Verdade seja dita:
Você que não mova sua pica para impor respeito a mim.
Seu discurso machista machuca
e, a cada palavra falha,
corta minhas iguais como navalha.
NINGUÉM MERECE SER ESTUPRADA!
Violada, violentada
seja pelo abuso da farda
ou por trás de uma muralha.
Minha vagina não é lixão
pra dispensar as tuas tralhas
Canalha!
Tanta gente alienada
que reproduz seu discurso vazio
e não adianta dizer que é só no Brasil,
em todos os lugares do mundo,
mulheres sofrem com seres sujos
que utilizam da força quando não só, até em grupos,
praticando sessões de estupros que ficam sem justiça.
Carniça!
Os teus restos nem pros urubus eu jogaria
porque ele é um bicho sensível,
e é capaz de dar rebuliço num estômago já acostumado com tanto lixo!
Até quando teremos que suportar
mãos querendo nos apalpar?
Olha bem pra mim! Eu pareço uma fruta?
Onde na minha cara tá estampado: Me chupa?!
Se seu músculo enrijece quando digo NÃO pra você
que vá procurar outro lugar onde o possa meter!
Filhos dessa pátria,
mãe gentil?
Enquanto ainda existirem Bolsonaros,
eu continuo afirmando:
Sou filha da luta, da puta,
a mesma que aduba esse solo fértil
a mesma que te pariu!
É crescente e sólido o interesse pelo poetry slam (batalha de poesia), e poemas como este de Mel Duarte explicam parte de tal interesse. São versos fortes, conscientes, críticos, militantes, feministas, em linguagem direta, papo reto que não foge à luta, e que cita explicitamente o inimigo a ser vencido: o sujeito machista, violento, canalha, sujo, covarde — perfil que o poema denuncia sem temor na figura do atual presidente do Brasil, Jair Bolsonaro. O poema, na verdade, é a resposta indignada da slammer à infeliz e criminosa fala do então deputado federal que, em 2014, ofendeu publicamente a deputada Maria do Rosário, dizendo que ela “não merecia ser estuprada” por ser “feia”. Falas (e, portanto, práticas) infelizes e criminosas, quase que diariamente, antes e depois desse episódio, fazem parte da biografia do político de extrema-direita que tem “governado” o país desde janeiro de 2019. (Nesse caso específico, a justiça condenou o meliante. Importa, contudo, considerar que, apesar ou, pior, exatamente por conta de falas com tal “teor ideológico” é que Bolsonaro veio se elegendo até chegar ao posto que ocupa. Noutras palavras, suas falas infelizes e criminosas encontram eco e voto em um abnegado contingente da população brasileira. Um quadro assustador.)
Conforme o 15° Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2020, foram registrados 60.460 casos de violência sexual, o que equivale a 165 estupros por dia. Desse total, 61% das vítimas tinham até 13 anos. Mesmo sabendo que a maioria dos casos nem sequer é registrada, esses números oficiais (ainda que subnotificados) também assustam. Pesquisas e estatísticas referentes ao ano de 2021 já apontam o crescimento vertiginoso desses números, e não é necessário elaborar grandes reflexões para entender o porquê: há uma política e um político que facilitam e/ou estimulam certos comportamentos não-civilizados (como o gesto macho de “fazer arminha”), contra os quais o poema se insurge. É uma resistência que não se confunde com resiliência. Resistência que vai pra cima, com caixa alta, adjetivos incisivos, termos categóricos, muitas exclamações. A linguagem linear, referencial, sem metáforas hermetizantes, com sintaxe simples, favorece a oralização do slam e o seu entendimento por parte da plateia.
A própria Mel Duarte, na apresentação que fez para o livro Querem nos calar — poemas para serem lidos em voz alta (2019), que ela organizou, sintetiza a história da poesia oral:
A poesia falada nada mais é do que uma herança cultural, uma memória deixada em nossos genes por quem nos antecedeu. A oralidade era utilizada como forma de manter os costumes e crenças vivos, desde a Grécia Antiga, passando pelos trovadores provençais e os griots, e desde então vem sendo inserida em diversos movimentos como o beatnik, o dos direitos civis e a afirmação negra norte-americana, chegando aos poetas de rua, aos saraus e, hoje, aos slams.
Seja como for, o destino de boa parcela da poesia falada é o livro, o impresso, a palavra grafada na página/tela. O poema Verdade seja dita, nascido em 2014 como poesia oral, ganhou notabilidade em batalhas e nas redes, e foi para o espaço do livro Negra nua crua, em 2016. Em 2021, reaparece no importante livro As 29 poetas hoje, com organização de Heloisa Buarque de Hollanda. Falada/ouvida ou escrita/lida, vale a palavra que denuncia, acusa, afirma, transforma. É o que faz Mel Duarte em suas performances e em seus textos, como atestam, por exemplo, Nayara Abreu de Carvalho (Verdade seja dita!, de Mel Duarte: a voz da mulher negra como resistência e denúncia nas poesias slams, UFG, 2016) e Elaine Correia de Oliveira (Vozes das mulheres negras nos saraus e slams da cidade de São Paulo, Unifesp, 2020).
Desde o título, repetido no primeiro verso, se impõe o destemor de dizer e querer a palavra “verdade”. O verso seguinte é imperativo e categórico: “Você que não mova sua pica para impor respeito a mim”. O dito palavrão, o dito chulo, o termo “pica” é explicitado, escancarado, para que se mostre já, no contexto geral da frase, que não há submissão, medo, e que a linguagem há de acompanhar o comportamento: se o mundo falocêntrico gira em torno do pênis (do pau, do pinto, da pica), é contra ele que a resistência se faz, em nome das “minhas iguais”. O verso NINGUÉM MERECE SER ESTUPRADA, em letras garrafais, responde diretamente à citada fala criminosa do ainda presidente do Brasil em janeiro de 2022.
Os versos 1 a 3 exploram a rima em /i/: dita, pica, mim, machista. Do verso 4 ao 11, uma sequência de 13 sílabas tônicas em /a/ chama a atenção e envolve o ouvido e seduz quem lê/ouve o poema: cada palavra falha iguais navalha ESTUPRADA Violada violentada farda atrás muralha dispensar tralhas. Tal sequência como que prepara o grito de guerra que vem a seguir, em estrofe destacada, coroando a assonância em /a/: “Canalha!”. O efeito desse adjetivo é fatal, considerando alguns, entre as dezenas, dos sinônimos listados no Houaiss: abjeto, baixo, cafajeste, desgraçado, desprezível, escroto, ignóbil, ignominioso, imundo, incorreto, indecoroso, indigno, infame, inominável, inqualificável, intolerável, mesquinho, miserável, mísero, moleque, odioso, ordinário, patife, pulha, rebaixado, reles, sem-vergonha, sórdido, sujo, torpe, vergonhoso, vil.
A terceira estrofe (frisando o som em /u/: mundo, sujos, grupos, estupros) alerta que não “é só no Brasil” que a canalhice desumana do estupro ocorre, e que não é só aqui que tais atos selvagens “ficam sem justiça”. Depois do grito-estrofe “Canalha!”, que arrematava a rima com “tralha”, agora temos o grito-estrofe “Carniça!”, que evidencia o problema (conflito, trauma) ao rimar com “justiça”. Sendo o slam uma forma de poesia falada, é recorrente a busca por efeitos sonoros (busca, ademais, comum também na poesia somente escrita), e “justiça” e “Carniça!” estendem seu ruído à estância seguinte, nos termos com tônica em /i/: “jogaria”, “bicho”, “sensível”, “rebuliço” e “lixo”. Em paralelo aos jogos sonoros, vai-se fixando o sentido: o estuprador é algo semelhante à carniça, ou seja, um cadáver em putrefação, que nem mesmo os urubus suportariam.
A penúltima estrofe continua a contundência do poema, dando vez a perguntas que não cessam de ecoar: “Até quando teremos que suportar/ mãos querendo nos apalpar?/ Olha bem pra mim! Eu pareço uma fruta?/ Onde na minha cara tá estampado: Me chupa?!”. Diariamente, vemos notícias (e mesmo testemunhamos na rua, no trabalho, em qualquer lugar) de abuso, de invasão, de assédio. Os casos são incontáveis. Às vezes, quando envolvem celebridades, ou redundam em acidentes ou mortes, viram manchetes. Com frequência, a vítima vira a culpada, seja pela opinião pública, seja pela “justiça”: a roupa, o horário, a bebida, a dança, o comportamento, etc., tudo se torna motivo para que se culpabilize a mulher. Por isso, a poeta vai ao ponto, para que todos entendam: “Eu pareço uma fruta?”. A resposta, novamente em caixa alta, vem, sem ambivalência ou hesitação: NÃO. E, como algumas campanhas popularizaram, “depois do NÃO é assédio”, a mulher, que quer e deve e pode ser livre e dona de si, diz pro sujeito procurar alhures (“no lixão”) onde “meter” aquela “pica”, agora animalizadamente “músculo”.
Nos versos finais, como já vimos, aparece o interlocutor que emblematiza esse sujeito animalizado, bruto, violento, canalha e carniça: quando diz “Enquanto ainda existirem Bolsonaros”, o poema de Mel Duarte diz do modelo de macho que o presidente metaforiza. No conhecido e indispensável texto O que significa elaborar o passado (1963), Theodor Adorno afirma, com incrível atualidade: “O nazismo sobrevive, e continuamos sem saber se o faz apenas como fantasma daquilo que foi tão monstruoso a ponto de não sucumbir à própria morte, ou se a disposição pelo indizível continua presente nos homens bem como nas condições que os cercam”. O poema de Mel Duarte mostra, sem papas na língua, que o perigo esteve e está entre nós, aqui nessa pátria mãe nada gentil. A nós, portanto, apesar das dificuldades inerentes à própria capacidade de esclarecimento e formação dos sujeitos, cabe espantar esse fantasma, que se corporifica nas pessoas, “tanta gente alienada” — pessoas que veem no fantasma valores com os quais se identificam, e mesmo votam nele.
Para pessoas, feito o presidente, que gostam de “discurso machista”, “abuso de farda” e “sessões de estupros” e gostam de se esconder sob versículos tipo “E conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” mas que produzem mentiras incessantes sobre tudo, nada mais preciso e urgente do que um poema com título “Verdade seja dita”. E Mel Duarte, verdade seja dita, disse.