Sítio, de Claudia Roquette-Pinto

Poema trata da tragédia urbana que nos rodeia o tempo todo
30/09/2017

O morro está pegando fogo.
O ar incômodo, grosso,
faz do menor movimento um esforço,
como andar sob outra atmosfera,
entre panos úmidos, mudos,
num caldo sujo de claras em neve.
Os carros, no viaduto,
engatam sua centopeia:
olhos acesos, suor de diesel,
ruído motor, desespero surdo.
O sol devia estar se pondo, agora
— mas como confirmar sua trajetória
debaixo desta cúpula de pó,
este céu invertido?
Olhar o mar não traz nenhum consolo
(se ele é um cachorro imenso, trêmulo,
vomitando uma espuma de bile,
e vem acabar de morrer na nossa porta).
Uma penugem antagonista
deitou nas folhas dos crisântemos
e vai escurecendo, dia a dia,
os olhos das margaridas,
o coração das rosas.
De madrugada,
muda na caixa refrigerada,
a carga de agulhas cai queimando
tímpanos, pálpebras:
O menino brincando na varanda.
Dizem que ele não percebeu.
De que outro modo poderia ainda
ter virado o rosto: “Pai!
acho que um bicho me mordeu!” assim
que a bala varou sua cabeça?

Embora já tivesse alguns livros publicados, Claudia Roquette-Pinto ganhou notoriedade, no âmbito acadêmico, com o poema Sítio — dado a lume primeiramente na revista Inimigo rumor, em 2001, e depois no livro Margem de manobra (2005) — com a repercussão bastante positiva de um ensaio sobre ele, de autoria de Iumna Maria Simon, em 2008. Antes desse artigo, contudo, Marcelo Sandmann (2002) publicara um ensaio também acerca do poema. E, ainda, Paulo Henriques Britto (2010) ampliou as considerações de ambos em seu livro Cláudia Roquette-Pinto, para a Coleção Ciranda da Poesia, da Eduerj. Os três ensaios, portanto, afora outras referências esparsas, reforçam a afirmação de Paulo Henriques de que Sítio será “lido no futuro como um dos poemas centrais da época em que foi escrito”. Talvez a própria poeta tenha tido esse vislumbre quando o colocou como poema de abertura de seu livro.

As três eficazes leituras valorizam, evidentemente, o engenho do poema que — para tratar, sem espetacularizar, de uma tragédia urbana e, sobretudo, tendo uma criança como vítima — funciona quase como um conto, sobrepondo camadas de perspectivas, de que a trágica fala do menino entre itálicos que a rodeiam seria um exemplo máximo. Todos os ensaístas atentam para as conexões entre a forma e a história, mas Iumna é a mais incisiva: “O arranjo formal atesta que a poesia que oferece proteção por imagens falha diante da bala perdida e precisa empreender uma volta à referência, mesmo que com isso se rompa o ritmo, a imagética e o timbre da escrita”.

Chama a atenção a exótica associação do verso 19 (pouco explorado nas análises citadas), “penugem antagonista”, cujo adjetivo, no contexto em que aparece, faz recordar considerações de Theodor Adorno acerca do termo: em Teoria estética, afirma que “os antagonismos não resolvidos da realidade retornam às obras de arte como os problemas imanentes da sua forma”. Em Palestra sobre lírica e sociedade, diz o filósofo: “a configuração lírica é sempre, também, a expressão subjetiva de um antagonismo social. Mas como o mundo objetivo, que produz a lírica, é um mundo em si antagonístico, o conceito de lírica não se esgota na expressão da subjetividade, à qual a linguagem confere objetividade”. A penugem é antagonista porque ela, no poema, exerce ação incompatível ao que dela se espera: porque, sendo uma fina plumagem que retoma a metáfora da “cúpula de pó” (verso 13), escurece “os olhos das margaridas,/ o coração das rosas”. No poema, muitos elementos contribuem — para além da óbvia “penugem antagonista” — para que uma interpretação à luz da história se faça. Listá-los seria quase parafrasear as três ótimas leituras referidas, às quais convido o leitor curioso.

Aponte-se a polissemia do título, que encontra guarida no poema: “sítio” pode ser, e no poema é, “lugar”, “chácara”, “cerco” e, também, aciona a expressão “estado de sítio”. Desde o título, dirá Sandmann que “todo o texto, com sua saturação de tensões, é um preâmbulo para o impacto da última cena: […] A bala terá certamente sido disparada no primeiro verso, para chegar a seu alvo no verso derradeiro, depois de uma distensão temporal impressionante e uma trajetória que agrega/desagrega todo o complexo de espaços (naturais e sociais) da grande metrópole”. Entre o aprazível bucólico de um sítio-chácara e um contexto de intervenção do Estado no cotidiano dos cidadãos, entre a paz e a barbárie, transita o chocante poema.

Aqui, o trágico destino do menino baleado parece apontar para além de um caso, mas para uma grande coletividade — sobretudo de crianças — que sofre as consequências de um complexo estado de coisas, que inclui diferença socioeconômica brutal entre classes, luta por espaços de poder entre grupos de traficantes e policiais, convivência conflituosa entre cidadãos do asfalto e do morro, em suma, uma inequívoca instabilidade social que faz com que, por exemplo, o “mar” perca sua clássica aura de beleza e se transforme num “cachorro imenso, trêmulo,/ vomitando uma espuma de bile”. No quadro da poesia recente, esse poema explicitaria uma espécie de poética da violência urbana, que incorpora na sua forma o drama diário de milhares de pessoas, inclusive e sobretudo crianças.

Se em Sítio há um menino vítima de uma bala que o encontra em plena infância, “brincando na varanda”, no poema Em Saravejo, do mesmo livro, há uma menina e a imagem que impacta a visão — de um “buraco da bala no peito”. É muito triste constatar que o mesmo signo — “bala” — sirva, desumana ironia, para designar aquilo que tira a vida e aquilo que, guloseima, tanto atrai as crianças.

Claudia Roquette-Pinto tem se firmado como nome de ponta no cenário poético contemporâneo, com uma poesia que interessa seja pelo caráter crítico que enforma Sítio, seja pela abordagem de questões ligadas ao corpo, ao feminino, à própria linguagem. Em entrevista para o periódico Matraga, em 2010, Heloísa Buarque de Hollanda diz que “Cláudia olha pro mundo feito uma fera ferida”. Talvez este olhar de fera ferida, captado pela ensaísta, seja o lugar de que a poeta parta para dar a seus versos esse tom de solidariedade e cumplicidade em direção àqueles que, anônimos, sem perceberem, são atingidos por uma, dez, mil, inúmeras balas perdidas. Desolados, o poema nos faz recordar uma conhecida canção: “Oh! Minha estrela amiga/ Por que você não fez a bala parar?”. Mas a bala, produzida para a morte, em direção a nossas cabeças, nenhuma estrela amiga parece ser capaz de parar.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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