No território indígena
O silêncio é sabedoria milenar
Aprendemos com os mais velhos
A ouvir, mais que falar.
No silêncio da minha flecha
Resisti, não fui vencido
Fiz do silêncio a minha arma
Pra lutar contra o inimigo.
Silenciar é preciso,
Pra ouvir com o coração
A voz da Natureza,
O choro do nosso chão.
O canto da mãe d’água
Que na dança com o vento
Pede que a respeite
Pois é fonte de sustento.
É preciso silenciar
Para pensar na solução
De frear o homem branco
E defender o nosso lar
Fonte de vida e beleza
Para nós, para a nação!
Boa parte dos leitores de poesia já leu poemas sobre a cultura indígena. Mas a maior parte jamais leu poemas feitos pelos próprios indígenas. Desde algum tempo, o termo “índio” vem sendo abandonado, embora o senso comum, ignorando o politicamente correto, insista no uso. Essa resistência se dá por motivos mesmo ideológicos, em gesto linguístico e simbólico de descolonização. Cada vez mais se impõe a expressão “povos originários”, que procura assim recordar a todos o lugar ancestral dessa imensa e diversificada “nação”, conforme termina o poema Silêncio guerreiro, de Márcia Kambeba, quinto poema de Ay Kakyri Tama: eu moro na cidade (2018, versão digital kindle).
A aparente simplicidade formal do poema se dá a ver, sem pudor, sem malabarismos verbais, sem elaborados hermetismos, sem afetações narcísicas — traços tão comuns da lírica brasileira recente. Todos os versos se iniciam, ao modo tradicional, com letras maiúsculas, e todas as estrofes terminam em ponto final, de modo didático. Suas quatro quadras e o sexteto de arremate comportam 22 versos polimétricos, que vão de cinco a treze sílabas, com predomínio do setissílabo, o que proporciona certo ritmo à leitura, cadência ampliada pelas rimas consoantes no esquema básico ABCB: milenar/falar, vencido/inimigo, coração/chão, vento/sustento; e ainda, silenciar/lar, solução/nação.
O poema se quer transparente, com adoção de uma linguagem referencial, direta, com tom testemunhal e de denúncia. Convivem no poema três vozes: há uma espécie de narrador, que reverbera sentenças de verdade (“O silêncio é sabedoria milenar”; “Silenciar é preciso”); há um sujeito que registra lembranças e atitudes pessoais (“minha flecha”; “Resisti, não fui vencido/ Fiz do silêncio a minha arma”); e há, sobretudo, um sujeito que fala em nome do coletivo (“Aprendemos com os mais velhos”; “nosso chão”; “nosso lar”, “Para nós, para a nação!”). O ponto nuclear do poema se sintetiza desde o título: o silêncio. Mas o “silêncio guerreiro”, se guarda algo em comum com o silêncio do “homem branco”, dele muito mais se distingue.
De imediato, e de modo bem distante da egoica, autocentrada e solitária vida urbana, no cotidiano da vida indígena (sempre considerando a impossibilidade de adentrar aqui o campo dos incomensuráveis e diversos mundos que a expressão “vida indígena” concentra), diz o poema: “Aprendemos com os mais velhos/ A ouvir, mais que falar”. Em seu clássico O narrador, Benjamin falava da crescente perda de interesse pela experiência do velho, do outro, antecipando um estado de ruptura radical nos modos de comunicação entre as pessoas. O silêncio, na perspectiva filosófica que abraça o poema, serve para aprender, para resistir, para ouvir, para pensar. Não é silêncio que se ensimesma em si, em encenados segredos, ou belo silêncio estetizante, com teor mais ou menos niilista — em ambos, o silêncio como espetáculo.
Para um guerreiro da nação indígena, silêncio é momento em que se pensa a sobrevivência real, concreta, “contra o inimigo”. Seus aliados são o corpo (coração), a natureza (Natureza, vento), o passado (“choro do nosso chão”), a tradição (mãe d’água) — tudo isso é “fonte de vida e beleza”. O inimigo está literalmente nomeado: “o homem branco”.
Na história indígena, como se sabe, o genocídio da nação foi a norma. Catástrofe sem limite. Espanta (para alguns de nós) todo o estardalhaço — movido evidentemente por interesses econômicos — em torno do marco temporal. O “silêncio” em relação a essa história e mesmo ao presente é eloquente. Na política, figuras como Cacique Raoni e Sônia Guajajara são exceções, como exceções foram e são os artistas que, mesmo não indígenas, emprestaram sua voz para dar visibilidade à situação de precariedade de uma expressiva população. Na poesia, especificamente, lembremo-nos de I-Juca Pirama, de Gonçalves Dias, e Cobra Norato, de Raul Bopp; na canção, de Um índio, de Caetano Veloso, e Todo dia era dia de índio, de Jorge Ben.
Causa indígena
Talvez menos conhecidos, vale registrar alguns poemas que simpatizam com a causa indígena: (a) em Papo de índio (Muito prazer, 1971), de Chacal, bem no espírito antropofágico oswaldiano, se mostra o “desencontro de civilizações”. Os “ômi de saia preta”, com fé e valores estranhos, são recusados; (b) Leminski lança seu insight: “xavante/ muitos xxxxx/ avante” (Caprichos & relaxos, 1983): a ideia de “avante” indica estar a cultura indígena, particularizada na tribo xavante, adiantada em relação à cultura urbanizada; (c) com Canibalismo e Homenagem póstuma (MPB: Muita Poesia Brasileira, 1982), Leila Míccolis diz da luta indígena contra colonizadores externos (portugueses, holandeses) e internos (burgueses, grileiros, fazendeiros). Registrem-se ainda outros poemas de interesse: 19 de abril, Dia do índio, de José Paulo Paes (Calendário perplexo, 1983); MiscigeNAÇÃO, de Millôr Fernandes (Poemas, 1984); Para um atrito com a tribo, de Glauco Mattoso (Cancioneiro carioca e brasileiro, 2008).
Inúmeros estudos — de múltiplas áreas do saber: história, antropologia, sociologia, economia etc. — tentam entender e explicar algo dessa r’existência gigantesca. A literatura que, mesmo não feita por indígenas, simpatiza com a causa é bem extensa. Com visibilidade, hoje, além de Márcia Kambeba, na poesia indígena feita por mulheres há Eliane Potiguara, Graça Graúna, Auritha Tabajara, Julie Dorrico, Marcia Mura, entre outras. Se a solidão acanhada é um topos da poesia urbana, a despeito (ou por causa) das multidões das metrópoles, o pertencimento orgulhoso caracteriza a poesia feita por indígenas, a despeito (ou por causa) da redução da população. Sobre essa literatura e, em particular, essa poesia, diminui o preconceito e cresce o interesse: rápido entre leitores e pesquisadores universitários, lento nos demais circuitos.
O poema Silêncio guerreiro, escapando à tradição, não se dá a espetáculo, como, por exemplo, I-Juca Pirama, paradigma da nossa literatura romântica, não só pela excelência dos versos rítmica e plasticamente moldados conforme a ação narrada (no dizer de Candido: uma “analogia do movimento”), mas igualmente por atender a princípios estéticos e ideológicos da nascente nação, ou seja, por erigir (ainda que artificiosamente) um tipo pátrio com envergadura tão heroica quanto os heroicos modelos medievais da velha Europa. O guerreiro no poema de Kambeba fala, no fundo, de si, de seus pares e também para esses leitores que, após lerem o poema, percebem que não ouvem mais os seus velhos, o coração, a Natureza, a mãe d’água. Não sabem nada ou quase nada dos povos originários.
De um lado, o poema de Márcia dialoga com uma tradição de poemas indígenas (feitos ou não por indígenas), e de outro com outra longa tradição na poesia — e na filosofia! — que vai pensar, em versos, o conceito de silêncio. A título de amostragem, vejamos breves exemplos de como poetas contemporâneos lidaram com o tema: (a) Sem título (Livro primeiro, 1990), de Eucanaã Ferraz: “Momento vazio/ sem nenhum desejo/ azulejo sem qualquer desenho/ uma espécie fina de silêncio// Qualquer verso que se faça/ é um gesto rude/ tamanha é a suavidade do nada”; (b) Arte do chá (Distraídos venceremos, 1987), de Paulo Leminski: “ainda ontem/ convidei um amigo/ para ficar em silêncio/ comigo// ele veio/ meio a esmo/ praticamente não disse nada/ e ficou por isso mesmo”; (c) [sem título] (Tudos, 1990), de Arnaldo Antunes: “silêncio// não// se lê”. Eucanaã arquiteta uma delicada metafísica do silêncio. Leminski aciona seu querido Oriente para fazer loas ao silêncio. Arnaldo evidencia o caráter aporético da indizibilidade do silêncio. Todos, em suma, fazem poemas em torno do silêncio.
Já o “silêncio guerreiro” de Márcia Kambeba é de outra ordem: milenar, ancestral, respeitoso; é arma e resistência; é instrumento e veículo para compreensão da história; é tática e estratégia: o silêncio é um momento em que o guerreiro pensa na solução “de frear o homem branco”, o “inimigo” genocida que vem, há séculos, e diariamente, agindo contra a nação indígena. Os bravos guerreiros românticos pegavam em armas, como sinal de valentia e heroísmo. O guerreiro atual sabe da disparidade de poder bélico. A sobrevivência e mesmo a paz cotidiana dependem, entre tantos movimentos, de conquistar a solidariedade dos “brancos”, de obter o reconhecimento de seus direitos, de colher práticas políticas e jurídicas concretas.
A trajetória de Márcia Kambeba — nascida numa aldeia Ticuna, mestre em Geografia e doutoranda em Linguística na UFPA, poeta, ensaísta, fotógrafa, ouvidora da capital paraense — já diz de sua atuação intensa, transitando por ambientes e mundos tantas vezes conflitantes. Com essa experiência pessoal, de luta e de arte, Márcia assina Kambeba. Para pensar como guerreiro da nação, tem de sentir como ele, e o verso “Resisti, não fui vencido” não deixa dúvidas quem fala no poema. Por isso, porta-voz de si e da nação, Márcia Kambeba pode perguntar (como se fez Riobaldo) àqueles leitores que jamais leram poemas feitos pelos próprios indígenas: “O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais”. E se o silêncio é guerreiro, a gente é guerreira, e o poema é guerreiro — demais, demais, demais.