Ser mulher, de Gilka Machado

Guardadas as diferenças de contexto e de linguagem, o soneto pode ser lido como manifestação pioneira de um pensamento feminista no Brasil
Gilka Machado, poeta brasileira
01/07/2023

Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada
para os gozos da vida: a liberdade e o amor;
tentar da glória a etérea e altívola escalada,
na eterna aspiração de um sonho superior…

Ser mulher, desejar outra alma pura e alada
para poder, com ela, o infinito transpor;
sentir a vida triste, insípida, isolada,
buscar um companheiro e encontrar um senhor…

Ser mulher, calcular todo o infinito curto
para a larga expansão do desejado surto,
no ascenso espiritual aos perfeitos ideais…

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

Esse poema, muito provavelmente o mais conhecido de Gilka Machado (1893-1980), foi publicado há mais de século, em 1915, no seu livro de estreia, Cristais partidos, aos vinte e dois anos. Até sua morte, publicou mais dez livros, entre os quais se destacam Mulher nua (1922) e Meu glorioso pecado (1928). Antes dela, somente Francisca Júlia conseguira algum espaço e renome expressivos na cena poética brasileira, e não é à toa que Gilka dedique a Júlia o segundo poema do livro, Ânsia azul, em que se leem os versos: “De que vale viver,/ trazendo na existência emparedado o ser?”. Francisca Júlia viria a se suicidar, em 1920. Depois delas, muito lentamente, a voz da mulher veio ganhando tímida visibilidade. Mesmo a força de obras de Pagu, Cecília Meireles, Hilda Hilst, Adélia Prado e Ana Cristina Cesar não esconde nem atenua o fato de os homens poetas terem tido — sempre! — um espaço imensamente mais privilegiado, em todos os sentidos: na produção, publicação, divulgação e recepção de suas obras. Em tempos recentes, esse quadro vem se alterando — como indicia a existência de antologias como As 29 poetas hoje (2021), Querem nos calar (2019) e Blasfêmeas (2017), organizadas respectivamente por Heloisa Buarque de Hollanda, Mel Duarte, e Marilia Kubota e Rita Lenira. No entanto, no início do século 20, não era nada fácil “ser mulher” ou “ser mulher poeta”, e o soneto dodecassilábico de Gilka diz isso com todas as letras.

Guardadas as evidentes diferenças de contexto e de linguagem, o soneto de Gilka pode ser lido como manifestação algo pioneira de um pensamento feminista no Brasil. Assim, não espanta saber que Gilka foi uma das fundadoras do Partido Republicano Feminino (em 1910), que defendia o direito do voto das mulheres, o que só veio a acontecer em 1932. Há, hoje, um crescente interesse por sua obra, de difícil enquadramento, pois nela se concentram e se misturam tons e estilemas românticos, parnasianos e simbolistas, enquanto, como no soneto em pauta, ecoam ousados elementos modernistas de vanguarda (políticos, eróticos, estéticos), que a situam no rótulo infeliz de “pré-modernista”. A escolha do soneto alexandrino, a emoldurar a reflexão, não consegue, contudo, conter a vontade de se libertar. Noutras palavras, a prisão da forma não impede a manifestação de um desejo intenso. É da consciência mesma da prisão (da forma e dos “preceitos sociais”) que se faz o abalo da “vida triste, insípida, isolada”. É uma poética a contrapelo.

Para que não haja dúvida, a questão central do poema se reitera por cinco vezes — vem no título e no início de cada estrofe, feito um mantra que não se pode esquecer: ser mulher. No verbo no infinitivo, o substantivo pulsa, com o artigo elíptico: (o) ser mulher. Está longe do poema qualquer tentativa, de ordem psicanalítica, de precisar — gesto vão — uma essência feminina. Muitas são as imagens e metáforas, mas todas têm um alvo claro, que é a denúncia da histórica opressão masculina, pois, por óbvio, o que se opõe ao “ser mulher” é o “ser homem”, desenhado sem receio e categoricamente no termo “senhor”. (Há uma relevante fortuna crítica em torno da obra de Gilka, e desse poema em particular, sobretudo tendo no horizonte uma abordagem do erótico, do corpo, do feminino, do feminismo: ver, por exemplo, ensaios fundamentais de Angélica Soares, Maria Lucia Dal Farra e Nadia Battella Gotlib. Mesmo assim, dada a sua importância, muito há ainda a desvendar. Registre-se, por fim, que a maioria dos ensaios sobre Gilka e sua obra é maciçamente de autoria de mulheres.)

O poema já começa com uma afirmação peremptória: “Ser mulher, vir à luz trazendo a alma talhada/ para os gozos da vida: a liberdade e o amor;”, ou seja, desde sempre, nascer — “vir à luz” — conforme determinam os costumes, as convenções, os poderes, com a “alma talhada”, cortada, ferida, limitada “para os gozos da vida”, sem direito à liberdade nem tampouco para o amor, prisioneira desde a origem dos tempos. Resta-lhe uma “eterna aspiração”, imagem que retornará ao final, para mudar o rumo da existência, para realizar um “sonho superior”. Na segunda estrofe, o desejo de felicidade, em nítido laivo romântico, encontraria conforto e plenitude em “outra alma pura e alada”, um companheiro, fiel e afetuoso, mas o real concreto que encontra de fato é “um senhor”, figura sem dúvida patriarcal em que se projeta um híbrido de todos os homens do mundo, em especial o pai e o marido.

A frustração se amplia e se estende à transcendência: não existem condições para o “desejado surto”, que só recebe guarida no “ascenso espiritual”, que a elaboração racional do soneto ilustra e persegue. O terceto derradeiro, antológico, dá mostras da “larga expansão” intelectual da poeta:

Ser mulher, e, oh! atroz, tantálica tristeza!
ficar na vida qual uma águia inerte, presa
nos pesados grilhões dos preceitos sociais!

As três reticências das estrofes anteriores dão lugar às três incisivas exclamações, sinalizando a consciência aguda do sistema coercitivo que tenta domesticar a mulher. A série aliterativa em /t/ e a série de encontros consonantais (atroz, tristeza, presa, grilhões, preceitos) encenam o grau das dificuldades a superar. A situação da mulher desde sempre oprimida ao longo da história se reforça com o resgate do mito de Tântalo, que consiste em ter os desejos à vista mas não poder realizá-los. Curiosamente, mas com pensado engenho, o soneto recupera também a figura da águia, que, também no mito grego, era encarregada de comer diariamente o fígado de Prometeu. Como vítima de um castigo, a “tantálica tristeza” do ser mulher se sintetiza na condição de querer e não poder; como sujeito que, hipoteticamente, aplicaria um castigo, o ser mulher se vê “qual uma águia inerte”, apática, sem forças para a insubmissão radical, já que as normas e regras são “pesados grilhões” que impedem — retornando ao segundo verso — “os gozos da vida: a liberdade e o amor”.

Poemas como esse tatuaram a história de Gilka Machado. Outros há em que, em meio a meneios vocabulares, fala abertamente desse gozo interditado em Ser mulher. Para uma mulher jovem que queria se firmar poeta num mundo dominado pelo “macho adulto branco sempre no comando” (Caetano), nada foi fácil. De vida material modesta, sofreu também o estigma da exclusão social — e mesmo de racismo, em conhecido episódio envolvendo a figura de Afrânio Peixoto. Quanto ao tom e teor de seus poemas, disse em depoimento a Nadia Battella Gotlib e Ilma Ribeiro, em novembro de 1979, aos 86 anos, um ano antes de sua morte:

As minhas colegas todas escreveram com o cérebro. Eu escrevi com o corpo e a alma. Se você pegar o livro delas, você não sabe nada da vida delas. A minha vida está nos meus versos. (…) Ninguém dizia o que sentia. A própria Cecília Meirelles não dizia o que sentia. A mulher não tinha coragem nenhuma. Não tinha coragem. (…) As mulheres reagiam desse jeito [negativamente] porque pensavam que eu ia comer todos os homens. E os homens tinham curiosidade de saber como eu era na intimidade.

A intimidade de um poeta, de uma poeta está na língua. Aliás, um de seus poemas mais eróticos, e, portanto, escandalosos para os tais preceitos sociais, se intitula Lépida e leve, poema selecionado por Italo Moriconi para participar da antologia Os cem melhores poemas brasileiros do século (2001). Parece que Drummond, leitor de Gilka, faz alusão a seu poema no deveras ousado A língua lambe, de O amor natural. Após o lamento de Ser mulher, penúltimo poema de Cristais partidos, a poeta arremata a obra com Invocação ao sono, em que o etéreo ato de dormir se personifica em “lânguido amante” e ouve de sua amada: “Eis-me, lânguida e nua,/ para a volúpia tua”. Lânguido, lânguida — dão par. Volúpia, diz o dicionário, é “grande prazer sexual”. Coragem, diz a poeta, carece de se ter. Se cristal indica um modelo de qualidade e tradição, de algo literalmente cristalizado, a poeta opta por parti-lo, em busca de uma vida que não fosse triste, nem insípida, nem isolada. Aos poucos, ainda que postumamente, a alegria, o prazer, a companhia chegam a Gilka, mulher de coragem, talhada para figurar entre aquelas que souberam transitar, de forma lépida e leve, da língua à vida — suave e sensual: lânguida. No início do século 21, ir na contramão do destino atroz e tantálico é um modo de ser Gilka.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

Rascunho