Queria reler Vico mas não posso
queria ler fico mas não fossa
queria tomar pico mas na roça
queria virar mico sem a coça
queria ouvir Chico lá na choça
queria ficar rico sem a joça
queria ver o Angico na palhoça
queria ser Cristo mas na nossa
queria ser lírico na poça
queria mais um tico dessa troça.
Quem lê esse poema de Piva (1937-2010), e conhece pouco ou nada do autor de Quizumba (1983), onde se encontram esses versos, pode tomar gato por lebre. É prudente que esse leitor recue até Paranoia (1963) e venha descobrindo a força de uma obra que, enfim reeditada (com o apoio de críticos renomados como Alcir Pécora e Davi Arrigucci), volta ao alcance dos interessados. A poesia de Roberto Piva fascina e incomoda, como se vê em rigorosa resenha na Folha de S. Paulo do também renomado crítico Luiz Costa Lima, que pergunta ao final: “(…) o euísmo que nutre o extenso delírio. Que a poesia tem a ver com isso?”. Em defesa de Piva, replica Reuben da Cunha Rocha, afirmando a necessidade de entender tal poética “no contexto da linhagem romântica, que agrega desde poetas místicos ingleses até Rimbaud e deste a Artaud, Whitman e a poesia beat, etc.” Também o amigo e poeta Cláudio Willer, em Roberto Piva e a poesia, enfatiza a singularidade de sua obra, indicando outros pares e precursores, entre os quais Jorge de Lima, Nietzsche, Dostoiévski, Sartre, Marx, Pessoa, Rosa, Murilo Mendes.
Tal singularidade a historiografia literária vem reconhecendo. O aumento de sua fortuna crítica e a presença de Piva em antologias importantes confirmam sua relevância: está na antológica 26 poetas hoje (1976), de Heloisa Buarque de Hollanda; em Os cem melhores poemas brasileiros do século (2001), de Italo Moriconi; na Antologia comentada da poesia brasileira do século 21 (2006), de Manuel da Costa Pinto; em Poesia.br 1960, de Sergio Cohn (que também escreveu o volume dedicado a Piva na Coleção Ciranda da Poesia, da EdUerj; e, com Marcelo Mello e Guilherme Weis, organizou o volume Roberto Piva, na Coleção Postal, pela Azougue); na Antologia da poesia erótica brasileira (2015), de Eliane Robert Moraes; e em muitíssimas outras coletâneas. Em praticamente todas, os poemas dão a ver o clássico Piva, em que se mesclam “o escatológico, o pornográfico, o grotesco, o lírico e apaixonado, o sublime e maravilhoso” (Willer), em tom e dicção tantas vezes surrealistas, alucinados, psicodélicos. A isso se soma a predileção por temas afins ao desejo homoerótico, a experiências xamânicas, a elementos da natureza (plantas, animais, meio ambiente) e temos uma poesia que, repita-se, fascina e incomoda.
O poema Viking I, contudo, em meio à “quizumba” de poemas, parece um oásis, um refresco para tanta sede. Aparenta mesmo um outro Piva, trocadilhesco, bem-humorado, lançando mão de rimas e de métrica regular, recursos que em raro usava. Os versos, variando entre nove e dez sílabas, parecem até curtos, se comparados aos costumeiros versos bárbaros (longos) de que gostava, à maneira de Whitman, movidos por associações incessantes, estimuladas por drogas, ou simplesmente encenando semelhantes estímulos. Mas não nos iludamos: Piva está bastante em Viking I, a começar do título: no imaginário popular, a figura do viking aciona a imagem de navegadores, exploradores, aventureiros, invasores, algo truculentos e rudes. Embora o poema seja doce e mesmo juvenil, a figura do poeta radical, visceral, experimental que foi se formando à volta de Piva tem algo desse ar de viking, que, em contraste com a doçura e juvenilidade do poema, já colabora para o choque de expectativas, que é um dos motes pelos quais o humor se faz.
Ademais, num virar de página, do Viking se vai a Vico, e daí a dez versos estruturados em sequência melopaica: [1] verbo “queria” + [2] outro verbo + [3] substantivo com rima em /i/ + [4] substantivo com rima em /o/. Temos, pois, dez vezes o verbo “queria”; uma sequência de “reler, ler, tomar, virar, ouvir, ficar, ver, ser, ser”; uma série de “Vico, fico, pico, mico, Chico, rico, Angico, Cristo, lírico, tico”; e outra sucessão de “posso, fossa, roça, coça, choça, joça, palhoça, nossa, poça, troça”. Tal estrutura vertical está em relação intrínseca com os sentidos dos versos horizontais. O poder encantatório, sustentado pela repetição sonora, se amplia a cada verso. Dado o caráter sonoro-lúdico da composição, é prudente não exagerar na lupa da interpretação, lembrando verso do poema “O teixugo estético”, de Christian Morgenstern, via Haroldo de Campos: “Um teixugo/ sentou-se num sabugo/ no meio do refugo/// Por que/ afinal?// O lunático/ segredou-me/ estático:/// O re-/ finado animal/ acima/ agiu por amor à rima.”. Por associação acústica (quiçá inconsciente), as rimas em /i/ ou em /o/ podem, como gesto poético autorreferencial, se sobrepor a qualquer sentido mais lógico ou decodificável.
A alusão a Vico encontra eco na poética de Piva, que privilegia uma ideia metafísica, irracionalista, transcendental, adâmica de poesia e linguagem, avessa a concepções racionais, cerebrais, cartesianas. Não poder “reler Vico” sinaliza o próprio lugar de sua poesia imagética, surreal, experimental, em meio à companhia, ou mesmo hegemonia, de uma poesia de verniz cabralino, metódico, calculado. No segundo verso (“queria ler fico mas não fossa”), por paralelismo a todos os demais, “fico” tem efeito substantivo; nesse caso, além da possibilidade de pensar em fico/fícus, que remete a figueira (Piva é ecologista de primeira hora), resta lembrar uma sutil alusão ao Dia do Fico, quando D. Pedro I decide fincar pé no Brasil, contrariando ordens da metrópole. Assim, além da imantação aliterativa de Fico e Fossa, o verso ressoa um desejo de permanecer (fico), resistindo à “depressão” e aos “buracos” que recebem dejetos — ambas acepções de “fossa”. Já a expressão “tomar pico” não deixa dúvida: é injetar droga. O espírito contracultural, herdeiro da geração beat, se apropriava dos psicotrópicos e afins como meios para abrir as “portas da percepção” (Huxley). Contudo, “tomar pico” na roça parece atenuar o gesto, dando a ele um caráter bucólico, natural, harmonioso, de paz.
O quarto verso se utiliza da expressão “pó de mico”, que é um produto que provoca intensa coceira. Então, “virar mico sem a coça” poderia sugerir realizar uma experiência (mico), sem sua consequência nefasta (coça). De outro modo, “mico” é “macaquinho” e também “vexame”, e “coça” é “surra”: ou seja, o verso insinua, enviesado, com graça, um “desejo” (queria) de se tornar um animal mas sem o gesto (clássico, entre os macacos) de ficar se coçando, muito menos de, animal, levar uma surra, coça (ou seja, sem os maus tratos tão comuns). Em “queria ouvir Chico lá na choça”, o poeta explicita seu prazer pela música a um tempo lírica e política de Chico Buarque, seu contemporâneo, prazer ampliado pelo locus amoenus do interior, da simplicidade, do rústico. De forma análoga, querer “ficar rico sem a joça” sugere a possibilidade (na vida real jamais concretizada) de acumular bens materiais sem acumular contudo o conjunto de coisas reles e ordinárias que acompanham a riqueza (etimologicamente, “joça” é “bosta, excremento”).
O sétimo verso — “queria ver o Angico na palhoça” — é dos mais enigmáticos. Feito Vico, Chico e Cristo, o termo Angico vem grafado com letra maiúscula, o que faz supor tratar-se de conhecido do poeta. Deixando tal suposição, por ora, em suspenso, no contexto do poema — entre fícus, roça, palhoça — ganha força a ideia de tratar-se mesmo da árvore/planta homônima, sobretudo considerando a presença de alcaloides psicoativos em uma de suas espécies. Assim, mesmo com a prudência de evitar a dita superinterpretação, “ver o Angico” (se a letra maiúscula não for mera gralha tipográfica e se não for Angico o nome/apelido de alguém que nos escapa) pode aludir a alguma percepção ampliada pelos elementos psicoativos da própria planta. Nem se leva em conta aqui, dada a supracitada prudência, o fato de chamar-se Grota do Angico, em Sergipe, o local em que morreu Lampião, nem tampouco o fato de chamar-se Angicos, no Rio Grande do Norte, a cidadezinha em que Paulo Freire iniciou seu método de alfabetização. Seria ver demasiados Angicos numa só palhoça.
E assim caminha a tentativa de entender Viking I na Quizumba de Piva. Como afirma Foucault em Nietzsche, Freud e Marx, “a interpretação não aclara uma matéria que com o fim de ser interpretada se oferece passivamente; ela necessita apoderar-se, e violentamente, de uma interpretação que está já ali, que deve trucidar, resolver e romper a golpes de martelo”. Quando o poeta diz “queria ser Cristo mas na nossa” insinua admiração pela emblemática figura religiosa, mas sem a apropriação deletéria e hipócrita por parte de parte dos próprios cristãos: na expressão “na nossa” estaria elíptico algo como “na nossa tribo”, “na nossa turma”, “na nossa maneira”, não esse Cristo mercantilizado por tantas seitas e igrejas. O bom humor dos versos se reforça com “queria ser lírico na poça”, como se o poeta estivesse dizendo que ser lírico em boas condições (sem poça) é fácil, mas ser poeta tendo poça sob os pés é bem mais dificultoso. O verso de arremate — “queria mais um tico dessa troça” — confessa o motivo nuclear do poema, para espanto e deleite: a troça, a zombaria, a brincadeira, o deboche. No derradeiro verso, depois de tantos desejos aparentemente não realizados (na vida; no poema, sim), o gosto pela graça permanece, “mais um tico”, mais um pouco do poema-debique.
Viking I não tem nada da monumentalidade dos longos poemas de Piva, vide o belíssimo Ode a Fernando Pessoa, nem da linguagem libertina de Poema elétrico do cu, tampouco empunha bandeiras políticas como no contundente Ano XV do capitalismo selvagem. Mas pode funcionar como um convite para que novos leitores, vikings, se aventurem a descobrir ou conhecer mais sua obra. Tipo assim: “queria sacar Piva cá na toca”. Fica esse convite para a patota.