Quem sabe a morte, de Simone Brantes

O tom do poema, presente no livro “Quase todas as noites”, é de tranquilidade, como quem tateia, hesitante, entre hipóteses plausíveis para a morte
Simone Brantes, autora de “Quase todas as noites”
01/08/2021

Quem sabe a morte, no fim
das contas, seja uma coisa muito
natural, quem sabe rejeitá-la
seja algo, quem sabe, bastante
estúpido, algo assim como, quem
sabe, fechar o livro predileto
uma página antes do final

A sétima acima, sem título, da friburguense Simone Brantes, foi publicada no livro Quase todas as noites, em 2016. É um dos poemas que compõem a seção de abertura Meus mortos, a maior. As demais seções se intitulam A moça sonha, Corpo estranho e No caminho de Suam. Parece, em seu teor e estrutura, uma composição simples, singela — o que nem seria, em si, problema algum. Mas quando se trata da morte, tema tão universal (quanto o amor), o que pode ser simples? Ademais, exatamente por se tratar de algo, na vida e na arte, onipresente, o que traz — de mesmo e diverso — o poema de Simone? Na orelha, Caio Meira antecipa uma pista consistente, que a leitura integral do livro há de firmar: livro e poema pensam “o que permanece e o que passa, o que é sonho e o que é real”. Delicadeza e razão se entrecruzam na poesia de Simone Brantes, transitando entre eros e tânatos.

Vale registrar, para prudente aproximação do poema, a formação da poeta, com mestrado em Hegel e doutorado em Kafka. De um lado, um filósofo cujas reflexões acerca da poesia lírica repercutem imensamente ainda hoje; de outro, um escritor que tornou visíveis algumas engrenagens que manipulam o cotidiano dos homens, entre as quais, a morte, em suas múltiplas manifestações. Em lúcida resenha sobre o livro de Simone na revista Cult, Cláudio Oliveira diz: “A morte é da ordem da singularidade absoluta e, portanto, da ordem do intransmissível. Ninguém pode passar a sua experiência de ter morrido para ninguém, até porque, no limite, ninguém pode ter essa experiência. Pois, se, para morrer, basta estar vivo, por outro lado, não é possível estar vivo para poder fazer a experiência de estar morto”.

O tom do poema — que dispensa a habitual presença de um eu gramatical — é de tranquilidade, como quem tateia, hesitante, entre hipóteses plausíveis para a morte: uma coisa natural, algo estúpido, um gesto decisivo e radical (fechar o livro antes do fim).

A tranquilidade do tom, em que pese a presença de advérbios e adjetivos fortes (muito, bastante, estúpido, predileto), encena e ilumina a inextricabilidade entre maneira e matéria — como o poema diz aquilo que diz. Chama a atenção, desde a primeira leitura, a expressão “quem sabe”, que percorre e atravessa o poema de sete versos por quatro vezes. Tal expressão significa, sabemos, quase sempre, “talvez”. E é essa a ideia nuclear do poema: a morte talvez seja isso, talvez seja aquilo, talvez nada disso nem daquilo. Porque, descartando qualquer postura mística ou metafísica, “Morte é morrer, simplesmente. Deixemos de sutilezas. Morrer é esgotamento das manifestações vitais”, escreveu Mário de Andrade ao amigo Manu em dezembro de 1924. Por mais óbvio que seja, vale repetir: fora da ficção, na vida real e concreta, ninguém vive a morte. Os sentimentos (de medo, tristeza, dor, desamparo, finitude, solidão, melancolia e que tais) que o fantasma da morte produz são vividos em vida. Daí, a bonita e contundente imagem derradeira: “fechar o livro predileto/ uma página antes do final”. Se a vida é sonho, como advertiu Calderón, e sonhos são efêmeros, a vida acaba, expira, morre, antes que o sonhador vire a página final, pois sempre haverá uma página final a ser virada (que, um dia, não virá), e nenhuma página a virar depois do final.

Se lida ao pé da letra, e a repetição nos induz a desconfiar de seu sentido primeiro (“talvez”), na expressão “quem sabe” se diz “aquele que sabe”. E quem é que sabe? O poeta, a poeta, o leitor, a leitora? Assim, em “quem sabe” ecoam os sentidos de “conhecer” e “ter o gosto de”: conhecer a morte, ter o gosto da morte — para poder e querer torneá-la (tornando-a um objeto). A morte povoa o imaginário da humanidade e se dissemina, ou pulveriza, em todas as manifestações de arte desde tempos imemoriais. Não há quem queira ou possa ignorar tal espectro. Há quem tenha feito da morte a matriz da própria obra. Entre nós, por exemplo, há muitos antológicos poemas de Álvares de Azevedo, Augusto dos Anjos e Manuel Bandeira, cada qual dando forma e estilo à sombra da Indesejada das Gentes, sem contar os inúmeros clássicos que estampam, já no título, a protagonista, feito Morte e vida Severina, de João Cabral, ou Morte em Veneza, de Thomas Mann.

Em Quase todas as noites também se dá a ver a verve erótica da poeta, que tanto desenha o prazer em ação, em As moças, quanto a lição para alcançá-lo, em Pote. Um por um: “Como duas moças se encontram/ pelas moitas? Como entram duas vulvas/ sob a colcha?/ como sem mergulho/ marulham no fundo os líquidos / de uma na outra?/ Como, como —/ por que poder de Deus/ — as moças/ se comem se comem se comem/ com as coxas?”; o outro poema: “Você acha que sexo é isso:/ três/ ou quatro/ posições/ e executá-las?/ Você quer/ muito/ muito mesmo/ que eu goze?/ Então vamos por partes —/ não se vai com tanta sede ao pote —/ Primeiro: fabricar a sede/ Segundo: fabricar o pote/ Terceiro: deixar que a água jorre”.

Em ambos os poemas, a consciência do corpo encontra correspondência na sintaxe e no ritmo: “se comem se comem se comem” faz o que diz em As moças, e de modo similar em Pote a quebra dos versos em “Primeiro: (…)/ Segundo: (…)/ Terceiro: (…)” executa, ironicamente, as partes que a sede da/do amante não cumpre. Tais poemas funcionam como uma espécie de respiro, de adiamento do inevitável e iniludível. São as páginas lidas antes que falte a página final. É, para retornar a Cláudio Oliveira, “como se fôssemos transitando da morte à vida, de um gozo mortífero ao desejo vital”. E de quase todas as noites, com seu poder de encerrar o fluxo, a quase todos os dias, com sua força de, à maneira de Sísifo, recomeçar, como se lê no belíssimo poema de abertura do livro, Die Aufgabe: “Chegar em casa um pouco mais/ do que cansada e puxar ainda assim/ e aos poucos o fio longo da mortalha/ até fazer da noite sair enfim um dia/ dentre todos os dias e morrer na praia” (grifo meu). A tarefa não é nada fácil.

Há um movimento no poema de Simone que, embora explícito, é bem sutil: trata-se do corte dos versos. São apenas sete versos, mas em toda passagem de um verso a outro se elabora um efeito que um leitor tranquilo e atento há de perceber (sentir, entender). O exercício passa por ler cada verso em si mesmo, com sua própria pausa e seu respectivo sentido, e a seguir ler o mesmo verso e sua sequência, entrando no jogo do enjambement, e se deixar tocar pelas alterações rítmico-semânticas dessa nova leitura. Assim, por exemplo, provocam efeitos distintos os trechos (a) “Quem sabe a morte, no fim” e (b) “Quem sabe a morte, no fim/ das contas”; e os trechos (c) “Quem sabe a morte, (…)/ seja uma coisa muito” e (d) “Quem sabe a morte, (…)/ seja uma coisa muito/ natural”; e também os fragmentos (e) “quem sabe rejeitá-la/ seja algo, quem sabe, bastante” e (f) “quem sabe rejeitá-la/ seja algo, quem sabe, bastante/ estúpido”; ou ainda (g) “estúpido, algo assim como, quem” e (h) “estúpido, algo assim como, quem/ sabe”. Tais efeitos dão ao poema um tom de conversa prosaica e se entrelaçam ao clima de divagação e ambivalência que a expressão “quem sabe”, cortando o poema, amplia. Verso a verso, as dúvidas e suposições se acumulam, num crescendo, que a própria extensão silábica dos versos confirma: 7/9/9/9/10/10/10. E, feito um soneto, o fecho de ouro, metapoético, coroa o aparentemente singelo poema.

Singelo porque não afetado. Singelo porque sabe que a morte é um tópos universal, que é motivo de infinitas obras e dobras no Brasil e no mundo em todos os tempos, e que não se arroga a pretensão de reinventar a morte ou explicá-la. Que um poema não é um ensaio filosófico. Por isso — quem sabe está de ponta a cabeça no poema. Por isso, o seu tom insinuante e sinuoso, porque a morte é assim, insinuosa. No poema, há um sujeito que sabe que duvida. Eu não sei o que é a morte, talvez seja isso, talvez não seja, quem é que sabe? Há quem aceite, por natural. Há quem rejeite, por estúpida. Sem a certeza do que seja o ser-da-morte, ou o ser-para-a-morte, como quer Heidegger, o poema se fecha, sem ponto final, na metáfora do livro (predileto) que se fecha antes do fim. Singelo, tocante, preciso. Corpo predileto. Gozo predileto. Livro predileto. Coxas, potes e veredas.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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