(Para Helinho, in memoriam.)
Depressa a vida passa, mal se sente
e tudo já parece diferente:
o que doeu um dia hoje é dormente,
o amanhã não se lembra do presente;
e mal tudo é passado, o mais recente
recomeça a tecer o recorrente:
a cada ruga tudo é mais ausente,
o tempo foge e sempre leva a gente;
fascina como a infância é inocente:
eterno no vigor do adolescente,
no idoso, ainda crepita o sol poente;
fascina como tudo é transparente:
depressa a vida passa e, de repente,
desfaz-se, n’água, a face que a ressente.
Este é o sétimo poema, do total de quatorze, todos sonetos sem título, apenas numerados em romanos, do livro De amor & sobre (2008), de Marcelo Diniz. Trata-se de uma edição caseira, com as folhas amarradas por barbante e enfeixadas por uma capa cartolinada. Se a plasticidade lembra, de forma extemporânea, os clássicos, e hoje raros, “livrinhos marginais”, o interior e seu teor fogem completamente àquela estética setentista. Desde 2011, o poeta é também professor de Literatura na UFRJ, e ali desenvolve pesquisas em torno, entre outros assuntos e autores, da metalinguagem, da forma soneto e da obra de Glauco Mattoso (recordista mundial na feitura e publicação de sonetos). Tais pesquisas se realizam, em paralelo a ensaios acadêmicos, no acabamento a um tempo rigoroso e fluente de poemas, como este, elaboradíssimos.
Poema que, desde o primeiro verso, dá a ver o tópico nuclear da transitoriedade, da celeridade, da brevidade da vida, tema que atravessa a poesia, a literatura, as artes, a filosofia de todos os tempos. Não há, nos versos, a presença de uma primeira pessoa gramatical, provavelmente porque a vida passa depressa para todos, porque a finitude é constitutiva da travessia de qualquer um. Não é um acontecimento ou drama apenas individual, mas da humanidade toda e de todos os seres viventes. Cada verso parece (querer) conter em si uma história, por isso em quase todo o poema a pontuação se faz decisiva: nas quadras, o primeiro verso sem pontuação, seguido de verso com dois-pontos, com vírgula, e com ponto e vírgula; nos tercetos, se mantém a sequência: verso com dois-pontos, com vírgula, e com ponto e vírgula; dois pontos, vírgula e ponto final. (Visualmente, fica assim: -:,; / -:,; / :,; / :,.) Tal pontuação, que força a ênfase na leitura do verso em si (sem necessidade de enjambement), fortalece o efeito da construção que mais chama a atenção no poema: todas as 14 rimas são consoantes, todas em “ente”, abrigadas em verbo, adjetivo, substantivo e advérbio. Sem a necessidade de “estender” a leitura de um verso a outro, com as rimas rigorosamente iguais, e com todos os decassílabos no modo heroico, a fluidez do poema impressiona, e entra em plena isomorfia com o sentido de algo (a vida) que passa, a despeito de qualquer coisa que se faça ou queira, de algo que “sempre leva a gente”.
Além das rimas nasais em /e/ e do ritmo regular dado pelo decassílabo heroico, que cadenciam o andamento do poema, uma série de outros recursos sonoros se somam, notadamente a aliteração e a repetição. A aliteração eclode, por exemplo, nos fonemas /s/, /d/, /r/, /f/, /t/ e /s/, nos versos 1, 3, 6, 9, 12 e 14. A repetição, ecoando o monocórdio das 14 rimas idênticas, lança mão do bordão “depressa a vida passa” (versos 1 e 13) e dos termos “mal” (versos 1 e 5), “tudo” (versos 2, 7 e 12) e “fascina” (versos 9 e 12). Engenhosa é a repetição na chave de ouro de “desfaz-se” e “face”, em que o verbo se transforma em substantivo, ambos recuperando o citado termo “fascina”. Toda essa estrutura acústica sustenta um assunto que, embora tenha seu teor trágico (pois é vizinho da morte), ganha leveza, rapidez e exatidão, para lembrar algumas das célebres propostas de Italo Calvino para o nosso milênio. Não há conformismo nem melancolia. Há calma, consciência e mesmo fascínio diante da vida.
Tal assunto vem, verso a verso, se desenhando a partir de traços sutis que compõem algo que, tivesse um nome, poder-se-ia chamar “o tempo” (“Se ninguém me pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”, tergiversa a famosa frase de Santo Agostinho). No verso de abertura, “Depressa a vida passa”, se diz da ideia, do exato sentimento de passagem. O verso 2, “e tudo já parece diferente”, confirma a impermanência como motor da existência. O verso 3, “o que doeu um dia hoje é dormente”, lembra que mesmo as dores desaparecem, a dor adormece. O verso 4, “o amanhã não se lembra do presente”, arremata que o porvir, incontrolável, abafa o que ficou — presente ou passado.
E assim vai a toada, que percebe o que há de assustadoramente cíclico nesse circuito: a estrofe 2 diz da inevitabilidade da metamorfose em direção ao fim, que é, talvez sobretudo, do corpo: “a cada ruga tudo é mais ausente”. As rugas, em cuja etimologia se encontra o parentesco com as “ruas” de uma cidade, falam da decrepitude que avança. A estrofe 3 resume em três fases a vida de um sujeito: a infância ingênua, a adolescência saudável, a velhice resistente. A estrofe 4, derradeira, sintetiza a travessia e — contrapondo a água, que renova, ao sol, que se põe — sugere, de modo belo e ambivalente, que a vida, sim, se desfaz, acaba, mas recomeça no movimento de “ressentir”, sentir de novo aquilo mesmo, a vida, que parece findar.
Embora o poema, em momento algum, explicite um desejo de fazer convergir matéria (assunto) e maneira (estilo), o próprio fazimento de um soneto é, por si mesmo, um gesto metalinguístico, pois exige cálculos, dobras, encaixes, forma fixa que é. (Fixa, lembremos, mas sempre flexível, e não há contradição ou paradoxo aqui.) O sentido de “tecer”, no sexto verso, propaga iniludivelmente um clima de que algo está em andamento, e não é só a vida que esvai: mas um soneto que se trama. As rimas, as tônicas, os anagramas morfossonoros (fascina, desfaz-se, face), a pontuação, tudo diz que vida e arte se entrecruzam. A aparente ladainha das rimas todas consoantes, feito um mantra, nos envolve, seda azul do papel na maçã: nós, os leitores, somos a maçã.
A mestria do poeta em sonetear se verifica em todo De amor & sobre. Entre tantos engenhos, vale registrar o soneto número XI, também em decassílabos heroicos, um primor bem-humorado de metapoesia:
Diz o manual: gire a manivela
cuja polia liga o molinete,
até que, todo tenso, o galhardete
estique toda mola da arandela;
se a ponta desnivela, a bolidela
de leve na cabeça do alfinete
basta para que cada bastonete
encaixe-se no bico da arruela;
além deste macete, um peteleco
bem dado no rebite da ampulheta
acelera a bobina deste treco
que roda a carrapeta da roleta
e destrambelha todo o cacareco
da rebimboca até a parafuseta.
As misteriosas partes de uma kafkiana “máquina” são acionadas para que, aparentemente, funcionem. Há uma piscadela irônica que alveja toda tautologia da retórica excessiva — a tagarelice vã. Mas, na verdade, o que se quer é falar da máquina-soneto, proteica, imprevisível, autorreferencial.
No soneto número VII, “Depressa a vida passa”, o tópos do tempo, e da vida que se finda, e da finitude, e da brevidade da existência do sujeito se indissociam. Provavelmente, os poetas (e os artistas, em sentido lato) sempre quiseram pensar e escrever sobre tudo isso, porque a palavra (e a arte em geral), se não ludibria o tempo, nele se inscreve, ficando, para além do sujeito, como obra-objeto desse sujeito que, depressa, feito a vida, passa. Vita brevis, ars longa. Daí, dirá Theodor Adorno, em Teoria estética, que, “ao fixar-se um texto, uma pintura, uma música, a obra existe realmente e simula simplesmente o devir que ela encerra, o seu conteúdo; mesmo as tensões mais estranhas de um desenvolvimento no tempo estético são tão fictícias quanto elas se encontram de antemão decididas na obra, de uma vez por todas; de facto, o tempo estético é, em certa medida, indiferente ao tempo empírico por ele neutralizado”. Se o artista não pode emular o tempo que o encerra, sua arte pode.
Em 2008, data de publicação do livro, o Brasil vivia um tempo em que, a despeito de lacunas (ademais, inexauríveis), um projeto civilizatório estava em andamento, e o poeta estendia seu engenho para pensar tanto o terrível fascínio da vida que passa, quanto pensar como “tecer” um soneto que parodia a rebimboca da parafuseta. Tempo em que a vontade de saber e de esclarecimento era fato. Hoje, a treva e a burrice tomaram conta do país, e a poesia e a arte e o pensamento vão à luta, combatem. (E nesse sentido vale ver o belo poema visual de agudo teor político com que Diniz encerra a antologia Poemas para ler antes das notícias, da revista Cult.) Uma forma de combate, por paradoxal que pareça, é perceber a força de um soneto — feito este, estes, de Marcelo Diniz — que nos restitui, que nos faz ressentir a força do choque, retomando o raciocínio dialético do filósofo alemão, de um tempo empírico e um tempo estético, na beleza de saber que tal choque é que produz o poema que nos mobiliza a não desistir. O poema nos sequestra, nos arrasta, e nele nos subsumimos, mas dele devemos retornar, como quem retorna de um rio, de águas límpidas e transparentes. Para atravessar essa vida, há que se crepitar, há que se pôr, à maneira de um soneto, lúcido — lucidamente solar.