quanto falta pra gente se ver hoje
quanto falta pra gente se ver logo
quanto falta pra gente se ver todo dia
quanto falta pra gente se ver pra sempre
quanto falta pra gente se ver dia sim dia não
quanto falta pra gente se ver às vezes
quanto falta pra gente se ver cada vez menos
quanto falta pra gente não querer se ver
quanto falta pra gente não querer se ver nunca mais
quanto falta pra gente se ver e fingir que não se viu
quanto falta pra gente se ver e não se reconhecer
quanto falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu.
O poema é cristalino: amores vêm e vão, romances têm tempo de validade. Desde o título, o humor se instala, pois à ideia de romance, como namoro e relação sentimental, se mistura a noção de gênero literário, que pressupõe uma narrativa em geral longa. Daí, um romance curto e em versos (linhas) já antecipa a cisão e o estranhamento que à “gente” ocorrem. A brevidade da composição, em doze linhas, acelera a passagem do tempo: não se sabe, com precisão, o tempo real que tal relação amorosa durou, mas a sensação é de que foi rápida, sendo o poema de tamanho relativamente curto. A escansão do poema acompanha a trajetória teoricamente meteórica do — suponhamos — casal envolvido: as sílabas poéticas dos doze versos fazem um desenho do movimento: 10, 10, 12, 11, 15, 11, 13, 12, 15, 16, 16, 20 sílabas. Visualmente, teríamos um movimento com idas e vindas, mas progressivo, encenando, a partir do tamanho dos versos, a instabilidade das relações amorosas e sua trajetória em direção a um ápice (no caso, um acúmulo de desencontros que termina em fatal esquecimento).
Bruna Beber publicou esse poema em Rua da padaria (2013). A própria autora comenta em entrevista que, “só no Facebook, ele já foi compartilhado mais de cem mil vezes. (…) Ele já circulou por aí assinado pela Clarice Lispector (rs), pela Clarice Falcão (rs) e por ‘autor anônimo’. Já aconteceu de estar em lugares e alguém citar esse poema, sem saber que eu era autora e estava ali. (…) Ou seja, esse poema não é mais meu, e ele tem durado”. O sucesso do poema na rede expressa, de certo modo, que ele move e comove as pessoas, provavelmente pelo caráter a um tempo particular e coletivo que ele aciona nos leitores, que nele se reconhecem e reconhecem o mundo ali contido, porque esse “a gente” inclui a pessoa que fala em nome de si própria, mas também de outros, também do coletivo. É como se o leitor pensasse “eu passei por isso” de que o poema fala, mas não fui eu só: o meu par também, e mais todos aqueles que amaram, que tiveram algum caso amoroso. A despeito do ponto final do poema, o teor do “enredo” e as letras minúsculas dos versos dão a entender que se trata de um ciclo, que o romance/poema há de se repetir com toda a gente, o que não deixa de ter um tom melancólico.
Melancolia, no entanto, que produz humor e riso. Não à toa o poema consta da ótima Breve antologia da poesia engraçada (2017), organizada por Gregório Duvivier. Por que se ri de algo supostamente triste e melancólico? O humor é um efeito de linguagem. Para Theodor Adorno, em A arte é alegre?, o humor deve fazer pensar, refletir, ser crítico. A flutuação crescente do tamanho dos versos encontra correspondência na estrutura do poema e de seu “conteúdo”: a repetição por doze vezes de “quanto falta pra gente” ganha variação, a cada linha; há uma passagem sutil do tempo e da relação entre os envolvidos. Cada linha marca uma etapa do romance, no rumo de seu desfazimento. A linha/verso aumenta à medida que, inversamente, diminui o interesse de um pelo outro. Esse curto-circuito entre aquilo que se diz e o como se diz é o que provoca o humor, e, bem provável, a empatia com o poema e o seu sucesso.
Noutra entrevista, com lucidez, a autora comenta o próprio poema: “A rapidez e tudo o que decorre dela — a oscilação, a angústia, o vazio de sentido, a falta de foco — são características da vida que levamos e obviamente os relacionamentos sofrem com isso, mas antes de tudo nós, as pessoas. (…) Não sei analisar essa mudança dos relacionamentos pra esse aguaceiro que vivemos ‘hoje amamos, amanhã estamos indo embora’. Acho que estamos descartando mais rapidamente as coisas porque queremos viver em quantidade em detrimento da duração”. O mundo contemporâneo, entendido a partir da lógica do poema, parece ir na contramão do estereótipo romântico da felicidade eterna, da harmonia, do outro como espelho e completude. Há, naturalmente, variações desse mito romântico, como no “eterno enquanto dure” de Vinicius, cujo célebre Soneto de fidelidade já aponta o caráter de chama da paixão (bela, intensa e fugaz, diria Octavio Paz em A dupla chama), e como na maioria absoluta dos chamados poemas de amor e nos tolos poemas de dor de cotovelo.
Se o poema é sobre o amor, o amor que não resiste ao tempo, é também sobre a morte. Embora não fale a palavra amor, o termo romance e a trama dos versos autorizam a leitura corrosiva desse sentimento que atordoa a gente toda. Lentamente, tânatos vai se impondo a eros, minando-lhe as forças: a vontade e o prazer de se ver “hoje, logo, todo dia, pra sempre”, dão lugar a um afeto outro, em que prevalece uma disposição de apenas se ver “dia sim dia não, às vezes, cada vez menos”; daí à decisão de “não querer se ver” e mesmo “não querer se ver nunca mais” é um passo, são duas linhas; a afirmação dionisíaca de outrora se transforma em negação: agora falta pouco “pra gente se ver e fingir que não se viu” e, mais, “pra gente se ver e não se reconhecer”. O arremate é cruel, ultrapassa a indiferença e alcança o esquecimento pleno: “quanto falta pra gente se ver e nem lembrar que um dia se conheceu”. Essa volatilidade das relações pessoais, em paralelo à instabilidade das instituições, constitui uma das facetas do dito mundo líquido de Zygmunt Bauman.
Em seu primeiro livro, A fila sem fim dos demônios descontentes (2006), um poema de Bruna Beber diz: “na minha casa você pode flagrar alguém/ se escondendo da rotina num quarto escuro/ ou batendo a cinza do cigarro na janela/ enquanto espia as roupas dançando em silêncio/ no varal da área/ às três da madrugada/ você pode flagrar alguém preocupado/ segurando uma caneca com vinho vagabundo/ dormindo fora de hora/ pensando demais na vida/ e no tédio que é/ essa falta de paixão”. Aqui, retroativamente, o tema da solidão, recorrente em seus livros, aparece nu, na figura de alguém (a gente) que observa um outro (a gente), ambos solitários na madrugada. Parecem encenar o fim de um romance em doze linhas: cada um na sua.
Roland Barthes fala, em Fragmentos do discurso amoroso, de três etapas do “encontro” amoroso, que se moldam à feição do poema de Bruna: de início, a captura, a intensidade; depois, o tempo do idílio, a doçura; por fim, a “continuação”, que seria um “longo desfile de sofrimentos, mágoas, angústias, aflições, ressentimentos, desesperos, embaraços e armadilhas dos quais me torno presa, vivendo então sem trégua sob a ameaça de uma decadência que atingiria ao mesmo tempo o outro, eu mesmo e o encontro prodigioso que no começo nos descobriu um ao outro”. O poema de Bruna não explicita nenhum desses sofrimentos do amor: é elíptico, diz apenas de pessoas que, um dia, querem se ver pra sempre e, após um tempo, nem se lembram mais um do outro. Mas, atendendo à insinuação do título (este, sim, fala explicitamente em “romance”), somos levados a entender que se trata de um liquidado romance em verso.
Em 1976, em Quarenta clics (republicado em Caprichos & relaxos, 1983), Leminski escreveu, em nove linhas: “Amor, então,/ também, acaba?/ Não, que eu saiba./ O que eu sei/ é que se transforma/ numa matéria-prima/ que a vida se encarrega/ de transformar em raiva./ Ou em rima”. Décadas depois, o fim de um amor ganha nova versão engraçada, com Bruna Beber. Amar é perigoso, diria Riobaldo, ainda antes. E riria Ro Ro, em situação afim: tola foi você. Você: a gente.