No golpe de dezesseis,
não havia generais
como houve
da outra vez.
Era guerra
fantasiada de paz,
jagunços com togas,
congressistas fascistas,
democratas ditatoriais,
jornalistas ficcionistas,
todos, sem exceção,
no estado de exceção
recitando, em jogral,
a redação do juízo final
ou o samba desenredo
de um tétrico carnaval.
Em 31 de agosto de 2016, depois de um agônico e kafkiano processo político travestido de legalidade, consumado o golpe, Dilma Rousseff leu seu discurso de despedida, reservando as últimas palavras para citar conhecidos versos do poeta russo Maiakóvski: “O mar da história/ é agitado./ As ameaças/ e as guerras/ havemos de atravessá-las,/ rompê-las ao meio,/ cortando-as/ como uma quilha corta/ as ondas”. Desde que a encenação do impeachment teve início, e de forma crescente, um sem-número de intelectuais, militantes, cidadãos, artistas se manifestaram contra aquilo que já se antevia catastrófico, e que a continuidade do golpe, em curso, veio a confirmar: um governo antipopular, privatista, truculento, conservador, daninho, misógino, retrógrado, careta mesmo.
O poema Registro, de Ricardo Silvestrin, faz parte dessa onda, digo, dessa quilha que corta as ondas, atravessando o mar agitado que quer nos afogar. O poema deixa claro, desde o primeiro verso, sua (o)posição: “No golpe de dezesseis” — pois já se constituiu uma objetiva diferença ideológica e epistêmica entre os que dizem “golpe” e os que dizem “impeachment”. A ameaça do governo de censurar a realização de um curso universitário em cujo título se estampava o termo “golpe” prova não só o autoritarismo, mas a insegurança e fragilidade de seus dirigentes. Tal ameaça (espantosamente vinda do então ministro da Educação) ignora a autonomia da instituição pública de ensino superior. O poema não só se posiciona criticamente desde o primeiro verso, mas compara o atual golpe de 2016 com o golpe anterior, de 1964, quando militares (“generais”), com apoio de segmentos civis e do governo estadunidense, depuseram o presidente João Goulart. Lá e aqui, com distintas intensidades, um discurso nacionalista é acionado para combater supostas “ameaças vermelhas”, ou, na verdade, combater políticas que — entre erros e acertos — desejam diminuir a brutal desigualdade econômica entre as pessoas, redesenhando a pirâmide social.
Se a primeira estrofe relaciona sem temor ou hesitação o golpe de agora e o de outrora, a segunda mantém o tom incisivo e afirma se tratar de uma “guerra”, mas uma “guerra/ fantasiada de paz”, encenação em cujo palco desfilam atores mancomunados com o mesmo bizarro espetáculo (cujo ápice se deu com a transmissão televisiva da votação na Câmara, quando políticos em palanque invocaram Deus e Família, e mesmo um se deu ao desplante — jamais punido — de homenagear um torturador da presidenta): “jagunços com togas,/ congressistas fascistas,/ democratas ditatoriais,/ jornalistas ficcionistas”. Nesse suspeito bando, o olhar agudo do poeta percebe as contradições flagrantes: a toga (metonímia do poder de julgar) veste jagunços é provavelmente uma alusão a certo ministro fazendeiro do Supremo, que decidiria como se a mando de políticos ou coronéis ou como se coronel fosse; se o congressista, supostamente, representa o povo, cujo voto o elegeu, o comportamento despótico e autoritário (“fascista”) entra em choque frontal com sua função de servir ao público; de modo semelhante, “democratas ditatoriais” é um sintagma que, em tese, nega a si mesmo, haja vista o caráter antitético dos termos; o arremate da estrofe traz a expressão “jornalistas ficcionistas”, que põe abaixo toda ilusão de isenção do profissional da informação, assim como põe a nu a aliança entre Estado e Mídia quando interesses em comum estão em jogo: noutras palavras, a expressão insinua que jornalistas, no contexto do golpe, em vez de informarem, mentiam — pois que mentir às escâncaras é o estatuto mesmo da ficção. (Não à toa, a verve de Verissimo disparou: “Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data”.)
Em tal bando, “todos” — diz a terceira estância — se prestam ao mesmo exercício da pantomima diversionista do jogral (vocábulo a que não escapa certa acepção depreciativa: “vagabundo, indivíduo de má vida, em quem não se pode confiar”, no Dicionário Houaiss), a serviço, sem exceção, do estado de exceção. Aqui, não há como não recordar a célebre tese VIII, de Sobre o conceito de história, de Walter Benjamin: “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral. Precisamos construir um conceito de história que corresponda a essa verdade. Nesse momento, perceberemos que nossa tarefa é originar um verdadeiro estado de exceção; com isso, nossa posição ficará mais forte na luta contra o fascismo”. O verdadeiro estado de exceção seria a plena justiça social, o que — mesmo utopicamente — incluiria a felicidade e a dignidade humana em seu mais alto grau.
Esses jograis, todavia, em vez de divertirem a plateia com sua arte, estão a redigir o “juízo final”, isto é, o golpe ganha uma dimensão metaforicamente apocalíptica, que se atualiza na ruptura da ordem cotidiana com a feitura de um “samba desenredo”, que, sendo um enredo avesso ao esperado “samba-enredo”, só pode produzir — no lugar de um alegre — um “tétrico carnaval”: um fúnebre, soturno, vampiresco “descarnaval”. Assim, quando o poema se intitula Registro, é que ele quer incorporar traços da história, sendo memória e testemunho de seu tempo.
O impacto do golpe foi tão forte que, além de Silvestrin, muitíssimos outros poetas, Brasil afora, se dispuseram a elaborar, em versos, o acontecido. Sendo recente o revés político, apenas poucos poemas já receberam o formato impresso de livro, como o originalíssimo Sessão, de Roy David Frankel. A maioria absoluta — feito este de Silvestrin (publicado na página do poeta e em outros sites) — se dá a ver, ler e ouvir nas redes sociais, em especial no Facebook, onde há, inclusive, uma página chamada “Poemas contra o golpe”, com a participação de dezenas de poetas, entre os quais figuras conhecidas como Marcelino Freire, Chacal e Rodrigo Garcia Lopes. Ademais, ainda na internet, há outros registros de performances (Bárbara Esmênia, Nêggo Tom) e muitos outros poemas (Alberto Pucheu, Líria Porto), além do excelente artigo Poesia e golpe no Brasil, 1964 e 2016, de Pádua Fernandes, que se dedica à questão.
Ricardo Silvestrin é um dos melhores poetas em ação no painel da poesia contemporânea brasileira. Despojado, crítico, engraçado, versátil, tem livros e poemas de calibre e quilate raros. Em Bashô um santo em mim (1988), traz uma pérola que alimenta uma aula inteira de literatura, história, filosofia e teoria: “oswald/ pôs o pau/ brasil pra fora”. (A poesia de exportação do irreverente modernista se realiza, em dicção pornocômica, na forma de poema-piada, travestida de haicai: Oswald, Bashô e Silvestrin se misturam.) Pelo conjunto da obra, Ziraldo assinalou em sua apresentação de Typoghapho (2016, Patuá): “um vero poeta e um guerrilheiro da resistência”.
O poema Registro de Ricardo Silvestrin, em seus versos aparentemente simples, com intencional predominância do serpenteante fonema /s/ espalhado pelos muitos plurais (mas não só), parece reverberar uma reflexão de Adorno no aforismo 71, Pseudômenos, de Minima moralia: “Só a mentira absoluta tem ainda a liberdade para dizer de qualquer modo a verdade. (…) As mentiras têm pernas compridas: adiantam-se ao tempo”. Quem não quis (ou não pôde) ver a mentira do golpe à época é porque já estava atrasado. O golpe baixo da política recebe o golpe de mestre da poesia.