Prenúncios de aurora, de Alipio Freire

Todo o poema é uma homenagem a uma jovem torturada e assassinada pela ditadura
28/02/2018

I.
Aurora
eu te diviso
ainda tímida
inexperiente

das luzes
que vais acender

dos bens
que repartirás
com todos os homens

— Prenunciou o poeta gauche
em seu sentimento do mundo

Antes
muito antes
de nascer
Aurora.

Os quinze versos acima constituem apenas a primeira de sete partes do comovente poema Prenúncios de Aurora, do livro Estação paraíso (2007), de Alipio Freire. Todo o poema é uma homenagem a Aurora Maria Nascimento Furtado, torturada e assassinada, aos 26 anos, em novembro de 1972 por agentes da ditadura militar brasileira. Há outros poemas que fazem alusão à estudante, e o livro é dedicado a ela: “em memória de Lola” (Lóla, e não Lôla). É um livro, assim, sem medo de se dar a ver naquilo que é sua força maior: uma obra de arte engajada, de resistência, pois, como diz o autor na apresentação, “sem poesia não existem revoluções, mudanças estruturais ou construção do socialismo”. Apesar do tom melancólico que o atravessa, o livro se elabora também com certo humor cáustico, como no dístico de Universidade em crise (“Le marxisme est mort!/ Vive le marxisme.”) ou na quadra de Ezra Campos (“Poesia-poesia/ é/ poesia-para/ a tribo”). As fartas citações de Estação paraíso embaralham a experiência política do militante e a formação estética do poeta.

A parte V traz nome e apelido da homenageada: “Aurora/ Maria///Nascimento Furtado/// — Lola”. Na parte I, percebe-se que o poema lança mão de duas das acepções de “aurora”: claridade do início da manhã, antes do nascer do Sol; e, por extensão, o despontar da vida. Chamam a atenção a primeira e a última palavra do poema: Aurora. Parece que o movimento da aurora vai se realizando, enquanto se leem os versos. (De modo análogo à parte I, as partes III e VII se encerram com a palavra “Aurora”, enquanto a parte V com “Lola”, demonstrando a força imantadora do nome da militante recordada.) Mas mais ainda esse movimento se performa em seu ritmo. A escansão das cinco estrofes transcritas acima nos faz visualizar o seguinte esquema: 2-4-4-5 /// 2-5 /// 2-5-5 /// 8-8 /// 1-3-3-2. A única passagem — de um verso a outro — em que há uma queda no número de sílabas é quando, da penúltima para a última, se vai de um verso de 3 para um de 2 sílabas, como se se estivesse reiniciando o ciclo de uma nova aurora, como se o último verso (Aurora) evocasse e se religasse, de modo circular, com o primeiro (Aurora).

Irônica e tragicamente, essa aurora coincide com o nome próprio Aurora, de uma Aurora que teve seu “Nascimento Furtado”, como diz o verso da parte V. O nome completo da jovem (Aurora Maria Nascimento Furtado) seria, nessa amarga chave alegórica, já um prenúncio de seu triste destino, interrompido precocemente por bárbaras forças do poder estatal. Talvez, nessa trilha da metáfora onomástica, Lola gostasse de se nomear “Luísa Porto”, pela ideia de luminosidade e movimento, clareza e liberdade: “Quando telefonava/ clandestina/ para encontros/ clandestinos/ identificava-se/// Luísa Porto”. Esse outro nome clandestino de Lola remete ao poema Desaparecimento de Luísa Porto, de Novos poemas (1948), de Drummond, que fala de uma moça que sumiu sem deixar vestígio: “Somem tantas pessoas atualmente/ numa cidade como o Rio de Janeiro/ que talvez Luísa Porto jamais seja encontrada./(…)/ Não me venham dizer que Luísa suicidou-se”. Na versão da polícia, Aurora/Lola seria uma traficante de drogas e teria sido morta após tentativa de fuga. Na verdade, Aurora “foi submetida ao pau-de-arara, sessões de choques elétricos, espancamentos, afogamentos e queimaduras. Aplicaram-lhe também a ‘coroa de cristo’, fita de aço que vai gradativamente sendo apertada, esmagando aos poucos o crânio” (fonte: Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos). Todo esse suplício foi também contado, em descrição minuciosa e bem impactante, na narrativa Em câmara lenta (1977), de Renato Tapajós. Em dissertação sobre este romance, de Lairane Menezes (2013), há uma excelente análise do poema Réquiem para uma Aurora de carne e osso, do livro Inventário de cicatrizes (1978), de Alex Polari.

Na parte II, o poeta se recusa a aceitar que “Acabou a poesia”, pois Lola “não ligou nunca mais”. Em III, retoma a esperança, a luta, a resistência, dizendo “haver sobrado/ alguma poesia (…) porque não posso/ sozinho/ dinamitar a ilha de Manhattan/ e construir uma nova/ Aurora”. De novo, Drummond — agora de Sentimento do mundo (1940) — aparece, com os versos finais de Elegia 1938, aos quais se acresce o desejo de “construir uma nova/ Aurora”. Ou seja, ali onde o poeta itabirano termina, sem horizonte ou proposta de continuidade, o poeta baiano (Alipio Freire nasceu em Salvador, em 1945) propõe um recomeço, sempre movido pelo duplo signo [a] do nome próprio Aurora e seus ideais libertários e democráticos e [b] do substantivo comum aurora e seus sentidos de brilho e broto. A parte IV mantém o ambiente da mineira lírica drummondiana, com referências a “garimpo”, “mineração” e “bateia”, e mantém a onipresente alusão a Lola, recuperando traços de sua beleza juvenil: “Minha Aurora/ tem um desenho humano/ traçado por mestres/ de obras”. A parte VI aciona o romântico Meus oito anos (1859), de Casimiro de Abreu, mas inverte-lhe o sentido celebratório: “Que saudades/ que tenho/// Da Aurora/// Da minha vida/// que Auroras/ que Sol/ que Vida/ que nada” — este “nada” em minúsculo, em contraste com a força simbólica das letras maiúsculas anteriores, dá a dimensão da carga de tristeza, desamparo, revolta e derrota que a morte de Lola provocou nos companheiros de luta.

O fecho do poema, VII, traz: “Eles assassinaram a Aurora/// Restou ao dia amanhecer/ solitário/ em ruptura/ radical/// Havemos de amanhecer/// O mundo se tingirá/ E o sangue que escorrer será doce/ de tão necessário/ para colorir tuas pálidas faces/ Aurora”. De “Havemos” em diante, o poema quase que repete as palavras e os versos finais de A noite dissolve os homens, do mesmo Sentimento do mundo. Em Drummond, no entanto, o verso derradeiro diz: “para colorir tuas pálidas faces, aurora”; em Alipio, as pálidas faces são de Aurora, aquela que “eles assassinaram”. A utopia de uma impossível aurora, num mundo já em clima de guerra, com a ascensão do nazifascismo, encontra uma infeliz e trágica correspondência, décadas depois, em um Brasil golpeado pelo autoritarismo militar que silenciou (censurando, exilando, matando) Aurora/Lola, e Olga, Elisa, Heleny, Helenira, Ísis, Soledad, Alceri, Pauline, Iara, Maria Lúcia, Ana Rosa, Margarida Alves, Dorcelina e Roseli Nunes, para rememorar apenas os nomes que o próprio Alipio Freire registra no livro.

Em meio às reflexões que faz acerca da tensa dialética entre arte autônoma e arte engajada, Adorno em Engagement (1962) afirma: “Arte é resistir à roda-viva que sempre de novo está a mirar o peito dos homens”. Se a utopia da aurora no autor de A rosa do povo (que Celia Pedrosa estudou em Representação da aurora: poesia e história em Carlos Drummond de Andrade) encontra na morte de Aurora — do poema de Alipio Freire — um lamentável, real e concreto exemplo histórico, a arte de ambos os poetas se coloca como anteparo ao peito dos homens, no sentido de elaborar em forma de poema elementos que, ruminados, ajudam a resistir a essa roda-viva que nos mira sem cessar. No atual contexto regressivo, em que boçais cultuam torturadores, poemas como este Prenúncios de Aurora podem não provocar imediatamente revoluções nem a construção do socialismo mas podem fazer com que o peito dos homens bata mais forte e solidário, mais corajoso e bonito — mais luzes e bens: mais Aurora. (Presente.)

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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