Pior do que a morte, de Frederico Barbosa

Frederico Barbosa, poeta brasileiro
01/05/2023

para JC

O pior é que dizem: rezou.

Ele que sempre foi contra,
do contra, ateu,
agora que zerou,
creu?

Ele que sabia que a vida é coisa
de sempre não.
Sem fórmulas fáceis,
nem saídas para a dor
de cabeça
de pensar
de ser sem crer.

Ele que sabia que não há aspirina
contra o bolor.

Logo dirão que se inspirou,
e compôs de improviso
um soneto vendido,
dos que sempre enfrentou.
Dirão ainda que se converteu
e defendeu a vida devota,
a pacificação bovina,
a prédica dos pastores.

(Verbo e verba:
pragas velhas.)

E que se arrependeu do pecado
de ser exato, claro e enjoado.

Vida, te escrevo merda.
Às vezes fezes, mas sempre merda.
Fingida flor, feliz cogumelo,
caga e mela.
Sempre severa e cega
merda.

Triste é depender
de relatos carolas,
acadêmicos, cartolas.

Triste é depender
da leitura alheia,
fáceis falácias: farsas.

Triste é depender
dos olhos dos outros,
de voz de falsas sereias.

Triste é não poder mais
se defender.

Mas
um aqui, João,
incerto, grita
e insiste em não crer
na sua crença repentina,
que a morte (sua) desminta a obra (sua) vida.

Um aqui, João,
o tem por certo:
é mais difícil o não
crer, não
ceder, não
descer, não
conceder. Não.

Não, não orou.

No livro Na lata – poesia reunida (1978-2013), de 2013, esse poema de Frederico Barbosa saiu na seção De ocasião. No Jornal de Poesia, na internet, há uma data, logo após o último verso: “10/10/99”. Tal data reforça a motivação do poema — a morte do escritor João Cabral de Melo Neto em 9 de outubro de 1999 —, dedicado “para JC”. Em diversas ocasiões, o autor de Auto do Frade declarou seu empedernido ateísmo. Ocorre que, aproximando-se a velhice, e com ela a cegueira, a solidão, a melancolia, o temor da morte, passou a circular um boato — entre amigos e leitores — de que o recifense Cabral teria se convertido e teria, então, começado a crer em algo além, transcendental, de nome Deus ou afim, e estaria inclusive rezando, e teria mesmo rezado em momento próximo ao fim. O também recifense Frederico não se conforma com tais boatos ou fatos, e o poema é a defesa de um modo de ser — modo de ser ateu — cabralino, que impregna sua obra de ponta a ponta.

Ao longo das quinze estrofes, o poema faz essa defesa. Seguindo uma própria posição, de que “poesia é a palavra-impacto”, Frederico Barbosa começa já com um verso isolado, bastante peremptório: “O pior é que dizem: rezou.”. Se pior é, numa comparação, algo “superior, por sua qualidade, caráter, valor, importância etc., a algo que é mau ou ruim”, e se o referente a que se compara é a informação anterior do título, Pior do que a morte, a contundência e o impacto do verso de abertura residem exatamente na afirmação de que, possivelmente (“Dizem”), ter rezado é algo bem grave, é algo pior do que a própria morte, e mais grave, gravíssimo mesmo é o fato (contestado) de ter sido exatamente ele, JC (cujas iniciais ironicamente coincidem com as de Jesus Cristo), o ateu João Cabral a pessoa “acusada” ou “denunciada” de tal gesto. E os leitores, os leitores cabralinos, como ficam nessa história? O poema é a sua resposta.

A segunda estrofe (“Ele que sempre foi contra,/ do contra, ateu,/ agora que zerou,/ creu?”) lembra o passado e a trajetória de Cabral, “sempre ateu”, e não se intimida em, via anagrama, comparar reza e morte, a partir dos termos “rezou” e “zerou”, e, de modo ambivalente e sarcástico, sugerir que sua hipotética “virada de time” seja algo inferior, anódino, baixo, se lemos no verbo “creu” (acreditou) também a popular onomatopeia “créu” (se deu mal, se estrepou). A terceira estância diz de uma poética de “sempre não”, de recusa a “fórmulas fáceis” (românticas, sedutoras, harmoniosas, catárticas), e de uma poética de “dor/ de cabeça/ de pensar”, em que se alude a sua famosa crônica dor de cabeça, similar à dor de pensar cada poema, cada verso, cada palavra, tendo como inimigos o senso comum e o estereótipo, que o poema sintetiza no vocábulo “bolor”, o qual nem mesmo monumentos à aspirina conseguem vencer, pois a mesmice e o previsível andam de mãos dadas na rotina de produzir o mofo.

A defesa do poeta recém-falecido pelo amigo poeta continua contra as fofocas anônimas ou apócrifas (“Logo dirão”), que incidirão (in)justamente sobre um dos alvos prediletos do poeta de Uma faca só lâmina: a romântica inspiração. Ademais, os mexericos hão de querer insinuar que o poeta do octossílabo, desde o nome, passou a improvisar, logo ele que elaborou uma “planta” arquitetônica de um livro (A educação pela pedra), no qual deveriam caber, e couberam, feito tijolos, versos e poemas. A difamação, a maledicência, a calúnia se estenderiam, espalhando que, diante da Indesejada, o poeta “defendeu a vida devota,/ a pacificação bovina,/ a prédica dos pastores”, sendo que devoção, rebanho e retórica religiosa jamais combinaram com o “homem sem alma” (José Castello), o feliz coguMelo, no chiste do poema.

É mais do que evidente a identificação ideológica e estética do autor do poema com seu conterrâneo. Daí deriva o inconformismo, e mesmo a revolta, na lata, contra os detratores de plantão, com o costumeiro “tom belicoso” (Manuel da Costa Pinto, em Antologia comentada da poesia brasileira do século 21) de quem não se incomoda de exercer a “Gentil arte de não gostar e fazer inimigos”. Na orelha de Na lata, Leyla Perrone-Moisés diz que a poesia de Frederico se baliza com os mestres, entre os quais Cabral, que se alinham na “rejeição do derramamento metafórico”.

Nas demais estrofes, há profusas citações, alusões, referências à obra do João, nome pelo qual Frederico chama o poeta, mostrando a intimidade que partilha ou deseja (além de ecoar o nome do conhecido e reconhecido pai — João Alexandre Barbosa). Os termos “fezes”, “flor”, “severa”, “vida”, “aspirina” se espalham pelo poema. Mais do que citações, importa a defesa de um modo de “ser sem crer” — e sem ceder (avesso a facilidades, a estrada com asfalto), sem descer (apelando a soluções de gosto duvidoso), sem conceder (fiel ao concreto e tátil flamenco, desconfiado das ilusões do volátil balé).

Cabral não concentra toda a atenção da poesia enciclopédica de Frederico. Para ficar em dois exemplos, lembrem-se os poemas Resenha, composto por cinco tercetos, sendo que cada terceto começa com uma letra que, à maneira de um acróstico, forma ao final a palavra ÁPORO, título de um dos mais densos poemas de Drummond. Outro recifense, Bandeira, ganha uma engenhosa homenagem no poema Vocação do Recife, que evoca seu famoso poema, atualizado nas figuras de Caneca, Clarice, Cabral, Uchoa Leite. Susanna Busato, no prefácio, fala de “vozes que emergem entre livros e autores” e, de fato, a poesia de Frederico Barbosa confirma um perfil de poeta comum há décadas, desde a fórmula lapidar de um verso de Ana Cristina Cesar: “agora eu sou profissional”.

Ivan Marques, ao final de sua recente e premiada biografia de Cabral, dedica alguns parágrafos à questão central do poema em pauta. Aqui, em face da importância do assunto, vale uma citação longa de João Cabral de Melo Neto — uma biografia (2021):

Às onze horas e trinta minutos de sábado, 9 de outubro de 1999, duas horas após o café da manhã, Marly de Oliveira o chamou [a JC] para rezar. Apesar de ateu, João Cabral nos últimos dois meses fazia orações diárias. (…) Durante o velório e o enterro, tanto as conversas como os discursos de despedida foram permeados por alusões ao inesperado contato de João Cabral com a religião nos seus últimos dias de vida. (…) Muitos amigos puseram em dúvida a versão da “morte cristã” de João Cabral. Não era segredo para ninguém que o poeta trazia desde muito tempo no pescoço, por baixo da camisa, a medalha de Nossa Senhora do Carmo, padroeira do Recife. Mas essa pequena superstição não bastava para que se desse crédito à hipótese de uma real conversão religiosa, experimentada no último minuto de vida. (…) Apesar de católico, e tendo discutido tantas vezes com o amigo a respeito de religião, Lêdo Ivo foi um dos amigos que viram com estranheza a informação dada por Marly. Lembrava-se de João lhe ter assegurado que, entre seus papéis de disposição testamentária, incluíra uma declaração enfática de seu materialismo e consequente postura antirreligiosa. Não acreditava na existência de Deus nem na imortalidade da alma. (…) Ateu, materialista, comunista — essa teria sido, desde a juventude, sua posição filosófica e moral, da qual não arredava um milímetro, repetia João ao amigo. (Grifos meus.)

Há versões e contradições, que a biografia expõe. No poema, não: nos seis curtíssimos versos derradeiros, sete vezes o advérbio “não” se impõe, categórico. O verso final responde ao primeiro (“O pior é que dizem: rezou”): “Não, não orou”, nos afirma, sem derramamentos, Frederico. Um complexo debate partiria desse ponto: em que medida a hipótese de uma “conversão” do poeta ateu ao fim da vida afetaria a sua obra? A quem, ou a que leitores interessa “comprovar” tal suposta conversão? De todo modo, aqui importa o provocativo poema Pior do que a morte, de Frederico Barbosa, e não a imensa obra de João Cabral, de imensa fortuna crítica (ver estudos incontornáveis de Antonio Carlos Secchin).

Para a revista Veja, em 1992, Cabral disse: “Deus é como a linha do horizonte sobre o mar. Essa linha, na verdade, não existe, mas, para os seus olhos, o mar acaba ali. Então, você começa a ir em direção a essa linha e ela, por sua vez, vai se afastando. Deus é isso”. Dizem, também, e tal dito está ao fim de Introdução a Machado de Assis (1947), de Barreto Filho, que em seu leito, próximo ao fim, teriam perguntado a Machado se podiam chamar um padre, e ele teria respondido: “Seria demasiada hipocrisia”. Machado não orou. Cabral, em toda sua obra, não orou. Não creu, não cedeu, não desceu, não concedeu.

Dois aqui, João, pensamos assim, e é certo que a maioria dos leitores de sua obra sabem disso. Se hipócrita, porém, raramente será leitor da “poesia crítica” de Cabral, de Frederico e de alguns raros dessa tribo que zera a reza.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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