Entro em meu poema
com as mãos atadas.
Luas acorrentadas
ferem-me o pulso
num riso de ferros
comprometidos.
Não espere um gesto de Liberdade.
Este poema nasceu escravo.
Eu próprio nasci escravo.
Entro em meu poema,
amordaçado.
Em minha boca
palavras cegas
buscam o som de cinzas
adormecidas.
As palavras,
a pedra,
a treva
formam um corpo
impossível de proferir.
Este poema não é murmúrio,
é vidro quebrado na garganta,
grito mastigado
na hora do suplício.
Entro em meu poema,
pássaro convocado
pelo sol.
Junto a palavra à pedra
e com elas levanto barricadas.
Liberto a palavra da sombra
e escrevo na pedra
o contorno provisório dos meus sonhos.
A palavra nua faz-se poesia
e me torna mais claro
ao fim do verso.
Do escravo faz-se o resistente.
Aqui entrego minha bandeira.
Regresso à terra.
Serei o barro de um país em luta.
Raiz de troncos calcinados,
alimentarei a hora dos incêndios.
(Presídio Político de São Paulo, maio de 1975)
O local e a data do poema pertencem a ele, fazem parte de seu corpo, como se fosse uma espécie de verso-prótese, com o intuito de dizer ao leitor quando e onde se fez forma aquele sentimento que originou o poema de título Regresso à terra, publicado no livro Água de rebelião, em 1983. A militância política do cidadão Hamilton Pereira da Silva o levou a esta e a muitas outras prisões, entre os anos de 1972 e 1977, surgindo nessa circunstância o poeta Pedro Tierra. Em depoimento de 1978, dirá o autor: “Pedro é o homem do povo, e o Tierra é o berço de todos nós, é a própria América Latina em si, como continente atormentado”. O poema incorpora ambos os termos (pedra e terra) e sintetiza questões de poética e de política que atravessam o Poema-prólogo, de Poemas do povo da noite (1979), provavelmente poema e livro mais conhecidos do autor nascido em Porto Nacional, município de Tocantins.
Em síntese, Regresso à terra é um metapoema político: feito tantos outros, coloca a palavra a serviço da luta, da Liberdade, da resistência, dos sonhos, lembrando reflexão do narrador de Grande sertão: veredas: “O que eu vi, sempre, é que toda ação principia mesmo é por uma palavra pensada. Palavra pegante, dada ou guardada, que vai rompendo rumo”. (Sobre o romance de Rosa, Tierra diz que “é a maior realização poética em língua portuguesa, desde Camões. Não importa que tenha sido escrita em prosa”.) Em suas seis estrofes, predominam os versos brancos e livres. Os versos iniciais da quarta estrofe destacam visualmente três substantivos fundamentais — palavras, pedra, treva — simulando um movimento de conflito. Chama também a atenção o uso da maiúscula no termo Liberdade, simbolizando explicitamente tal aspecto, desprezado pela ditadura militar iniciada com o golpe de 1964, que prendeu, torturou e matou milhares de brasileiros.
Mas o que mais chama a atenção no poema é o diálogo estreito com o clássico Psicologia da composição (1947), de João Cabral de Melo Neto. Se, desde o início, Cabral diz “Saio de meu poema/ como quem lava as mãos”, Tierra dirá em direção diversa: “Entro em meu poema/ com as mãos atadas”. A citação é tão evidente quanto discrepante. Os versos de Cabral traduzem uma refinada reflexão acerca do processo de criação, com foco no que tem de autorreferencial e centrípeto: “Vivo com certas palavras,/ abelhas domésticas”. Os versos de Tierra pensam, também, o processo de criação, porém seu poema é fruto de um “vidro quebrado na garganta,/ grito mastigado/ na hora do suplício” — o foco mira e vê o outro, é centrífugo e quer a solidariedade. Se em Cabral a “folha branca/ me proscreve o sonho”, pois deve ser o espaço da razão, do “verso/ nítido e preciso”, em Tierra “Junto a palavra à pedra/ e com ela levanto barricadas”, ou seja, a arte deve e pode atuar em prol dos injustiçados e desfavorecidos — em prol do povo da noite.
Para evidenciar o diálogo, vale destacar que, entre os 41 versos de Regresso à terra, em 23 deles há a presença de vocábulos que se encontram em Psicologia da composição: MEU POEMA, MÃOS, POEMA, POEMA, PALAVRAS, CINZAS, PALAVRAS, PEDRA, FORMAm um CORPO, imPOSSÍVEL, POEMA, POEMA, PÁSSARO, SOL, PALAVRA, PEDRA, PALAVRA à PEDRA, SONHOS, PALAVRA, CLARO, FIM do VERSO, TERRA. As imagens de “mineral” e “cinza” percorrem o poema cabralino, e também em Tierra, mas lá prevalece a ideia de que a própria criação tem um destino finito e mesmo melancólico (“Neste papel/ pode teu sal/ virar cinza”), enquanto aqui a metáfora aponta para o que há de coletivo, de combativo e de renascimento, à maneira de fênix, na matéria que há de permanecer: “Serei o barro de um país em luta./ Raiz de troncos calcinados,/ alimentarei a hora dos incêndios”. Para Pedro Tierra, é preciso que a poesia testemunhe que, da cinza (da corrente, da escravidão, do amordaçamento, do suplício), virá o húmus que vai alimentar o incêndio. O poema funciona, assim, como um ambivalente “aviso de incêndio”.
Tal expressão — “aviso de incêndio” — em Walter Benjamin faz parte de uma crítica ao progresso moderno, diante de catástrofes sociais e políticas, motivadas pela adesão desarrazoada à técnica e ao capitalismo, levando a guerras e formas de fascismo. Para evitar o desastre da locomotiva, o filósofo sinaliza que acionemos o freio de emergência — exatamente esse “aviso de incêndio”. Decerto, no poema de Tierra, a “hora dos incêndios” se reporta ao momento em que a revolta, a resistência, a rebelião, a liberdade, a revolução, o “pássaro convocado/ pelo sol”, os sonhos terão sua vez. Logo, é um incêndio que se deseja. Mesmo assim, vale a lembrança do filosofema do autor de Rua de mão única (onde se encontra o capítulo Feuermelder, Alarme de incêndio, na tradução de Michael Löwy), considerando que a vida e a obra de Pedro Tierra têm sido o difícil exercício, na prática da militância e no ofício da poesia, de resistir a opressões e anunciar incêndios — que, inspirados em Benjamin mas a contrapelo do sentido original, trarão vida e esperança.
Em Trilogia da resistência — Pedro Tierra, Eliane Potiguara, Carlos de Assumpção (2025), Alberto Pucheu com precisão e coragem provoca: “É momento de nos perguntarmos se nossa história da crítica de poesia, superando o preconceito contra uma poesia declarada e explicitamente política, social, engajada, militante, ativista e revolucionária, finalmente chegou à altura de poder reconhecer em Pedro Tierra um de nossos poetas mais importantes e significativos”. Pucheu faz uma consistente e vertical abordagem em I. Nomes que não cicatrizam, falando de múltiplos aspectos da poesia de testemunho e do nome e codinomes e pseudônimo do poeta, até chegar a essa teórica e poética proposta de “poetônimo”; em II. “A medida do verso”, a razão do poema”, parte de uma carta de Emily Dickinson para especular que “verso novo seria esse” de que tanto fala Tierra. O também poeta e professor da UFRJ encontra numa conferência de Tierra a pista, quando ele defende, contrariando Maiakóvski, que, “sem conteúdo revolucionário, não há poesia revolucionária”. Na terceira estrofe de Regresso à terra, há um jogo que talvez ilustre esse debate entre “conteúdo e forma” que desde sempre ocupa corações e mentes:
Entro em meu poema,
amordaçado.
Em minha boca
palavras cegas
buscam o som de cinzas
adormecidas.
O poema está “amordaçado” porque (em paralelo à situação de amordaçamento do poeta e do povo de que se quer porta-voz) demasiadamente preso a preocupações formalistas e beletristas. Mas há uma pulsão que vem do corpo, da “minha boca”, que deseja acordar o “som de cinzas/ adormecidas”, tomadas aqui como a necessidade categórica de que um “conteúdo revolucionário” renasça, invada o poema e a vida. O paralelismo morfossonoro entre as palavras “amordaçado-adormecidas” atrai a atenção e dispara a diferença semântica. Esse jogo condensa a poética de Tierra, que transita entre muito mais camadas do que apraz a leituras apressadas. Se sua poesia é de fato hegemonicamente “política, social, engajada, militante, ativista e revolucionária”, não faltam em sua obra imagens que desafiam a interpretação. Aqui mesmo, em Regresso à terra, tão explícito em sua mensagem (canceladíssimo termo), o poema acumula imagens polissêmicas: que “luas acorrentadas” ferem o pulso do poeta? As correntes? O que seria esse “riso de ferros/ comprometidos”? O ranger das correntes? Por que “Este poema nasceu escravo” e, ademais, “Eu próprio nasci escravo?” Por conta da tradição beletrista (dos poetas) e escravocrata (do país)? Por que as palavras que “buscam o som de CINZAS/ adormecidas” são “cegas”? Porque não quiseram ver as cinzas da escravidão? E até o fim do poema outras questões se moldam — feito um barro que se dispõe a ser aquilo de que seu “país em luta” precisa.
Comparada à de alguns dos autores de sua preferência (“Drummond, Bandeira, Vinicius, João Cabral, Cecília, Adélia, Manoel de Barros”), a obra de Pedro Tierra é até pequena em volumes. No Memorial poético dos anos de chumbo (mpac.ufes.br), há 81 poemas de sua autoria, e na internet há facilidade para encontrar estudos acerca de sua produção e trajetória. No recente livro, Alberto Pucheu articula o vivido e o escrito: “Se o vivido trouxe o cárcere, a tortura, os assassinatos, o ódio dos opressores e a morte, os poemas — a vida na linguagem fragmentada dos versos medidos — trazem a memória, o testemunho, o renascimento, o ressuscitar dos mortos, o apontar a cara dos assassinos, a esperança, a luta, a vida…”. A certa crítica de poesia carece despojar-se de preconceitos e dedicar-se, de verdade, à tão decantada indissociabilidade entre vida e obra — sobretudo quando a obra se volta para problemas que vão muito além do umbigo dos poetas.
Pedro é pedra, Tierra é terra. A poesia de Hamilton Pereira da Silva talvez só queira isso: regressar a nós mesmos, sabendo-nos partes de um mundo maior — bem maior: barro e raiz.