(Sherazade finalmente se assusta: Shariar come a lua das noites), de Adriane Garcia

O poema abandona os finais felizes e pacificadores e, adentrando a realidade, os reescreve com humor e melancolia
Adriane Garcia, autora de “Nome Do Mundo”
01/06/2022

Sherazade acredita em seus superpoderes
E mesmo sabendo que Shariar
Não lhe conta nada do seu passado
Ela pensa que isso é saber tudo
Shariar não mata assim que elas chegam
Primeiro ele conta histórias
Primeiro ele diz que ama
Depois ele bate
Depois ele espanca
Depois ele diz que ama

Mesmo desconfiando que o amor dói mais do que
Deveria
Elas ficam até seu abatedouro
Acreditando em seus superpoderes
De mudar Shariar

Foi Shariar quem inventou essa história
De que Sherazade continuava viva.

O que há de bom na vasta biblioteca de Babel? Circular por seus corredores infinitos e conhecer personagens de relevo da literatura e da cultura mundial. Sherazade virou uma espécie de musa da narrativa, pois passou a simbolizar aquela personagem que seduz o rei, o outro, o homem, o violento, o obcecado, o assassino, com a força de sua narrativa, de sua história, de seu enredo, de sua lábia, de sua trama. Ademais, com essa força, ela salva as mulheres da morte. A lenda todos sabemos (a despeito das mil variações existentes): o rei Shariar, traído pela esposa, resolve se vingar, e, noite após noite, possui e mata uma mulher, para que não seja novamente traído; até que aparece Sherazade, que começa a lhe contar uma estória que jamais termina, e assim — enredado, curioso, seduzido — desiste de sua prática homicida (ou feminicida, de modo mais exato). Na lenda, o rei assassino é perdoado. Sua prática, porém, permanece séculos afora e chega, sem o glamour de As mil e uma noites, aos nossos dias de hoje. O poema fala disso.

O poema, repetindo a estratégia de todo o livro Fábulas para adulto perder o sono (2017), abandona os finais felizes e pacificadores para o leitor-mirim, abandona o princípio de prazer e adentra o princípio de realidade, reconfigurando todas as estórias e histórias que seleciona para reescrever, com humor e melancolia. Aqui, a musa Sherazade passa por ingênua, pois “acredita em seus superpoderes”, que se revelam vãos, quando, ao final, surpreendentemente, se diz que “Foi Shariar quem inventou essa história/ De que Sherazade continuava viva.”, ou seja, o narrador da estória, o dono e vencedor da história continua sendo o rei, o homem, o violento, o assassino; e Sherazade é mais uma mulher morta. Se a fábula tradicional adormecia crianças, com seu happy end e com sua moral edificante, a fábula de Adriane Garcia, honesta desde o título, quer que o adulto perca o sono, isto é, que se preocupe com aquilo que, nada feliz nem edificante, lê.

E o que lê o leitor nas Fábulas de Adriane Garcia? Lê finais infelizes, porque reais e realistas, de estórias e histórias que envolvem Penélope, Branca de Neve, Dorothy, Rapunzel, Julieta, princesas e belas, patinhos feios, vovozinhas, cachinhos dourados, pequenas sereias, gatas borralheiras, porquinhos, pinóquios e que tais. Sim, são paródias, no sentido mesmo de par ode, canto paralelo, mas são mais do que isso, percebe Eucanaã Ferraz no prefácio ao livro: “Mais que paródia, poemas pautados pela perversão: e não só em torno de fábulas se fazem, pois vão buscar também personagens de filmes, contos, narrativas da tradição oral, enfim, lá onde o universo infantil alguma vez foi usado com o intuito de deleitar ou ensinar”. Embora com diverso estilo, o espírito das Fábulas de Adriane lembra o hilário Bufólicas de Hilda Hilst, em que não fica fada sob fábula, digo, pedra sobre pedra, estrofe por estrofe.

A primeira estrofe se abre impactante: “Sherazade acredita em seus superpoderes”. Relendo o poema, com pé no chão do contemporâneo, sabemos que os tais superpoderes não existem: são ilusórios. Mais ainda: foram inventados por aquele mesmo, o inimigo, que a oprime (oprime e mata a mulher) desde sempre: o homem-rei. Apesar das evidências (“mesmo sabendo que”, “mesmo desconfiando que”) de que o homem não é digno de confiança, a mulher vai adiante. O narrador do poema sabe do método do traumatizado e vingativo rei: “Shariar não mata assim que elas chegam/ Primeiro ele conta histórias/ Primeiro ele diz que ama/ Depois ele bate/ Depois ele espanca/ Depois ele diz que ama”. Ou seja, quem seduz é ele (“conta histórias”, “diz que ama”), mas com o ódio em mira: ele bate, ele espanca. Na segunda estrofe, a figura de Sherazade (“ela”) dá lugar ao coletivo “elas”, que continuam “acreditando em seus superpoderes” de “mudar Shariar”, isto é, mudar um comportamento machista, patriarcal, autoritário, destrutivo. Com isso, caminham “até seu abatedouro”.

Abatedouro significa “local reservado para o abate de reses destinadas ao consumo público; matadouro”, local em que se mata(m) — bois ou mulheres, inclusive as sherazades que acreditaram nos superpoderes de mudar o pensamento do dono do abatedouro. A despeito da ironia, e da postura lucidamente feminista da poeta, o poema sabe que Shariar nunca prestou e continua hediondo e sórdido, mas chama a atenção para quem crê no herói, no príncipe, no bonzinho, no galã, no padre, no patrão. Na segunda edição de Fábulas, em 2017 (a 1ª foi em 2013, quando ganhou o Prêmio Paraná de Literatura), poucas páginas antes de (Sherazade finalmente se assusta: Shariar come a lua das noites), um outro poema, de nome Sherazade, fala no arrependimento de, entre “amor e ódio”, ter-se deixado levar pelo tempo e nada ter feito: “Porque quis te agredir/ A vida inteira/ E por mil e uma noites/ Contei histórias sensatas”. Enquanto isso, Shariar tramava, insensível e insensato, sua morte, Sherazade.

Sherazade se torna, no poema de Adriane Garcia, uma antimusa, a não ser seguida em sua ilusão de superpoderes e de ingênua confiança no rei-homem, que a levam ao abatedouro. Sherazade poderia se libertar, conforme fez Genoveva, em Noite de almirante, de Machado, livrando-se do romântico Deolindo: “quando jurei, era verdade”. Ou, como elaborou Antonio Carlos Secchin, em seu microconto Fim de papo: “Na milésima segunda noite, Sherazade degolou o sultão”, para frenesi geral. Ou ainda ao modo de John Barth, na pós-moderna novela Dunyazadíada (de Quimera, 1972), que dá a Dunyazade, irmã de Sherazade, o papel de narradora das histórias — o que transforma tudo, é claro.

“Não convém a gente levantar escândalo de começo, só aos poucos é que o escuro é claro”, diz Riobaldo, ampliando as mil citações. Machado, Secchin, Barth ou Rosa: homens, escritores, que, amparados em seus narradores, de algum modo tentaram, diria Gil, “mudar o curso da história/ por causa da mulher”. Pelo que se vê, apesar da solidariedade, o fracasso foi retumbante. Bentinho exilou e “matou” Capitu. Riobaldo não soube ou não quis proteger Diadorim da morte. As tenebrosas estatísticas de feminicídio estão aí para quem quer ver. O atual presidente parece estimular, com sua postura machista e violenta, uma postura machista e violenta de seus seguidores. Adriane Garcia suspende a sororidade feminina (quando pueril), ignora a resiliência e toda forma de dependência, e parte pra cima, pra acordar de verdade — se não as meninas — as mulheres.

Caso típico é a menina-mulher Rapunzel, relida no belo (e sempre trágico, infeliz) poema Rapunzel escrevendo carta:

Moço, eu imploro, me salve
Que estou numa torre apertada
Feito um quarto de empregada

Aqui tem uma janela
Mas meu cabelo caiu
Um a um

A bruxa, moço, cuidado
Apossou-se de meu esqueleto
E chacoalha dentro de mim

E toda noite gargalha
Pro dragão que vigia a entrada
Vir, bestial, usar meu corpo

Moço, eu imploro, me salve
Até os passarinhos conhecem
A fama da sua espada

E se me encontrar não confunda
O último pedido de meus olhos:
O golpe de misericórdia.

Se, sem misericórdia, Sherazade foi ludibriada, enganada, pelo rei-homem, que a levou ao matadouro, aqui Rapunzel, para escapar da bruxa e do dragão, apela ao moço-príncipe que a mate (na historinha clássica, o príncipe, um belo moço, a salva, e são felizes para sempre). A ideia geral do livro é acordar, acordar todos: mas, desde sempre, os homens não querem ser acordados (nem despertarem, nem fazerem acordos: só querem matar ou salvar, protagonistas; não querem ser parceiros). Por isso, o enigmático título do poema — tão irônico quanto o título do livro e de tantos outros poemas (Branca envelhece na neve, A fera e a fera, Cachinhos espetados, Vovozinha diabética) — diz: (Sherazade finalmente se assusta: Shariar come a lua das noites). Os parênteses insinuam um pensamento à margem, uma hesitação, uma impressão. A primeira parte do título antecipa um estado de alerta necessário à consciência da mulher; a segunda parece uma metáfora que mistura a origem da história, As mil e uma noites, à postura do rei, ao comer a lua, ou seja, ao derrotar Sherazade, a mulher-símbolo das mulheres.

Na simbologia, a lua emblematiza feminilidade, fertilidade, passividade. Comer a lua seria possuir e matar a mulher, Sherazade, e todas as demais. Shariar não contava, contudo, com a astúcia da mulher contemporânea. Há séculos, na coletânea As mil e uma noites, o mundo testemunhou fábulas, sob o comando de Sherazade. No século 21, o poema, a partir de um narrador em terceira pessoa (um “ele-lírico”), diz que, na verdade, foi Shariar “quem inventou essa história” de que teria sido engambelado por Sherazade. Mas — uma dobra a mais — outra voz, a da poeta e mulher Adriane Garcia, autora de Fábulas para perder o sono, nos faz ver que há um pensamento feminino e feminista que não só se opõe ao machismo e falocentrismo, mas que se dedica a alertar para a ingenuidade de se achar que Sherazade resolve ou resolveu a parada, com sua lábia e sedução de contar histórias.

A história, sabemos, é um pesadelo do qual tentamos acordar, diz Dedalus, de Joyce. É o que faz, poema a poema, o livro de Adriane, tentando acordar homens e mulheres. O último poema não deixa dúvida: Que a Cuca veio pegar: “Agora eu não tenho ninguém/ Exatamente agora sou eu e eu:/ Nana, neném.”. Eu sou a Cuca, eu sou o neném. Não preciso de moço-príncipe nem de Shariar. Preciso Sherazadiar – o que há de bom.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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