Poluição, de Lara de Lemos

Nos versos do poema paira a sombra fantasmagórica do tempo do qual ele nasce: a opressão do governo autoritário a partir do golpe de 1964
Lara de Lemos, autora de “Passo em Falso”
04/11/2020

Engulo a cinza
de cada dia
como o repasto
de cada passo.

Cinza no dolo
do Sol/dado
e no acossado
que prova o gosto

de tiro ou soco.
Cinza no olho
e seu coágulo.
Cinza no fundo

de cada copo.
Cinza no osso
cinza no mundo
cinza no corpo.

Cinza no quieto
do meu protesto.
Cinza no rosto
de cada morto.

As nove vezes em que a palavra “cinza” aparece no poema Poluição absorvem um amplo espectro de sentidos que tal cor aciona. A reiteração incessante do termo já encena, por si mesma, o título do poema, pois, feito uma poluição, dispersa nos versos os resíduos de algo não agradável — restos de uma queimada ou um pó de minério, por exemplo. Mas, pior ainda do que esse ou outro pó nocivo, são os demais sentidos metafóricos e alegóricos do vocábulo que, no contexto do poema, publicado no livro Para um rei surdo (1973), repercutem: a) cinza como restos de um cadáver; b) cinza como a permanência doída de uma lembrança; c) cinza como ruína de algo (objeto, projeto, vontade; paz, democracia, vida) que foi destruído; d) cinza como cor associada, simbolicamente, a perda, depressão, isolamento e solidão. Não à toa, um tempo cinzento é tido como triste, melancólico, propenso à quietude e à introspecção.

Todos esses signos se entrecruzam no poema de Lara de Lemos, e sobre todos paira a sombra fantasmagórica do tempo do qual ele nasce: a opressão do governo autoritário que tomou, de golpe, em 1964, o poder do Estado brasileiro. A história desse golpe e de suas terríveis consequências já se encontra vastamente documentada, e nenhum revisionismo há de falsificar o que ocorreu. A arte e a poesia colaboram, a seu modo, para testemunhar parte dessa tragédia. Em 1973, o Brasil passava pelo período do mais nefasto e cruel presidente militar, Médici (1969-74), que conduziu com mão de ferro e tirania uma perseguição desumana contra aqueles (sindicalistas, estudantes, intelectuais, artistas, militantes) que a seu governo se opuseram. À maneira do rei nu, cercado de pessoas hipócritas, incapazes ou omissas, o “rei surdo” de Lara de Lemos parece apontar na direção de um déspota que não ouve seu povo, que ignora o desejo da comunidade à qual deveria servir.

A autora soube na pele (olho, osso, corpo, rosto) o que seus versos dizem. O trauma da experiência da tortura a levou a escrever seu livro mais conhecido, Inventário do medo (1997), cujo título faz recordar o também importante testemunho poético de Alex Polari, Inventário de cicatrizes (1978). Comentando o Inventárioda poeta nascida em Porto Alegre, Cinara Ferreira afirma que “apreende-se a importância da poesia de Lara de Lemos, na medida em que desvela sua experiência pessoal, expandindo-a para o conhecimento de uma experiência coletiva, que interferiu no modo de viver de toda a sociedade brasileira, dissidente ou não”. Em um dos poemas mais doloridos do livro (e são muitos; veja-se o tocante Indagações a uma menina, dedicado a Anne Frank), Celas – 4, a alusão ao cinza reaparece: “Perco-me num mar de cinzas./// Tropeço à toa/ no coração/ sem asas./// Peço que o vento divulgue/ este descaso de pedra/ este silêncio de muro/ esta tristeza de grades”. A memória da prisioneira, que teve os filhos também presos (um, com dezesseis anos), reelabora o passado, buscando, não a cura, mas formas alternativas de convivência com o horror acontecido.

Em Poluição, a estrutura com cinco estrofes de quatro versos todos com quatro sílabas (à exceção do verso “do Sol/dado”, único diferente, com a barra quebrando a palavra “soldado”, dobrando-a em duas, sol e dado, como a compensar a quebra da regularidade rítmica), com a repetição anafórica de “cinza” em todos os blocos estróficos (1/1/2/3/2), e com a marcação rímica em todo verso (iiaa/ oaao/ ooau/ oouo/ eeoo), tudo isso parece querer ecoar uma espécie de mantra, de ladainha, de expurgo de algo indesejável, trauma que não se vai, “memória de um passado que não passa” (Márcio Seligmann-Silva, em A história como trauma). De modo análogo, guardadas as evidentes assimetrias de contexto, o poeta romeno Paul Celan, sobrevivente de Auschwitz, utiliza a cor cinza para dar a ver a condição desumana a que estavam submetidos nos campos de extermínio: “Teu cabelo de cinzas Sulamita cavamos um túmulo nos ares lá não se jaz apertado”, diz em Todesfuge, referindo-se à queima de corpos nas câmaras e às cinzas saindo pelas chaminés; em Stretto, nos versos “Veio uma palavra, veio,/ veio pela noite,/ queria brilhar, queria brilhar/ Cinzas/ Cinzas, cinzas”, para Jaime Ginzburg (em Crítica em tempos de violência), “embora traga em si a determinação de evidenciar-se, em meio à escuridão, a palavra cede lugar no horizonte do sujeito para as cinzas, resíduos da destruição que ocorre à volta”. A morte — “Cinza no rosto/ de cada morto”, diz Lara de Lemos — se anuncia na cor cinza (como também no livro A leitura das cinzas, do poeta polonês Jerzy Ficowski).

Da primeira à última quadra, a presença do/da cinza se intensifica: de início, o sujeito “engole” a cinza feito um animal o seu “repasto” de todo dia; a seguir, o cinza figura um sentimento de opressão de quem é perseguido, ferido, castigado (“acossado”); a imagem do “coágulo” no olho na terceira estrofe antecipa sua infiltração pelo “corpo”, no “mundo”, até que atinge o “protesto” do sujeito, protesto que vinha sendo aniquilado a “tiro ou soco”; a cena final traz a cinza da morte. No artigo Lara de Lemos: o tenso rememorar da ditadura militar no Brasil, sobre o poema Celas – 21 (de Inventário do medo), cuja primeira estrofe diz: “Eram corpos de trevas e lonjuras/ cobertos de brasas e feridas./ Pelas noites sombrias eles choravam,/ pela manhã cinzenta adormeciam”, Kátia Bezerra comenta: “os adjetivos vêm reforçar o clima de insegurança, escuridão e dor que marca o dia a dia dos prisioneiros”.

Sobre esse clima e sobre o sofrimento dos prisioneiros naqueles “tempos de violência”, Lara de Lemos rememora em entrevista concedida a Cinara Ferreira em 2009 (meses antes de falecer, em 2010, aos 87 anos): “Essas prisões eram horríveis, pela maneira que nos tratavam. Eles nos colocam um capuz no rosto e empurravam numa escada abaixo. Eu não sabia em que ia pisar ou cair. Muito desagradável. Um dia, eu perguntei para eles: ‘Por que vocês não me matam de uma vez?’ Eles riram de mim e perguntaram: ‘Como a senhora quer morrer?’”. O cinismo, o sadismo e a prática de torturadores a serviço de um Estado deveriam ter sumido para sempre de nossa história, mas continuam sendo defendidos por governantes saudosos daqueles tempos cinzentos.

A obra de Lara de Lemos tem sido objeto de estudos cada vez mais crescentes, mas ainda insuficientes para sua dimensão e grandeza. Em artigo de 2004, Poesia feminina em tempo de repressão as mulheres que se expressaram em verso nos anos 70 e 80, Regina Zilberman sintetiza a trajetória da escritora gaúcha: “a tônica engajada verificável em autoras que nasceram sob o signo da lírica intimista e que, nos anos 70, alteraram seu modo de escrever, na tentativa de responder ao chamado político que a época exigia, como mostram Ilka Brunhilde Laurito, Lara de Lemos e Renata Pallottini”. Zilberman cita um poema de Adaga lavrada, de 1981 (livro que se segue a Para um rei surdo, de 1973): “Afio devagar/ dentes e unhas./ Persigo a presa./ Não cedo/ um palmo de mim/ nem de meu passo.”. Ou seja, a poeta, apesar dos percalços, das dores, das tristezas, persistia firme na resistência.

Há muitos mundos, com muitas outras cores além do cinza, na obra de Lara de Lemos à espera de leitores. Em Palavravara (1986), por exemplo, lemos uma provocação bem-humorada aos colegas de ofício: Recado para um poeta artesanal: “Faça um livro de pano/ macio, impresso em cores/ sem franja ou nó/ bordado ou crivo./// A poesia não sendo boa/ não haverá protestos./ Servirá para tirar o pó/ dos outros livros”. Lara parece aqui cifrar um recado: tirem o pó dos livros. Tirem o pó dos meus livros, parece ecoar o recado, mirando sua obra que atravessa todas as décadas, de 1957 (com o inaugural Poço das águas vivas) até 2006 (com Passo em falso), interpretando o Brasil multicolorido. Ouçamos o recado. Se vivemos, novamente, tempos perigosamente poluídos e cinzentos, afiemos dentes e unhas. Não fiquemos, feito o obtuso rei de outrora e agora, surdos. (Nem cegos às cinzas ao redor.)

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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