Quem sou eu? De onde venho e onde acaso me leva
O Destino fatal que os meus passos conduz?
Ora sigo a tatear mergulhado na treva,
Ou tateio, indeciso, ofuscado de luz.
Grão, no campo da Vida, onde a morte se ceva?
Semente que apodrece e não se reproduz?
De onde vim? Da monera? Ou vim do beijo de Eva?
E aonde vou, gemendo, a sangrar, de pés nus?
Nessa esfinge da vida a Verdade se esconde.
O espírito concentro e consulto a razão.
E uma voz interior, sincera, me responde:
— Quem és tu? Operário honesto da nação.
De onde é que vens? De casa. Onde é que estás? No bonde.
Para onde vais? Não vês? Para a Repartição.
Provavelmente, poucos leitores saberão quem é, quem foi Bastos Tigre. Nasceu em Recife, em 1882, e em 1957, aos 75 anos, faleceu no Rio de Janeiro, onde viveu por décadas. Entre outros ofícios (dramaturgo, jornalista, publicitário, compositor), foi sobretudo poeta e exerceu a profissão de bibliotecário por 40 anos (a propósito, o Dia do Bibliotecário é comemorado em 12 de março, dia de seu nascimento). Publicou dezenas de livros, com assuntos os mais diversos, mas sobressaiu em seu tempo com a adoção do humor, em sentido lato, como recurso estético e filosófico.
Na História concisa da literatura brasileira (1970, revista e ampliada em 1994), Alfredo Bosi, no capítulo Neoparnasianos, apenas lhe dedica, em nota de rodapé, nem meia linha, ao lado de outros “incontáveis epígonos”: “Bastos Tigre (1882-1957)”. Uma leitura mesmo rápida de seus poemas deixa a certeza que é um autor à espera de uma crítica à sua altura, interessada, que começa timidamente, mas com precisão, com obras excelentes como a tese Bastos Tigre e o humor parnasiano, de Samanta Rosa Maia (UFSC, 2021), e o livro Estilo moderno: humor, literatura e publicidade em Bastos Tigre, de Marcelo Balaban (Unicamp, 2016). Ambos os estudos trazem referências e reflexões que decerto colaboram para ressituar a obra de Tigre em nossa historiografia poética.
O poema Voz interior faz parte da centena de poemas que compõem o livro Bolhas de sabão, publicado em 1919 — mesmo ano de Carnaval de Manuel Bandeira e de Espectros de Cecília Meireles. Tal como seu conterrâneo de Recife e como a escritora carioca, Bastos publicou outras obras nas décadas seguintes, tendo sido contudo solenemente ignorado pelos modernistas e pela crítica literária (e também pela ABL, para a qual se candidatou mais de uma vez). Sua trajetória, vista assim, de certo modo guarda um parentesco com o poema em pauta, que trata, em síntese, de uma hilária ironia às pretensões de grandeza, de seriedade, de profundidade, quando tingidas ou camufladas de comezinha metafísica. O poema também ironiza, com límpido deboche, um tipo de poesia que se quer intimista, metafórica, reflexiva, mas que resulta apenas epidérmica, banal, alienada.
O soneto, consistentemente estruturado em base clássica — alexandrino (tônicas em todas as sílabas 6 e 12) e com rimas consoantes em ABAB ABAB CDC DCD (que dão fluidez aos versos) —, parece conduzir o leitor a um desfecho também clássico: os dois quartetos e o primeiro terceto lançam perguntas em torno da origem, da identidade, do futuro, da vida, e tudo leva a crer que o terceto derradeiro traga, como de praxe, aquele fecho de ouro. Mas é nesse espaço outro da surpresa que o humor traga a sisudez, fazendo fumaça e troça do previsível, com a quebra de expectativa, de tom, de rumo. Os devaneios abstratos do sujeito (“operário”) no bonde a caminho do trabalho (“repartição”) recebem um choque de realidade que vem, na verdade, do próprio sujeito, de sua “voz interior”. Recurso comum em piadas, as três estrofes iniciais funcionam como escada que leva à queda: eis, aqui, o riso que surge, num repente, do contraste. O leitor se descobre enganado, mas sorri, porque, de algum modo, se projeta naquele personagem, cujo “eu lírico” foi também enganado pela própria voz interior. A cena tem um pouco do espírito jocoso do Brás Cubas, de Machado: “Antes cair das nuvens do que do terceiro andar”. No poema, a voz que leva o sujeito às divagações nefelibatas é a mesma voz que faz com que aterrisse de volta ao mundo concreto do cotidiano.
De chofre, talvez induzido pelo sacolejar do bonde, o sujeito (o poeta, o operário) se põe a indagar sobre a existência: quem sou, de onde vim, pra onde vou — presente, passado e futuro. As especulações transitam da treva à luz, da ignorância ao vislumbre. A consciência da pequenez se impõe: “Grão, no campo da vida”. Deixará ele algum herdeiro ou — lembrando, novamente, o “legado da nossa miséria” de Brás — não deixará frutos? As reflexões se entremeiam, ecléticas: terá sua existência uma explicação biológico-científica (a monera, termo ao gosto de Augusto dos Anjos, é uma bactéria) ou uma explicação mítico-religiosa (o beijo de Eva, nesse caso, daria origem à linhagem humana)? A imagem seguinte — “a sangrar, de pés nus” — reforça o tom religioso, acionando cenas imaginárias da via-crúcis.
A decifração de tantas perguntas para entender a “esfinge da vida” exige o aval da razão. E a razão estava ali mesmo, no próprio sujeito que, duplo, responde às indagações, por meio da “voz interior”. Quanto a quem é, não resta dúvida: um “operário honesto da nação”, e aqui há que destacar o adjetivo “honesto”, cuja simples presença faz crer que parte expressiva da nação não fosse tão honesta. Quanto à origem, nem da monera nem de Eva, a voz explicita que o operário veio mesmo foi “de casa”. Quanto ao lugar, nem na treva, nem na luz, o operário-poeta está no bonde. Quanto ao futuro, a voz interior esclarece: não está distante nem é tão esfíngico: o operário se dirige à repartição, isto é, ao trabalho.
Em síntese, no lugar da Metafísica, Bastos Tigre coloca a História. Em vez de um eu lírico, em incessantes derramamentos, ganha relevo um eu político — que trabalha, que é honesto, que está num transporte popular rumo à rotina e à exploração capitalista da produção. Em alguma brecha desse sistema, o operário se torna poeta e divaga, e ri, e cria. Finda a criação e a recreação, o poeta retorna ao operário (que faz a ópera, a obra), que recria e refaz a divagação. As duas partes do poema correspondem a essas facetas: a metafísica, a história; o poeta, o operário; as dúvidas, as respostas; o abstrato, o concreto; a fantasia, o real; o mito, a razão; a arte, o trabalho. De todas as facetas, porém, provém a mesma “voz interior”, que de tais mundos suplementares se alimenta e dos quais resulta, ao cabo, o poema em si.
Desde o título, fica patente que Voz interior é uma paródia do tão decantado “eu lírico”. Há inúmeros poemas que, mais ou menos explicitamente, giram em torno dessa voz que fala no poema. Entre tantos, veja-se o belo Voz interior, de Antero de Quental, de 1883, que Bastos Tigre — é provável — conhecia, intelectual ligado a livros e antenado com as novidades. Tal espírito aberto deve ter levado o poeta a lugares e trabalhos que não somente à “repartição”. Pesquisas rápidas nas redes informam dois sucessos de sua faceta publicitária. É dele o famoso slogan “Se é Bayer, é bom”, ainda hoje de fácil lembrança. Os mais antigos hão de se lembrar de outra conhecida propaganda, também de autoria do autor de Bolhas de sabão:
Veja, ilustre passageiro,
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem ao seu lado.
No entanto, acredite,
Quase morreu de bronquite:
Salvou-o o Rhum Creosotado.
Bastos Tigre obteve de seus contemporâneos algum reconhecimento de sua competência na arte verbal, mas praticamente ficou confinado, nas avaliações que de sua obra fizeram, ao binômio “arte e humor”, o que não é pouco, mas não é tudo. Possivelmente, talvez mesmo por ter elaborado boa parte de sua obra tendo o humor como carro-chefe, além de ter se dedicado a outras atividades profissionais, seu perfil eclético e marginal tenha sido fatal para que, ao longo do tempo, seu nome tenha ficado em certo limbo. A leitura de Bolhas de sabão há de levar à leitura de outras obras, e um novo crivo da crítica pode ser que surja. À sua época, Bastos Tigre foi chamado por Martins Fontes de “príncipe dos poetas cômicos”. De fato, o poeta tinha sensibilidade e engenho para elaborar sonetos com humor crítico, o que é raro em nossa historiografia poética.
O poema, curiosamente com “apenas” 13 versos decassilábicos (um quase-soneto) e em bloco único, com que fecha o volume Bolhas de sabão, exatamente intitulado Fechando o volume, é um primor de reflexão teórica, em versos (todos terminados em as/es/is/os/us), acerca do efeito do humor no leitor. Ei-lo:
Aqui termina o livro que compus
Não porque me pedissem: porque quis.
Chegando ao fim, confesso-me feliz
Pois, sem muito gemer, o dei à luz.
Ele a bem pouca coisa se reduz;
Porquanto, sendo escrito em português,
— A “língua de chorar” de meus avós, —
Pretendeu ser alegre e, aqui para nós,
Conseguiu-o, por acaso, uma só vez:
Foi na página… qual, sou lá capaz
De saber a que rir, leitor, te fez?
Tu sorris, afinal, do que apraz…
E eu… de um breve sorriso que me dês.
Em seu conhecido Comicidade e riso (1976), Vladímir Propp afirma às tantas que “o nexo entre o objeto cômico e a pessoa que ri não é obrigatório nem natural. Lá, onde um ri, outro não ri”. Bastos Tigre sabia disso, dessa “musa gaiata”: que o riso ou, noutros termos, que a aprovação do leitor depende sempre “do que apraz” a ele. O poeta parece esperar da crítica — de seu e de nosso tempo — mais do que um “breve sorriso”. O título de seu livro, Bolhas de sabão, tal como o título do poema Voz interior, iludem e fazem pensar que foi “sem muito gemer” que o poeta engenhou sua obra. Não nos enganemos. Bolhas de sabão são assim: belas, rápidas, lúdicas, engraçadas, divertidas, e exigem que, para que aproveitemos sua brevidade, a elas nos dediquemos intensamente. É o recado de Bastos Tigre: suas bolhas de sabão são bolhas de saber. Basta saber ver, e porventura rir, por meio de sua forma aparentemente transparente.
NOTA
Com esse texto, a coluna Sob a pele das palavras completa, sem interrupção, 100 análises de poemas. Agradeço a todos os poetas que por aqui passaram e, claro, aos leitores e amigos. E ao editor Rogério Pereira que, desde sempre, deu liberdade total na escolha dos poetas, dos poemas, da linguagem ensaística voltada para um jornal de público bem distinto. Numa de suas poucas entrevistas, Guimarães Rosa disse: “No dia em que completar cem anos, publicarei um livro, meu romance mais importante: um dicionário. Talvez um pouco antes. E este fará as vezes de minha autobiografia”. Essa coluna é, digamos, o meu rosiano dicionário.