um deus, de Arnaldo Antunes

A obra de Arnaldo Antunes vem sendo marcada por intensa reflexão acerca do sujeito e das suas possibilidades formais de expressão
Arnaldo Antunes, músico, poeta, compositor e artista visual brasileiro
01/12/2022

um deus efêmero
um deus com sexo
um deus com gênero
e que envelhece
um deus com fim
um deus assim
merece prece

um deus que conta
o seu segredo
um deus que apronta
mas tem medo
um deus que erra
e recomeça
merece reza

um deus que sofre
e que se alegra
um deus com sorte
e sem promessa
um deus que pensa
um deus ateu
merece crença

um deus talvez
volúvel deus
um deus que ovula
todo mês
um deus que paga
sua comida
merece a vida

Arnaldo Antunes é um artista bastante conhecido, há décadas, transitando sobretudo entre livros e canções. Acerca de sua obra, há inúmeros estudos, assim como, dele, se encontram com facilidade depoimentos e entrevistas a mancheias (entre tantos trabalhos, registro a tese A soma incerta do que somos: estudo da poesia visual de Arnaldo Antunes à luz do poema “cromossomos”, de Douglas Salomão, 2015). Considerado uma espécie de herdeiro dos concretos, Arnaldo declara com frequência, a despeito de suas experiências intersígnicas e híbridas, que seu principal instrumento é sempre a palavra — o que se comprova nesse engenhoso poema um deus, do recente livro Algo antigo (2021), indicado a prêmios importantes na categoria poesia.

Entre o palco e o livro, entre a palavra e a imagem, entre o barulho e o silêncio, a obra de Arnaldo Antunes vem sendo marcada por uma intensa reflexão acerca do sujeito e das suas possibilidades formais de expressão. Não é casual o interesse do poeta paulista pelo repertório que a parafernália cibernética oferece: as mais variadas técnicas de computação, simuladores, ilhas de edição, bancos de imagens e sons, realidade virtual, animação, mixagens em geral tornam-se recursos que o poeta contemporâneo pode agenciar em proveito de um redimensionamento da criatividade e do exercício do imaginário. Sem deixar de utilizar as “clássicas” manifestações artísticas — como a literatura, a dança, a música, a pintura, o teatro —, esse poeta performático amplia seu horizonte, aproximando-se dos produtos e dos valores da informática e da tecnologia em geral.

Num tempo em que um bordão da extrema direita (“Deus, Pátria e Família”) ressuscitou um tipo religioso fundamentalista que estava hibernando no país, não é pequena a provocação que o poema um deus incorpora. De imediato, o uso da minúscula para deus, segundo o dicionário, “ente infinito, eterno, sobrenatural e existente por si só; causa necessária e fim último de tudo que existe”, poderia espantar, se não fosse o já convencional e costumeiro uso da minúscula em poemas para todas as palavras, independentemente de se classificadas como nome próprio. No entanto, o artigo indefinido “um” é bem mais relevante para esse estranhamento inicial, pois, desde o título, se enfatiza o caráter impreciso e indeterminado desse ente, que no poema vai se delineando como múltiplo, heteróclito e muito próximo ao que Guimarães Rosa, pela voz de Riobaldo, chamou de homem humano.

À primeira vista atrai a atenção a estrutura visual do poema, composto por quatro estrofes com sete versos cada, todos tetrassilábicos, à exceção de dois deles (“mas tem medo”, “todo mês”), trissílabos. Contudo, ambos, contados como extensão do verso anterior, se mostram octossílabos, metro que se esconde sob a capa de vários dos quadrissílabos: “um deus que apronta mas tem medo”, “um deus que ovula todo mês”. Quanto às rimas, temos a sequência: eeeeiie/ oeoeeee/ oeoeeee/ eeueaii. Ou seja, predominam as rimas em /e/, com arremate de rimas em /i/. Há duas rimas brancas, em /a/ e /u/. Na tônica e nos fonemas do verbo “ovula” ecoa a palavra do verso anterior: “volúvel”, em rima interna. Já o termo “paga” não encontra rima com nenhum outro termo contíguo, a não ser consigo mesmo: pAgA. Parece, porém, que o termo “paga” encontra nos 20 pares de palavras paroxítonas o amparo sonoro (há duas palavras proparoxítonas e seis oxítonas). Ademais, seu aparente isolamento em termos acústicos ressalta o seu sentido mundano: em “um deus que paga/ sua comida” ecoa e se confirma esse perfil de um deus demasiadamente humano que se desenha no poema. Que deus dissonante é esse, que se disfarça em poema tão sonoramente harmonioso?

O primeiro verso já dá a dimensão pouco divina dessa divindade: “um deus efêmero”, passageiro, temporário, distante da noção metafísica de eternidade amplamente hegemônica entre religiosos. Daí por diante cada definição desse deus virá na contramão do senso comum, que mantém reverência, amor e medo de entidades transcendentais. No verso “um deus com sexo” já se fixa a ideia de que tal ser, digno do nome, deve ter um corpo, o que se reforça nos versos seguintes, “um deus com gênero/ e que envelhece”, ou seja, um ser finito, precário, que morre (“um deus com fim”). O fecho da primeira estrofe (“merece prece”) estabelece — de modo análogo às 4 sétimas, às 17 rimas em /e/, aos 26 versos em metro quadrissílabo, às 20 paroxítonas, às 14 aparições de “um deus” — uma reiteração, que vai, todavia, diferindo a cada momento.

Cada estrofe sugere a imagem de “um deus”; ao fim, a estrofe conclui que esse deus “merece prece”, “merece reza”, “merece crença” e “merece a vida”. Se prece, reza e crença partilham um campo semântico místico afim, a rima se repete (em /e), consoante em “merece/prece” e toante em “merece/reza/crença”; já o termo “vida” amplia o espectro para além da fé, e a rima (em /i/) destoa assim do previsível. No segundo bloco, em vez de receber o segredo e a confissão (por meio do padre, preposto do Senhor), esse deus agora fala, se expõe; em vez de ser perfeito e comportado, esse deus agora “apronta”, “erra” e tenta de novo, Sísifo humanizado que, a cada dia, tem de carregar pedras em vão.

Na terceira estrofe, mais e mais esse deus se assemelha a “um homem”, que sofre e se alegra, que busca a sorte, sem falsas ilusões, mas que sobretudo “pensa”, e tal verbo possui especial importância no contexto. O conceito de “pensamento” é nuclear na obra de Theodor Adorno. Em Dialética negativa, por exemplo, dirá, em dois momentos distintos: “Lá onde o pensamento se projeta para além daquilo a que, resistindo, ele está ligado, acha-se a sua liberdade. (…) Se a dialética negativa reclama a autorreflexão do pensamento, então isso implica manifestamente que o pensamento também precisa, para ser verdadeiro, hoje em todo caso, pensar contra si mesmo”. Em síntese, o filósofo afirma que pensar é pensar na contramão do já pensado, do que já pensaram por mim, do que a mim foi dado como valor e verdade. O conceito de “Deus”, agora com maiúscula, e sua existência e tudo o que isso implica são transmitidos de geração a geração na base do paradoxal argumento da fé, que não necessita de se contrapor à razão. No poema, “um deus que pensa” produz o seu próprio antípoda, “um deus ateu” — e esse, sim, que pensa a si mesmo, e resiste àquilo que o prende, esse deus é livre e, portanto, “merece crença”, merece confiança.

Em vez de onisciente (e onipresente e onipotente), por que não, como todos nós, um “deus talvez”? Um deus que duvida. Para continuar com Rosa e Riobaldo, “quem desconfia, fica sábio”. Em vez de entediantemente o mesmo sempre, por que não, antropomorfizado, um “volúvel deus”? Volúvel, volátil, imprevisível. Um que saiba ser para todos, e não para alguns, para igrejas. Que saiba ser “um deus que ovula/ todo mês”, isto é, que, à semelhança da mulher, possa gerar óvulos — esse, sim, “merece a vida”. A vida, para além de qualquer situação dicionária, nesse modo do poema equivale, em sua magnitude, à própria condição e existência de deus, desde que esse deus seja um deus efêmero, com sexo, com gênero, que envelhece, com fim, que tem medo, que erra, recomeça, que sofre e se alegra, que pensa, um deus volúvel, que ovula.

No panorama da poesia brasileira, marcado por um competente e profissional hibridismo de formas e expressões, de meios e de tribos, e em que, como afirma Heloisa Buarque de Hollanda em Esses poetas: uma antologia dos anos 90 (1998), os poetas “reinventam uma coerência própria, assumem a herança modernista, absorvem o impacto João Cabral, apropriam-se do laboratório concretista e expandem a poesia dos anos 70”, a obra em progresso de Arnaldo Antunes vem se sustentando como uma das forças mais contundentes, radicais, altas, poéticas de nosso tempo. Arnaldo liberal gerou a poesia entre livros e sons, nomes sim e não, Arnaut andante contemporâneo.

Decerto, há elaborações de ordem teológica deveras complexas e com inúmeras ramificações que o assunto exige. Não se trata aqui de entrar em querelas metafísicas. O poema um deus é cristalino: a ideia de deus que se oferece no poema é bastante diversa da ideia de Deus aceita, defendida e divulgada, aos quatro ventos, pela comunidade religiosa (a despeito das imensas divergências dessa imensa comunidade). Poucas páginas antes do poema um deus, Arnaldo estampa um poema, com o título pergunta, em letras garrafais: “como acha que/ vai dominar/ seus medos se/ não consegue/ controlar seus/ pensamentos?”. A metáfora se dá a ver: a Deus, o medo; a deus, o pensamento. É pensando contra aquilo que nos obrigaram a pensar é que chegamos a um deus que seja nosso, um deus-poema. Não um Deus acima de todos, mas um deus no meio da gente, no meio do redemoinho. No meio de deus o homem, esse “eu” que pensa.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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