Do Donald Trump ao Ahmadinejad,
do mais pobre mendigo ao lord e à lady,
o que conecta toda a humanidade
é que não há no mundo quem não peide.
Jesus, Gandhi, Ionesco, Harold Pinter,
Rainha Elisabeth, Pompidou,
nenhum sabia controlar o esfíncter.
Todos soltaram vento pelo cu.
Do maior elefante ao menor rato,
o que é vivo, de fato, solta flato,
inda que o olfato indique que morreu.
Tudo o que vive causa o efeito estufa.
— até mesmo as ovelhas soltam bufa.
Essa agora, no entanto, não fui eu.
Gregorio Duvivier é figura bastante conhecida: ator de cinema e teatro, integrante do hilário Porta dos Fundos, cronista da Folha de S. Paulo, apresentador do Greg News, tem mais de milhão de seguidores no Instagram. Suas posições políticas à esquerda, radicalmente críticas ao atual governo, sua defesa da liberação da maconha, seu ateísmo sem disfarces, seus textos amparados em humor a um tempo sutil e sarcástico incomodam muita gente. Pop star da mídia, graduado em Letras, organizador da coletânea Poema-piada, breve antologia da poesia engraçada, é também autor de vários livros, entre os quais o recente Sonetos de amor e sacanagem (2021), que reúne 48 poemas. Em Soneto gasoso, e em praticamente todos os demais, Gregorio aposta na surpresa, no escracho, na irreverência, no deboche, para seduzir o leitor, por meio do riso (ainda que nervoso, constrangido). E é por meio do riso que, à maneira do que diz Theodor Adorno em A arte é alegre?, em seus talk shows, postagens, crônicas e poemas, Gregorio elabora uma obra em que confluem humor, política e pensamento.
Desde o título, Soneto gasoso, o assunto do soneto se insinua, e desde o primeiro verso o mau gosto vem se instaurando, com a citação de dois nomes da política conservadora: Trump, nos EUA, e Ahmadinejad, no Irã, em que pese a diversidade do que significam, não constam entre os políticos de admiração do poeta, nem provavelmente de seus leitores, mais alinhados com propostas de esquerda e libertárias, não-caretas nem opressoras. Dos dois bilionários, o poema passa “ao mais pobre mendigo” e a seguir “ao lord e à lady”, intensificando (e denunciando) oposições de riqueza material. De um ponto a outro, há algo que “conecta” essas diferenças, e vem a frase retumbante e cômica: “é que não há no mundo quem não peide”. Cômica não somente porque aciona o escatológico, evitado em bons e “lórdicos” ambientes, mas sobretudo porque as rimas pegam o leitor desprevenido: o inusitado da alusão ao ex-presidente iraniano e seu estranho nome — Ahmadinejad — ganha mais relevo quando o leitor percebe que ele rima com “humanidade”; de modo similar, quem poderia imaginar que “lady” — segundo o Houaiss “senhora distinta, bem-educada; mulher de posição social e/ou econômica elevada; título que se dá às senhoras da nobreza” — poderia rimar com o chulo “peide”?
Com precisão, Paulo Henriques Britto — exímio sonetista — aponta na quarta capa do livro: “Os deliciosos sonetos de Gregorio associam o capricho formal à informalidade e ao humor da dicção. Boa parte do humor vem das rimas inesperadas”. Em livro de 1978, Comunicação poética, Décio Pignatari advertia que as melhores rimas, com maior carga de informação, são as “imprevisíveis”. Nessa direção, a segunda estrofe exubera, quando rima o sobrenome — inglês — de um dos maiores dramaturgos do século 20, “Pinter”, com “esfíncter”, fibras musculares que contornam o ânus; não bastasse, vai rimar, sem pompa alguma, o solene nome — francês — “Pompidou”, que dá nome ao imenso centro cultural em Paris encomendado pelo presidente Georges Pompidou, com o chulíssimo monossílabo “cu”. Eis a estrofe toda: “Jesus, Gandhi, Ionesco, Harold Pinter,/ Rainha Elisabeth, Pompidou,/ nenhum sabia controlar o esfíncter./ Todos soltaram vento pelo cu”. Aparentemente aleatórios, os personagens citados também espantam, pois o poema nos incita a pensar: Jesus, o Salvador, também peidava? Gandhi, o pacifista, “soltava vento”? Ionesco, do absurdo, idem ibidem? A Rainha Elizabeth, uma lady, “não sabia controlar o esfíncter”?
O poema parece insinuar que, se a luta de classes não conseguiu ainda “conectar toda a humanidade” (se não abolindo, mas minimizando as abismais desigualdades), as diferenças de classe (de fama, ideologia, posses etc.) são temporariamente subsumidas no gesto coletivo e democrático do “pum” — termo eufemístico, caro aos infantes, que Vinicius de Moraes tão bem utilizou no poema-canção O ar (o vento): “(…) Quando sou fraco/ Me chamo brisa/ E se assobio/ Isso é comum/ Quando sou forte/ Me chamo vento/ Quando sou cheiro/ Me chamo pum!”. Também Miró da Muribeca, em Eu pensei fazer um poema, analisado no Rascunho n. 200, de dezembro de 2016, lançou mão da imagem desagradável, porém divertida, do “peido dos pobres”, que será racionado. Registre-se de igual modo o Soneto flatulento, de Glauco Mattoso, que diz como o peido “inspira o riso/ gostoso, desbragado, gargalhado”. Ou seja, há uma espécie de “tradição” poética que, aqui e ali, vai na contramão do bom gosto, do bom senso, do bom mocismo, do cosmético e perfumado. No caso de Glauco e de Gregorio, o fato de essa contramão vir em forma de soneto amplifica a ironia.
Se as duas quadras primam pela surpresa na rima entre nomes próprios e chulos, os dois tercetos vão explorar jogos sonoros internos aos versos. Os decassílabos da estrofe três seguem a lógica do verso de abertura: “Do maior elefante ao menor rato,/ o que é vivo, de fato, solta flato,/ inda que o olfato indique que morreu.”. Ou seja, do maior ao menor, todos os vivos se irmanam na pouco poética emissão de gases. E o poema vai querer encenar, em si, tal emissão, quando dispara em sequência FATO, FLATO e OLFATO, que encontram eco na repetição de INDA QUE, INDIQUE e QUE. Não satisfeito em fazer da palavra o palco por onde o “cu solta o vento”, o poema pulveriza o peido em fonemas que simulam o ato, como em “eFeito estuFa, oVelhas, buFa, Fui”, e também em “eStufa, meSmo aS ovelhaS Soltam, eSSa”, pois tais fonemas — fricativos (F, V, S), labiodentais (F, V) e alveolares (S) — insinuam a ideia de sopro. Curiosamente, a definição de fricativo (“ruído característico de fricção, resultante da passagem do ar por uma fenda pouco larga”) se encaixa à feição ao som do flato quando em ação.
Ator ligado à comédia, o poeta Gregorio Duvivier sabe os refinados recursos do humor, do riso, da gargalhada. O derradeiro terceto, em versos heroicos, arremata o despu(m)dorado poema: “Tudo o que vive causa o efeito estufa./ — até mesmo as ovelhas soltam bufa./ Essa agora, no entanto, não fui eu”. Nesse fecho, o poema traz à baila o debate em torno do efeito que os flatos (gases, bufas, peidos, ventos, arrotos e que tais) provocam no efeito estufa. Dos famosos (presidentes, religiosos, escritores e rainha), o poema passa aos animais — elefante, rato, ovelhas. O poema não se propõe a entrar no debate científico acerca do efeito estufa. Apenas, e não é pouco, assinala que “Tudo o que vive causa o efeito estufa”, e aí subentende-se que essa causa pode vir dos gases animais (e, portanto, também do peido das pessoas) ou de outros elementos, sobretudo da industrialização desenfreada, que induz ao uso excessivo de combustíveis e à prática do desmatamento.
Para coroar o Soneto gasoso, após indicar que vivos e mortos soltam flatos, em mais uma inusitada rima, lemos: “Tudo o que vive causa o efeito estufa./ — até mesmo as ovelhas soltam bufa”. O termo bufa significa literalmente “ventosidade anal silenciosa e geralmente fétida”, mas, no contexto cômico do poema, lembra algo de seu parônimo bufo, bufão, que é aquele que se comporta de modo inoportuno ou indelicado, que é exatamente a situação que, na vida real, ocorre quando uma “bufa” acontece. A constrangedora situação costuma, normalmente em grupos de jovens, ser atenuada com a negação dos convivas: “não fui eu”, “não fui eu”, não foi ninguém, enfim. Contrariando o poeta, porém, deve ser dito que, sim, essa ópera-bufa é de autoria dele, está lá na capa do livro. Assim como são dele também outras tantas pérolas do livro, feito o Soneto da infidelidade, em que relê Vinicius, o Soneto da máscara, sobre tempos de covid-19, o Soneto francês, em que brinca com a língua até um “cê sifu”, e os inúmeros — se não todos — metassonetos.
João Cabral de Melo Neto abre o livro A escola das facas (1980), com o poema O que se diz ao editor a propósito de poemas, e diz: “Eis mais um livro (fio que o último)/ de um incurável pernambucano;/ se programam ainda publicá-lo,/ digam-me, que com pouco o embalsamo”, e assim segue, em sua dicção íngreme, falando de fígado, pâncreas, câncer, como que avisando ao editor e ao leitor do que virá ao virar das páginas. De modo bem distinto, Gregorio Duvivier abre o livro Sonetos de amor e sacanagem (2021), com o poema Soneto de apresentação, cuja quadra inicial diz: “Deste livro, veloz, me livraria/ nada que encontras nele é necessário./ Não entendo o porquê da Companhia/ publicar tantos livros desse otário.”; a seguir, recomenda “autores melhores nesse páreo”, tipo Bocage; se divertimento, a Constituição; se “Putarias num livro de ficção?/ Tem piores no Velho Testamento”. De modo semelhante a Cabral, Gregorio avisa à editora e ao leitor de sua dicção, só que infame, desbocada (feito seu xará barroquista), cheia “de sacanagem” e palavrão. É quase um poeta marginal escrevendo soneto.
Se, de um lado, tem termos como “peide”, “cu” e “flato”, que incomodam muita gente, por outro há “Ahmadinejad”, “Harold Pinter”, “esfíncter” e “bufa”, que muita gente desconhece. Assim, esse Boca do Inferno da poesia contemporânea, “misto de liceu francês com Lapa” (Fernanda Torres, na quarta capa), presta um bom serviço a nós e a boa parte de seu milhão de seguidores, possíveis leitores, com tantas informações e, sobretudo, rindo, gozoso, sem prisão de vento, sem medo de usar o bom combate do humor. Em flato sensu.