[quando eu era criança], de Bruna Mitrano

Poema de Bruna Mitrano escancara um mundo mesquinho, cruel e violento contra crianças e mulheres
Bruna Mitrano, autora de “Não”
01/11/2022

quando eu era criança
o meu pai esfregava o pau
na minha bunda
e depois chorava
ele sempre chorava
pedindo desculpas
quando eu era criança
o meu pai cuidava de mim
me ensinava a ler
a andar de bicicleta
porque a minha mãe
estava muito ocupada
sendo deprimida
o meu pai nunca deprimia
mesmo cansado do bife
trabalhar dezoito horas
como motorista de ônibus
chamava bife
o meu pai toda noite
ia no meu quarto
e dizia te amo filha
lambendo a minha orelha
uma vez mordeu
tão forte que sangrou
ele chorou e pediu desculpas
eu disse não dói pai não fica triste
e meu pai chorou mais
depois que eu disse não chora
eu não entendi
eu não entendo
por que estou quebrando
linhas se isso não é um poema
é uma denúncia inútil
agora que meu pai é velho
e não cuida mais de mim.

Os primeiros versos do primeiro livro — Não (Patuá), de 2016 — de Bruna Mitrano dizem: “abro minha guerra./ estou na sua frente./ me olha”. O terceto sintetiza com precisão o que Nina Rizzi afirma no prefácio de Não: “Não são — oxalá! — palavras bem-arranjadas na estante, mas palavras-potências que nascem, vivem, morrem e estão prontas a ressuscitar a cada leitura”. Assim, os poemas e as ilustrações (da própria poeta) configuram um mundo, e nele um Brasil, bem problemático, mesquinho, cruel, violento. Entre tantos temas e aspectos, o corpo, e sobretudo o corpo feminino e infantil, é objeto frequente de abordagem: abordagem no poema porque abordada na vida a menina-criança, futura mulher que deverá lidar com os traumas oriundos da arrogância e insensibilidade dos homens. Tudo isso retorna no poema [quando eu era criança], publicado na Antologia Poética n. 1 – poemas para ler antes das notícias, da Cult, com organização de Alberto Pucheu.

O poema, com estrofe única de 35 versos, conta uma história perversa e criminosa: a de um pai pedófilo. Embora a “narradora” do poema seja, no momento da enunciação, uma pessoa adulta, ela usa uma sintaxe e mesmo um vocabulário similares aos de uma criança. Tal similaridade, na verdade, se entrecruza com a perspectiva (sintaxe e vocabulário) de uma mulher madura, e desse entrecruzamento se constituem a dicção e a estrutura do poema, que começa e termina com marcações temporais: “quando eu era criança/(…)/ agora que meu pai é velho”. A filha, incessantemente assediada (“ele sempre chorava”; “o meu pai toda noite”), busca elaborar um relato que é tanto poema quanto denúncia. Feito um conto, os personagens desse poema — filha narradora, pai pedófilo, mãe deprimida — transitam basicamente pelo espaço da casa, sobretudo o “meu quarto”, quarto da filha. O testemunho se faz de forma descritiva, deixando o leitor como se fora um psicanalista, na escuta da memória do outro.

Tal qual em Não, os versos de abertura impactam: “quando eu era criança/ o meu pai esfregava o pau/ na minha bunda/ e depois chorava”. A reminiscência vem de imediato, completa, categórica, sem ponderação ou eufemismo nas palavras: criança, pai, esfregava, pau, bunda, chorava. A cena (lida, ouvida) constrange, pois aciona a lembrança de que tal nefasto acontecimento é corriqueiro, diário, conhecido, a despeito da imensa subnotificação de casos. Se a pedofilia já é algo hediondo, a pedofilia cometida pelo próprio pai ainda mais hediondo é. A semelhança morfossonora entre “pau” e “pai” se confirma no campo semântico: o mundo patriarcal, falocêntrico, quer se impor à base da força, e assédios e estupros e violências de toda ordem contra o corpo alheio se multiplicam. O verbo “esfregar” — “roçar(-se), procurando contato voluptuoso” — comprova o gesto despudoradamente libidinoso, tocando região erógena, a “bunda”, de uma pequena criança. A informação de que o pai “depois chorava”, reiterada mais duas vezes ao longo do poema, espanta, porque provoca mal-estar, asco e dúvida: chorava, arrependido do delito (ao qual retorna)? Ou chorava porque acometido de disforia pós-coito?

Os versos seguintes desenham um pai “normal”, que “cuidava de mim/ me ensinava a ler/ a andar de bicicleta”, ou seja, aos olhos da opinião pública, nada de criminoso há a suspeitar. A mãe, como também se sabe tantas vezes acontecer, mesmo tendo conhecimento do que ocorre em casa, não toma uma atitude para impedir. No caso do poema, essa mãe “estava muito ocupada/ sendo deprimida”. A locução verbal “sendo deprimida” expressa ambivalência, pois indica simultaneamente que a mãe se encontra em permanente estado de depressão, assim como se vê submetida a humilhação, desprezo, silenciamento, decerto pelo marido. A criança, agora adulta, resgata da memória que o pai era trabalhador, explorado, com trampo de “dezoito horas/ como motorista de ônibus”, talvez insinuando alguma motivação para seu modo criminoso de agir, como se tivesse de “descontar” em alguém mais “fraco” (a própria filha) a opressão que sofria do modo capitalista de apropriação do trabalho. No termo “bife”, tipicamente carioca, significando “comissão que o motorista de coletivo recebe sobre a féria do dia”, não deixa de ecoar o sentido comum de “fatia de carne”, provocando novo mal-estar com a associação entre bife-trabalho-comissão e bife-corpo-bunda.

As cenas de assédio, violência e possível estupro se repetem, chegando a provocar ferida e sangramento (“uma vez mordeu/ tão forte que sangrou”). Sem que o poema explicite, talvez aqui se queira, metaforicamente, sugerir a perda da virgindade. O pai, sempre culpado e choroso (mas somente após o ato), é confortado pela filha, que não alcança, em sua puerilidade, a gravidade do que acontece. Se a criança não entende, tempos depois o adulto entenderá. Theodor Adorno, no aforismo 104, Golden Gate, de Minima moralia, dirá: “Ao ofendido, preterido, uma coisa fica clara, de uma maneira tão penetrante como quando as dores agudas iluminam o nosso corpo. Ele compreende que no íntimo do amor obcecado, que disso nada sabe e nada deve saber, vive a exigência de quem não está obcecado. Ele sofreu uma injustiça; daí ele deriva a reivindicação do direito e, ao mesmo tempo, tem que rejeitá-la, pois o que ele deseja só pode vir da liberdade”. Tal movimento que traz o aforismo, com as devidas mediações, o poema realiza ao final, quando o trauma se elabora.

Se um trauma se elabora, na vida real, ao longo de um bom tempo de reflexões acerca do “passado que não passa”, no poema de Bruna Mitrano a elaboração do trauma se evidencia nos contundentes versos finais:

eu não entendi
eu não entendo
por que estou quebrando
linhas se isso não é um poema
é uma denúncia inútil
agora que meu pai é velho
e não cuida mais de mim.

A mudança do verbo no pretérito para o presente — entendi, entendo — demonstra que o lugar e tempo de que fala a criança é aqui-e-agora, ou seja, não mais infante, mas falante. A consciência do que ocorreu ganha isomorfia na consciência do fazer poético e de seu estado existencial: em “por que estou quebrando/ linhas”, o enjambement embaralha o sentido de quebrar como “fragmentar(-se), despedaçar(-se), romper(-se)”, em virtude do que sofreu a criança, e de quebrar como “passar para a linha seguinte”, em gesto metalinguístico, que pensa a palavra em seus modos de justeza e justiça. Porque, sendo também uma denúncia — “ato verbal ou escrito pelo qual alguém leva ao conhecimento da autoridade competente um fato contrário à lei, à ordem pública ou a algum regulamento e suscetível de punição” —, o poema incorpora em sua forma o conflito entre o jurídico e o estético: como tratar num poema (do qual se extrai prazer) de questão tão abominável (da qual emana horror)?

A sensação que permanece, contudo, é de inutilidade (“uma denúncia inútil”), pois o tempo transcorreu, e só “agora”, com o pai envelhecido, o trauma ganhou forma de poema, “quebrando/ linhas” e quebrando bloqueios e dispositivos que prendiam a criança à autoridade e ao jugo paterno. A estrofe única e a ausência de pontuação (“eu disse não dói pai não fica triste”) procuram encenar o jorro da memória em tensão com o esforço de organizar o difuso. A situação da menina no poema recorda algo da situação da menina de O caderno rosa de Lori Lamb, de Hilda Hilst, com cenas de pedofilia com tio Abel, contudo a Lori de Hilst defende o pai, escritor frustrado porque vende pouco, enquanto a menina de Mitrano, resiliente, cordeira, vê o pai “lambendo minha orelha”. (O poema e o romance têm inúmeros pontos de diferença, mas não cabe aqui comentá-los.)

Na antologia As 29 poetas hoje, de Heloisa Buarque de Hollanda, Bruna Mitrano participa com cinco poemas, e logo o primeiro já diz: “semente de abóbora cura solitária/ quem não é/ que tem estômago pra lembrar de ser menina”. Noutros poemas, o tema da família se manifesta: “coisa de família nunca entendi/ o que é essa coisa de família”; ou em “quando você chega à idade/ de recolher as toalhas usadas/ vê o encardido nas pontas/ e percebe/ esfregando as toalhas/ (parecem de pelúcia)/ no rosto/ (parece de criança)/ que sua mãe está velha/ pra satisfazer os desejos dos donos/ da casa e que logo será você/ a satisfazer os donos/ da casa (…)”. A opressão, o assédio vêm de todos os lugares, começando pela própria casa — o próprio pai abusa da filha, criança cuja sexualidade ainda está em início de configuração e vê o corpo invadido por quem deveria protegê-la.

Retomando a reflexão de Adorno, a perversão do pai, que não consegue controlar seu desejo e fetiche, produz uma criatura, a filha, que, ofendida pela obsessão alheia (do pai), cresce e “descobre” a injustiça sofrida. A reparação da ofensa, física e psicológica, vem na forma de poema-denúncia, que, para o filósofo, pode se chamar “liberdade”, quando o trauma — sem desaparecer — se atenua, e o pai (o dono da casa, o opressor, o pedófilo, o estuprador) se torna algo “velho”, gagá, decrépito, coisa, mero nada. Os poemas de Bruna Mitrano são intensos e “ressuscitam a cada leitura” (Nina Rizzi), ao contrário de pais como estes que, fracos e covardes, desprezíveis feito um dois de paus, morrem a cada vez que molestam uma criança.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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