(…)
homem forrado
homem ferrado
homem rapina
homem rapado
homem surra
homem surrado
homem buraco
homem burra
homem senhor
homem servo
homem sobre
homem sob
homem saciado
homem saqueado
homem servido
homem sorvo
homem come
homem fome
homem fala
homem cala
homem soco
homem saco
homem mó
homem pó
quem baraço
quem vassalo
quem cavalo
quem cavalga
quem explora
quem espólio
quem carrasco
quem carcaça
quem usura
quem usado
quem pilhado
quem pilhagem
quem uísque
quem urina
quem feriado
quem faxina
quem volúpia
quem vermina
(…)
O poema acima é apenas um trecho do poema-livro Servidão de passagem (1961), de Haroldo de Campos. Autor de vasta e fundamental obra, sobre a qual já se consolidou uma também vasta fortuna crítica, Haroldo elaborou “uma poesia erudita, de alta voltagem linguística, mas especialmente atenta à sua situação, aos acontecimentos políticos, à diversidade de culturas, aos diálogos tradutórios”, como sintetiza bem Marcos Siscar no volume Haroldo de Campos, da coleção Ciranda da Poesia (Eduerj). Estreando em 1950, com Auto do possesso, o paulista — graduado em Direito e com tese sobre Macunaíma, com orientação de Antonio Candido — esteve à frente durante décadas da cena da literatura brasileira, não só pela sua liderança (com o irmão Augusto e o amigo Décio) junto aos movimentos da Poesia concreta, mas também pela sua consistente produção poética, tradutória e ensaística. Entre tantas contribuições, citem-se as traduções-transcriações de Pound, Joyce, Goethe, Mallarmé, Homero e Maiakóvski; o ensaio O sequestro do barroco na formação da literatura brasileira, em que diverge de métodos e conceitos do orientador; o longo poema em prosa Galáxias e o soberbo A máquina do mundo repensada (ver estudo de Diana Junkes: As razões da máquina antropofágica). Falecido em 2003, aos 73 anos, recebeu vários prêmios, inclusive um Jabuti de “Personalidade literária do ano de 1992” — que dão a ver a iniludível e literalmente concreta importância de sua trajetória em nossas letras.
Apesar de ser um fragmento, o excerto ilumina o conjunto de Servidão de passagem, haja vista que o trecho acima lança mão de recursos similares aos das demais partes: concisão, paralelismo, antíteses e impactantes efeitos sonoros, do ponto de vista mais formal; e metáforas da exploração e da luta de classes, em termos semânticos. Visualmente, percebe-se uma sequência de (a) 12 dísticos, todos começando com a palavra “homem”; a seguir, (b) vêm 6 dísticos, a partir da palavra “quem”; após, (c) mais uma sequência de 6 “quem”, mas agora numa estrofe única. Ao todo, 42 versos curtos, que variam entre 3 e 5 sílabas, o que dá à leitura uma fluência rítmica, encantatória, que vai contrastar, contudo, com o denso teor crítico e político que os atravessa, tensionando “o elo entre o homem e o seu mundo”, como aponta Inês Oseki-Dépré, em Haroldo de Campos, ou a educação do sexto sentido. Passo a passo, do “homem” ao “quem” presenciamos um processo crescente de sujeição e reificação.
Esse bloco, da obra do agitado ano de 1961, já começa com [1] “homem forrado/ homem ferrado”: uma letra é suficiente para indicar a distância daquele que possui bens, está “fOrrado”, daquele que nada ou pouco tem, “fErrado” que é. Em [2] “homem rapina/ homem rapado”, se explicita que há quem roube e quem é roubado, lembrando célebre verso do seiscentista Gregório de Matos — “Neste mundo é mais rico o que mais rapa” — e assim lembrando quão antiga é tal conduta desonesta. O dístico [3] indica que, enquanto um é agente da “surra”, um outro, subalterno, é objeto; logo, “surrado”, espancado. Funcionando por elipses e oposições, o poema pede participação ativa do leitor, como em [4] “homem buraco/ homem burra”, que deverá provocar estranhamento, pois à primeira vista a palavra “burra”, tomada como adjetivo, não concordará com o substantivo “homem”, até que esse leitor ativo e curioso descubra se tratar de um verbo — “burrar” — antigo, inusual, e que significa “desmoronar, erodir” — quando então o dístico ganha sentido: a erosão de um buraco. O poema prossegue com [5] “homem senhor/ homem servo” e [6] “homem sobre/ homem sob”, em que o verso de cima (senhor, sobre) já visualiza espacialmente o poder opressivo de uns em relação a outros (servo, sob).
O poema vai acumulando imagens de opressão, exploração, dominação, enquanto segura o leitor pela rapidez dos versos com esquemas rítmicos e rímicos bem regulares: 4a 4a / 4i 4a / 3u 4a / 4a 3u / 4o 3e / 3o 3o, e assim por diante. As anáforas com os muitos “homem” e “quem” reforçam o ritmo, intensificado não só pela métrica e pela rima, mas pela reiteração aliterativa das letras-fonemas F RR D – F RR D / R P N – R P D / S RR – S RR D, para ficar apenas nas três estrofes primeiras. No dístico [7], “homem saciado/ homem saqueado”, o excesso se opõe à míngua, a fartura vem do furto; no [8] aquele senhor acima é “servido”, ao passo que o servo se transforma em “sorvo”, misto de aspiração e gole em que ecoa, por analogia a “servido”, um som-sentido de “sorvido”. O poema repete à exaustão estruturas sonoras e semânticas, de modo a fixar a diferença entre duas situações sociais, econômicas, culturais extremamente desiguais: [9] um “come”, outro tem “fome”; [10] um “fala”, outro “cala”; [11] um, violento, lança mão do “soco”, enquanto o outro, se passivo, apanha, é “saco”; nessa toada, em [12] se depreende que um é a “mó”, pedra grande que tritura, sendo o outro o “pó” que resta dessa ação de esfacelamento: patrão-mó e operário-pó.
A postura engajada do poema salta aos olhos, e o recurso de exaurir a oposição entre explorador e explorado serve para cimentar tanto um sentimento de revolta quanto uma consciência crítica, conforme diz Rogério Barbosa da Silva em sua tese O signo da invenção na Poesia Concreta e noutras poéticas experimentais (UFMG, 2005): “Pelo jogo de oposições que recobre todo o poema-livro [Servidão de passagem], percebemos que, diante da gravidade dos problemas sociais enfrentados em seu tempo, o poeta concede que a poesia desça de seus altares e sirva como meio de despertar a consciência dos homens”. O poema, de 1961, nos faz recordar que, nesse ano, Jânio Quadros renunciou, dando lugar ao governo de João Goulart, político trabalhista que procurava articular apoio para implementar reformas de base, quando foi deposto pelo golpe de 1964. Se o tempo do poema, vindo do desenvolvimentismo de Juscelino (do qual Goulart foi vice), inspira e ampara o “salto participante” da produção concretista, fato é que seu teor de denúncia de brutais desigualdades e violências permanece para além daquela década, pois permanece inalterado um sistema — capitalista — que se sustenta exatamente na propriedade privada dos meios de produção, acentuando o abismo entre as classes.
Como se fossem palavras de ordem em megafone à porta de fábrica, mas com a força da concisão poética, o poema repete e repete expressões que, no conjunto, vão, a marteladas, costurando um discurso de denúncia e revolta. O dístico [13] lança mão de termo difícil, “baraço”, corda para enforcar o “vassalo”, se o sujeito se encontra submisso e dependente. O seguinte [14] parece apontar para aquele que possui a força do imponente animal (cavalo), ou dele é proprietário, enquanto ao outro, subalterno, compete apenas o ato momentâneo do uso (cavalgar). Todos os demais dísticos [de 15 a 18] reiteram com clareza uma hierarquia tirânica, com os versos “de cima” indicando agentes ou atitudes de poder, superioridade, opressão (“explora, carrasco, usura, pilhado”), restando aos versos “de baixo” a indicação de um lugar de humilhado, animalizado, coisificado (“espólio, carcaça, usado, pilhagem”).
Se a poesia (e a arte, as vanguardas, a Poesia concreta, este poema especificamente) não conseguiram nem conseguem realizar a revolução, alterando a estrutura de poder e coerção que as classes dominantes (uísque, feriado, volúpia) impõem sobre as dominadas (urina, faxina, vermina), isso não significa que devam esmorecer na luta contra as catástrofes cotidianas. No contundente artigo Esteticismo e participação — as vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969), publicado em 1990, Iumna Maria Simon afirma que, “se, no decênio de 50, a retomada do espírito vanguardista de atualização e pesquisa formal se inseria no clima de fé na construção do futuro, isto é, se a experiência formal ligava-se à ideologia da modernização, na entrada do decênio seguinte passou ela a estar ligada à ideia de Revolução, ou melhor, a própria modernização dependia agora de um agente político-social efetivo”. Indo ao encontro da ensaísta, Gonzalo Aguilar reforça que “O salto participante foi, mais do que a contribuição a uma revolução que acabou não ocorrendo, a experiência da colisão entre os paradigmas do modernismo e da experiência política” (Poesia concreta brasileira: a vanguarda na encruzilhada modernista, 2005). Em suma, o poema de Haroldo ilustra os limites entre o desejo e o possível: a transformação do mundo, o engajamento na utopia.
Haroldo de Campos não desistiu de sua escrita radical: na prosa, em poemas visuais, nas traduções, em versos experimentais, como estes de Servidão de passagem, que, no ano de 1961, não poderia prever o golpe e todo o autoritarismo que daí adviria. A despeito de ter sua obra “acusada” de esteticista (e formalista, erudita, hermética, elitista e, mesmo, “alienada”), Haroldo sempre se posicionou politicamente à esquerda, e explicitou isso em muitos poemas, como o que fez em homenagem ao assassinato dos sem-terra em Eldorado dos Carajás, em 1996, e para a campanha de Lula à presidência. É possível que, advogado e poeta, Haroldo tenha vislumbrado na expressão que dá título ao poema-livro algo além do direito de passar por dentro da área de um imóvel para ter acesso a um local: a expressão “servidão de passagem” pode ser a metáfora de uma travessia — da vereda ao mundo, da poesia à revolução, do dever ao prazer, da servidão à liberdade.