Aos 5, lúdico
Aos 14, tímido
Aos 18, lépido
Aos 20, Trótski
Aos 30, trêfego
Aos 40, tático
Aos 50, cínico
Aos 60, cético
Aos 70, próstata
Aos 80, módico
Aos 90, fúnebre
Não espanta que esse poema de Carlos Castelo pertença a um livro cujo título é Poesihahaha (Patuá, 2018) e que no livro haja uma orelha de Glauco Mattoso, que destaca que “a espirituosidade do poema-piada, tão cara aos modernistas quanto aos marginaes septentistas, continua viva e esperneante ante a caretice cyclica”. Não espanta porque o poema, a obra de Castelo e a de Glauco e a de tantos poetas marginais e de alguns contemporâneos têm no humor — “hahaha” — a força motriz da poesia.
Em torno do termo “humor” gravita uma imensa variedade de teorias, conceitos, métodos e recursos. Terry Eagleton sintetiza, em seu recente livro Humour, de 2018 (traduzido em 2020 com o título Humor: o papel fundamental do riso na cultura): o humor “é um fenômeno para o qual é impossível qualquer definição exaustiva”, síntese também expressa no volumoso História do riso e do escárnio (2003), de Georges Minois. Humor e riso não são somente destronadores ou dessacralizadores, nem somente conservadores ou autoritários. “As técnicas variaram, mas sempre rimos para zombar de nós, para acalmar nosso medo, para manifestar nossa simpatia, para reforçar nossos vínculos e para excluir”, diz Minois. O riso e o humor incomodam, porque rompem com alguma lógica ou razão e afrontam a hegemonia da ideologia da seriedade.
O poema de onze versos se sustenta numa estrutura simples: para cada período da vida, uma palavra. A graça imediata vem, basiformaçcamente, de todas as palavras serem proparoxítonas e do sentido que nós, leitores, vamos atribuindo a elas. Aos poucos, verso a verso, a graça vai ganhando densidade, consistência, amplitude. O título Resumée, por exemplo, pode levar ao riso porque se usa uma palavra estrangeira, francesa, como que para valorizar o “produto” (feito fazem com os nomes de prédios, perfumes e pessoas). A palavra “resumée” — com a desinência de gênero feminino “e” — é um adjetivo e significa “resumida”. No contexto do poema, parece significar “resumo de uma vida”, e aí entram em hilário conflito a ideia de “resumo” de um longuíssimo período (dos 5 aos 90 anos) e a sensação de “resumo” que emana dos curtíssimos versos (de quatro a cinco sílabas). Ademais, há um choque sonoro e mesmo visual entre a rajada de onze proparoxítonas em português e a solitária, irônica e oxítona palavra francesa.
Poesia é risco, disse Augusto de Campos, e risco também é interpretar. Cientes, e prudentes, sigamos, década por década, a saga do sujeito biografado, que pode se assemelhar em algum grau à do poeta, mas vale mais ainda se entendida tendo um sujeito “universal” no horizonte, ou seja, qualquer um de nós. Se há, nobre, o “romance de formação” (Bildungsroman), aqui seria o caso, paródico, de um “poema de deformação”, já que a trajetória de nosso anti-herói caminha em direção a um infeliz — mas demasiadamente humano — final. O final infeliz se disfarça, contudo, em desfecho feliz por obra e graça do que dá sustentação ao poema: o humor. Vamos ao “resumo” da novela (com os riscos que toda trama traz em seus fios).
A saga começa aos cinco anos: lúdico. Crianças, achamos que a vida é jogo, brincadeira, alegria, acaso. Vem a adolescência e, aos 14 anos, encarando a sexualidade e a socialização, uma saída é tornar-se algo tímido, algo envergonhado de entrar no mundo da cultura e, portanto, da repressão. Mais um pouco, porém, e, aos 18, o jovem já está, lépido (e fagueiro), curtindo a vida, mais seguro e independente, fazendo suas escolhas. Aos 20, nosso protagonista se vê às voltas com posições políticas e adere às ideias de um célebre revolucionário russo, Trótski, para quem a “revolução permanente” seria o caminho adequado para o avanço do socialismo, para além das fronteiras da stalinista União Soviética. Uma década depois, aos 30, ele está trêfego, isto é, irrequieto, manhoso, astuto: amores, amizades, trabalhos, decisões, decepções, tudo o leva a esse estado de inquietude. Enfrentar e vencer as batalhas da vida exigem que, mais experiente, aos 40 anos, seja tático, com planos para encarar obstáculos, inimigos, desafetos. Desiludido, aos 50, pressentindo a velhice, e para sobreviver à selva do cotidiano, nosso personagem é levado a ser um cínico, transitando entre o debochado e o hipócrita, adaptando-se a diferenças e idiossincrasias, para agrado e ódio de uns e outros.
Chegando à terceira idade, aos 60 anos, a consciência da finitude se aproxima e o sujeito agora é cético: duvida de si, de deus, da política, do mundo, das pessoas, dos valores — existirmos a que será que se destina? A vida avança, contudo o corpo confirma sua decrepitude: o nosso “anônimo” entra, aos 70, para a elevada estatística de homens que, por falta de cuidados e exames, desenvolve câncer de próstata. Com a saúde abalada, fora do sistema produtivo, esquecido, aos 80 anos, sem vontade ou esperança, se deixa levar, módico, inane, dia a dia adiante. E, como diz o ditado, sendo a morte a única certeza da vida, aos 90, sucumbe, cansado, fúnebre, saindo de cena, após décadas nesse palco — meteórico sonho de cada um de nós. A novela (reinventada) chega ao fim. A despeito do fúnebre desenlace, saímos dele levemente aliviados.
Na lista de proparoxítonas, uma chama a atenção: Trótski é, pela norma, uma palavra paroxítona, com duas sílabas apenas. No entanto, o poeta/poema considera sua “real” pronúncia — “Tró-ts-ki” — para legitimá-la no mesmo paradigma das demais. De modo semelhante, entre tantos adjetivos, Tróstski destoa, por ser nome próprio, assim como “próstata”, por ser um substantivo. Essas quebras morfológicas colaboram para a surpresa e, por extensão, para o humor. As repetições sonoras, para além da presença maciça das proparoxítonas, também funcionam como elemento de sedução e prazer para o leitor: o homoteleuto (rima após a tônica) ocorre com frequência, como em “lúdico, tático, cínico, cético, módico” e “tímido, lépido”. A anáfora “Aos…” reforça sobremaneira a estrutura iterativa. Do verso 6 ao último, há rimas: “quarenta, cinquenta, sessenta, setenta, oitenta, noventa”. Internamente, prolifera a aliteração em /t/ nos versos 4, 5 e 6, com nove ocorrências; e em /s/, nos versos 7 e 8, com sete ocorrências.
Entre as múltiplas teorias em torno do humor, Terry Eagleton destaca três (que se atravessam): as teorias do alívio, da superioridade e da incongruência. Poemas como Resumée, de Castelo, produzem certa descarga psíquica (alívio), pois percebo que, apesar de semelhante a mim, o sujeito ao qual o poema se refere é outro; sendo outro, esses adjetivos, que não escondem a ironia e o sarcasmo (superioridade), não se referem à minha pessoa; e a relação inusitada entre os termos, mesmo que ordenados a partir de uma cronologia simbólica, produz muito mais surpresas, ambivalências e dúvidas (incongruência) do que certezas e clarezas. O que tem a ver Trótski com próstata? Por que, “aos 30, trêfego” alguém estaria? Aliás, o que é mesmo “trêfego”? Quem foi Trótski? Por que os cortes se dão aos 5, 14, 18, 20 e demais décadas terminadas em zero? Adotar o ceticismo como filosofia e conduta é algo louvável? Que tática usar aos 40? Cínicos (inescrupulosos e petulantes) são os outros, ou, em algum grau, somos todos?
Ainda há muita hostilidade em relação a poetas cujas obras escolhem o humor como baliza e mola. Raramente, livros autorais com poemas engraçados se tornam dignos de estudo, prêmio e consideração. Em Balada do artista não reconhecido, de Palavrório (2022), as estrofes iniciais parecem desenhar esse quadro: “Não sou chamado pra Flip/ não saio pela Companhia/ não sou lembrado em sarau/ não me reconhecem nas feiras/// Nunca fui pra Frankfurt/ nem mesmo pra Casa das Rosas/ nunca fui traduzido/ ou contemplado numa epígrafe (…)”. A história do humor explica esse estado de não reconhecimento. Em resumo, lembremos um time de onze poetas recentes e contemporâneos dessa tribo do riso: Angélica Freitas, Chacal, Glauco Mattoso, Gregório Duvivier, Hilda Hilst, José Paulo Paes, Ledusha, Leila Míccolis, Nicolas Behr, Paulo Leminski, Ricardo Silvestrin. Cada qual com seus engenhos para fazer rir.
Carlos Castelo faz parte dessa tribo. Sua obra, divertida e reflexiva, está aí, para ser conhecida, estudada. Se em Resumée, de Poesihahaha, o poeta usou onze versos para ir dos 5 aos 90, do lúdico ao fúnebre, em Poemeto de finados, de Palavrório, o trajeto é mais rápido, em dois versos: “Aqui se jaz/ Aqui se apaga”. Em um de seus haicais, Castelo manda o papo reto: “país na barbárie/ e vocês aí/ reclamando de uma cárie”. O Dicionário Castelo da Língua Portuguesa, acessível na internet, mostra a mestria do autor em trocadilhos consistentes e engraçadíssimos, tipo: “POWLÍCIA: corporação destinada a fazer cumprir o conjunto de leis de um país na base da pancadaria”, ou: “MOTOCIOTA: coletivo de motociclistas idiotas”.
O efeito e o valor de uma piada vêm de muitos lugares: “Uma piada [e/ou um poema] pode combinar o agradável desembaraço de um trocadilho, nonsense ou ambiguidade com uma desconcertante colisão de conceitos, um bathético choque entre elevado e vulgar e um animus vingativo contra alguma vítima indefesa, assim como nos fornecer certo grau de prazer estético através de sua adequação e concisão e pela habilidade com que é executada” (Eagleton, Humor). De modo similar, o efeito e o valor de um poema: poemas sérios e engraçados se distinguem no efeito que desejam. Mas o valor (estético) não depende de serem um poema sério ou um poema cômico. São feitos da mesma matéria, a palavra, mas de distinta maneira.
Na deliciosa língua de trapo de Carlos Castelo, o prazer e o gozo estão no brincar com a palavra, rir com ela, dentro dela. Daí, sem medo de ser feliz, usa e abusa: Poesihahaha. E há, ah, aí muita poesia — riso e siso — à espera de quem queira (de quem queira uma vida mais lúdica e menos fúnebre).