas como este de Conceição ajudam “a entrar na consciência”.
Há quem, ainda, relativize, diminua, suavize essa trágica história dos negros no mundo (ou do trágico genocídio indígena). Nenhum poema há de reparar o mal, o trauma, a vergonha, a dor, a morte. Mas um poema pode, ao pensar em versos “O ontem — o hoje — o agora” de um povo, ampliar o coro de vozes, que a voz da filha na última estrofe já reúne. Esse acúmulo de sofrimento (inimaginável por qualquer discurso ou por qualquer forma artística) gerou, à custa de milhões e milhões de vidas, uma consciência que deve juntar “a fala e o ato”. Por isso, Eduardo de Assis Duarte diz que “Essa presença do passado como referência para as demandas do presente confere à escrita dos afrodescendentes uma dimensão histórica e política específica, que a distingue da literatura brasileira tout court”. Há uma forma de dizer desse sofrimento, e essa forma Conceição chama de “escrevivência”, indicando o caráter inextricável de vida e escrita.
Daí, com precisão, no poema, aparecem três palavras compostas, unidas pelo hífen: “vozes-mulheres”, “brancos-donos” e “vida-liberdade”. A expressão que dá título ao poema concentra a força do feminino, da coletividade, da comunidade, da solidariedade; em “brancos-donos” o hífen reforça o lugar de poder, de proprietários a que este grupo se arrogou (lugar que ainda no século 21 alguns grupos racistas e “suprematistas” querem perpetuar, à base da violência bélica); com “vida-liberdade” se evidencia o princípio da escrevivência, pois a poeta amalgama dois substantivos que sinalizam, mais que uma utopia, um desejo de realidade. Para que essa realidade se efetive, entre “outros movimentos”, é necessário, em âmbito institucional, que haja políticas concretas nessa direção, que impeçam a repetição de uma história de “sangue e fome”; e em âmbito subjetivo (uma micropolítica do cotidiano) que somemos nossas vozes às vozes dessas mulheres, que nosso som amplifique o coro da ressonância, que sejamos — mesmo na diferença de classe, raça, gênero — a filha: a fala e o ato.