Lembra-me que, em certo dia,
Na rua, ao sol de verão,
Envenenado morria
Um pobre cão.
Arfava, espumava e ria,
De um riso espúrio e bufão,
Ventre e pernas sacudia
Na convulsão.
Nenhum, nenhum curioso
Passava, sem se deter,
Silencioso,
Junto ao cão que ia morrer,
Como se lhe desse gozo
Ver padecer.
Suave mari magno é um dos mais conhecidos poemas de Machado de Assis, tendo sido gravado pelo Barão Vermelho em 1989, com o mercadológico título de Rock do cachorro morto. Manuel Bandeira o incluiu entre a “dúzia de poemas [de Ocidentais] que têm a mesma excelente qualidade dos seus melhores contos e romances”. Publicado em 15 de janeiro de 1880 na Revista Brasileira, antecede ao romance Memórias póstumas de Brás Cubas, vindo a lume como folhetim na mesma revista a partir de março de 1880, ao conto A causa secreta, de 1885, e ainda a Quincas Borba, também saído em folhetim a partir de 1886 — narrativas com as quais mantém estreito parentesco.
Machado foi buscar em Da natureza, do poeta Lucrécio, a misteriosa expressão latina que intitula o poema. Na tradução em prosa de Agostinho da Silva, temos: “É bom, quando os ventos revolvem a superfície do grande mar, ver da terra os rudes trabalhos por que estão passando os outros; não porque haja qualquer prazer na desgraça de alguém, mas porque é bom presenciar os males que não se sofrem”. De imediato, percebemos um típico traço do Bruxo, que é o de — em princípio — rasurar a citação, haja vista que, se em Lucrécio o bem-estar provém da segura distância do perigo e do desagradável, no poema de Machado os transeuntes curiosos param e parecem se regozijar diante do sofrimento alheio. No caso, de um cão. Um pobre cão.
Trata-se, como se vê, de um soneto, com versos de 7/7/7/4-7/7/7/4-7/7/4-7/7/4 sílabas e com rimas consoantes em A/B/A/B-A/B/A/B-C/D/C-D/C/D. Ou seja, em radical contraste com a cena tensa do momento, em que o barulho do riso bufão e convulsivo do cão tem por testemunha uma gente silenciosamente sádica e — salvo engano — em gozo, o poema se organiza de modo racional, controlado, calculado. Apesar da lembrança aparentemente traumática de que parte, o narrador (pois que sobressai o caráter prosaico e linear dos versos) rememora a cena triste e cruel de forma plasticamente apolínea, a que não falta o espaçamento diferente nos tetrassilábicos versos 4, 8, 11 e 14, e mesmo o exótico título que exige um leitor “curioso”, para lembrar reflexão de Nietzsche em Ecce homo: “Quando me ponho a fantasiar a imagem de um leitor perfeito, sempre ela se configura como um prodígio de coragem e de curiosidade, e, além disso, de agilidade astuciosa, um prudente aventureiro e descobridor nato”. O poema se assemelha ao cão: observado por curiosos e curiosos que se detêm diante dele, enquanto ele tenta se agarrar à vida (à forma final) que lhe resta cumprir. (Bem diversa é a morte redentora e anônima de Baleia, de Vidas secas, em paradoxal gesto de piedade por parte de Fabiano.)
Essa atitude que mistura voyeurismo e sadismo se encontra também no conto A causa secreta. Aqui, há um episódio em que Fortunato tortura um rato, observado pelo médico Garcia; no final, há uma espécie de inversão, quando Fortunato, em silêncio (como os curiosos ao cão), se extasia ao extremo vendo o amigo beijar-lhe a esposa Maria Luísa, defunta: “Fortunato, à porta, onde ficara, saboreou tranquilo essa explosão de dor moral que foi longa, muito longa, deliciosamente longa” são as palavras que arrematam a história. Se, na primeira edição do poema, conforme afirma Antônio Sanseverino em Cantos ocidentais (1880), a poesia machadiana na Revista Brasileira, o penúltimo verso era “Quem sabe? É delicioso”, o parentesco entre as duas obras se agudiza. O fecho do soneto seria, então, assim: “Nenhum, nenhum curioso/ Passava, sem se deter,/ Silencioso,/// Junto ao cão que ia morrer,/ Quem sabe? É delicioso/ Ver padecer”. O adjetivo “delicioso”, retirado, retorna, anos depois, sem culpa e pleno, no advérbio “deliciosamente” do conto, que estende a repetição, por três vezes, do adjetivo “longa”, sem deixar dúvida que o prazer do voyeur atingiu um raro paroxismo.
Poema contemporâneo das Memórias do autor defunto Brás Cubas, vale cotejar o cão de Suave mari magno ao cão Quincas Borba, que, no romance homônimo, após a loucura e morte de Rubião, “amanheceu morto na rua”. Antes de, no romance Quincas Borba, expor ao amigo herdeiro Brás a teoria do Humanitismo — que justifica a supremacia do forte sobre o fraco, daí o célebre “ao vencedor, as batatas” —, lá no capítulo CXLI (Os cães) das Memórias póstumas o filósofo-pancada Quincas Borba se delicia com a briga feroz entre dois cães por um osso nu, sem carne: “Que belo que isto é!”. Não se trata, é claro, de querer identificar, sem mediações, o cão do poema ao rato de A causa secreta, nem aos cães de Memórias em guerra humanitista pelo osso descarnado, tampouco ao solitário e moribundo Quincas, mas de indicar a presença sempre trágica do animal em contextos diferentes. Sobretudo, vale indicar o privilegiado lugar de anunciação que o poema adquire, ainda mais considerando a suposta “inferioridade” da obra poética em comparação com a obra ficcional do autor de Crisálidas. Leitor de Schopenhauer, Machado parece estar ecoando reflexão do filósofo em Sobre o fundamento da moral: “A compaixão para com os animais liga-se tão estreitamente com a bondade de caráter que se pode afirmar, confiantemente, que quem é cruel com os animais não pode ser uma boa pessoa”. Será, então, o caráter das pessoas o tema nuclear de Suave mari magno?
Entre os estudiosos que se dedicaram à produção em versos de Machado (Cláudio Murilo Leal, Fabiana Gonçalves, José Américo Miranda e outros), parece ter sido Lúcia Miguel Pereira a primeira a observar no poema um possível traço autobiográfico, haja vista, na segunda estrofe, a descrição muito próxima de uma crise epilética: o pobre cão “Arfava, espumava e ria,/ De um riso espúrio e bufão,/ Ventre e pernas sacudia/ Na convulsão”. Machado, desde a infância, sofria da doença, que, na velhice, tomou graves dimensões. É exatamente, aliás, a partir desse quadro enfermo que Silviano Santiago elaborou seu monumental Machado, que ele tem chamado de “romance de sobrevivência”. Nesses cruzamentos de tempos, gêneros e obras, não custa atentar para o nome do cão Quincas, que vem a ser um hipocorístico de Joaquim — primeiro nome de nosso escritor. Quereria ele, sutilmente, disfarçar-se, projetar-se, insinuar-se ironicamente entre o filósofo e o cão?
O fato é que o poema possui um “eu” que lembra a cena de um cão em agonia semelhante à de um epilético, condição em que vivia já o autor de Suave mari magno. Este “eu” estava, portanto, presente à cena, observando os curiosos que observam o cão moribundo; sobre estes (eu, curiosos, cão), paira ainda a nossa sombra onipresente, arquileitores, derradeiros curiosos. Parece, assim, que a citação de Lucrécio, inscrita no título, mais se dirige a nós, em nossa passividade distante, de apreciar, sem perigo, o infortúnio alheio, de “presenciar os males que não se sofrem”. Para o poeta Machado de Assis — que, epilético, entende profundamente a dor do cão agonizante —, a distância não é tanta assim. A expressão marítima do título, aliás, pode ser percebida, com a discrição de costume, no balanço rítmico e visual dos versos com 7/7/7/4 ou 7/7/4 sílabas, que desenham um iniludível e ambivalente vaivém no poema, como se encenando ondas.
Ambivalente é todo o poema, e tal traço talvez colabore para que ele esteja naquela dúzia de poemas eleitos por Bandeira. O curioso se detém “silencioso” e “como se” estivesse se comprazendo com o padecimento do cão sem nome, “na rua, ao sol de verão”. Talvez, ainda, este silêncio tenha a ver com o pensamento de Theodor Adorno em Dialética negativa: “As reflexões que dão sentido à morte são tão inúteis quanto as reflexões tautológicas. Quanto mais a consciência se arranca à animalidade e se transforma em algo firme e duradouro em suas formas, tanto mais tenazmente ela se estabelece contra tudo o que torna suspeita para ela a sua própria eternidade”. O silêncio dos curiosos impede ou evita qualquer metafísica da morte. Se pensarmos que “padecer” pode ser também — além de sofrer e morrer — suportar e resistir, quem sabe o poeta estivesse sinalizando que a situação de padecimento do cão era a sua, a de Quincas, a dos curiosos, a de todos os que se iludem com a ideia de eternidade, suave eternidade.