Para ler um poema, use o Google translator, de Danielle Magalhães

No poema presente no recém-lançado "Vingar", a autora se vinga de certa poesia contemporânea descompromissada do social e indiferente ao leitor
Danielle Magalhães, autora de “Vingar”
01/11/2021

nunca tive muita paciência
para ler versos em língua estrangeira
não traduzidos para o português
afinal sou brasileira e falar português
já é estar um tanto exilada no mundo
sou poeta e doutora e me sinto exilada
a cada vez que leio um verso não traduzido
sou brasileira poeta e doutora e não sei
falar francês alemão grego ou inglês
sou poeta e doutora enquanto
brasileira
não me sinto nem um pouco constrangida
por não saber francês alemão grego ou inglês
então apenas não leio
porque usar o google translator
como ferramenta indispensável
para ler um poema
é até viável mas
prefiro não
prefiro a generosidade
da tradução
que poderia vir em uma nota de rodapé
mas os poetas preferem não
então eu não leio não
pulo a linha
e continuo no verso mais próximo
que fala a minha língua
e antes que me acusem
de anti-intelectual
ou xenófoba
eu advirto que não
não sou contra os idiomas
não sou contra a erudição
não sou contra estrangeiros
não sou contra as línguas
todas faladas no poema
sou apenas sua leitora
brasileira
que gostaria de ler
o seu poema
sou apenas uma brasileira
que gostaria de ler
todas essas línguas
com a sua ajuda
para não me sentir tão
distante
de você
e do restante
do mundo

Esse poema de Danielle Magalhães se encontra em seu recentíssimo livro Vingar (2021). Ainda está para ser elaborada, salvo engano, uma “história literária da vingança”. Nessa história, o drama Gota d’água, de Chico Buarque e Paulo Pontes, que aparece como epígrafe no livro de Danielle, há de ganhar destaque. De imediato, vem também à tona o final do célebre conto Pai contra mãe, de Machado de Assis: a escrava Arminda — aprisionada por Cândido Neves, em busca de recompensa financeira para salvar o próprio filho da Roda dos Enjeitados — aborta, e o comentário do caçador de escravos e escravas arremata a tragédia: “Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração”. O filho (preto) do mais desvalido morre, não vinga, para que o outro desvalido (branco) sobreviva. Na pena de Machado, a ambivalência se junta à cruel ironia, quando nos damos conta de que o verbo “vingar” aqui é usado no sentido de “resistir vivo”, como se diz, por exemplo, de um ovo. (Não à toa, ao nome Neves, de Cândido, se conecta o também alvo nome da mãe Clara: ovo, clara, neve — eis o “vingar”, resistir, intransitivo; parente, mas distinto, do reflexivo “vingar-se” de alguém, castigá-lo.)

No livro de Danielle, desde o título, mais do que uma projetada vingança, o vingar(-se) é protagonista ativo, urgente, categórico. Tatiana Pequeno diz, na orelha, feito um tapa: “É preciso, desse modo, vingar a mãe, vingar as matriarcas, vingar as mulheres, vingar os esquecidos, vingar os matáveis, vingar os queimados, vingar aqueles que fomos golpeados na cabeça, nas vísceras, no coração”. Vingar Arminda, o filho de Arminda, o coração de Arminda e seu filho. Em sua tese de doutorado, Ir ao que queima: no verso, o amor, no verso, o horror — Ensaios sobre o verso e sobre alguma poesia brasileira contemporânea (UFRJ, 2020), Danielle desenvolve teoricamente esse conceito de vingar/vingança, a partir de análises de poemas da própria Tatiana Pequeno, de Bruna Mitrano e de Valeska Torres. Há — sinal de vitalidade e impacto da obra — uma crescente fortuna crítica acerca de Vingar e das violências ali expostas, desrecalcadas, denunciadas. Leiam-se os textos, consistentes e cúmplices, de Laura Navarro, Martha Alkimin e Simone Brantes, que oferecem densas e delicadas reflexões em torno de problemas éticos, existenciais, estéticos e filosóficos que atravessam o livro.

Aqui no poema, até se poderia dizer que também ocorre uma violência, pois há brutais e camufladas formas de manifestação da violência, desde aquela patrocinada pelo Estado (que deveria nos proteger) até os mais comezinhos casos do cotidiano (brigas de trânsito, de bar e de casal), passando por toda espécie de preconceito, bullying, racismo, homofobia, misoginia e pelas catástrofes da miséria, da desigualdade, da exclusão. Porque Para ler um poema diz de uma situação estranha e rara: uma “brasileira poeta e doutora” faz um poema para dizer, com indisfarçável ironia em tom de sinceridade, do bem que a tradução de um poema (ou de versos de um poema) possibilita, ao permitir que se amplie o acesso a seu teor. Noutras palavras, de dentro de um meio em que transitam poetas e doutores, e doutores em literatura, que lidam com língua e linguagem, a poeta doutora manda o papo reto, espanta: “nunca tive muita paciência/ para ler versos em língua estrangeira/ não traduzidos para o português/ afinal sou brasileira e falar português/ já é estar um tanto exilada no mundo/ sou poeta e doutora e me sinto exilada/ a cada vez que leio um verso não traduzido”. Nem o poema de Daniella nem este ensaio se postam como “anti-intelectuais ou xenófobos”, muito menos contra “os idiomas, a erudição, estrangeiros, as línguas”. Trata-se de querer algo que o poema ou verso não traduzido dificulta: afeto, proximidade, pertencimento, solidariedade, comunhão, troca, generosidade, carinho, transparência, interesse pelo outro. Sentimentos e valores, ademais, raros — sobretudo em tempos tão tristes e estúpidos como os que testemunhamos.

Já o primeiro poema, Quando o céu cair, de seu primeiro livro, Quando o céu cair (2018), ambos — homônimos — belíssimos, traz, sob a veste de turista aprendiz e militante, questão similar. Na cena, a poeta se encontra numa praça da parte ocidental da Alemanha “onde havia muitas mulheres sírias”. Em certo momento, “uma das mulheres percebeu talvez/ ela não é alemã e veio/ falar comigo em inglês/ perguntando se eu sabia falar/ inglês eu disse mais ou menos/ o que na verdade/ foi resposta nenhuma/ então ela pegou um papelzinho e começou a ler/ a mesma pergunta/ em várias línguas/ que eu nem sabia/ que existiam/ sempre a mesma/ pergunta (…)”. Em Quando o céu cair, a dificuldade de comunicação — de tradução! — entre as mulheres do Brasil e da Síria antecipa, por estratégia metonímica, o gravíssimo problema da migração: “os imigrantes estão morrendo/ entre a ásia e a europa/ os imigrantes entre/ a áfrica e a europa imigrantes/ entre a américa e/ a américa (…)”. Se a poeta pudesse entender a pergunta em alguma das “várias línguas”, quem sabe o problema daquela mulher síria fosse atenuado, mas não o problema das muitas mulheres sírias nem dos imigrantes do mundo. Se houvesse a tradução, outro acontecimento se faria, e se faria diferente a cena da praça e do poema. Entender para transformar.

Imaginemos, com licença lúdico-poética, que aquela moça síria tivesse lançado mão do Google translator, para entender os cinco versos iniciais do poema de Danielle: “lam yakun ladaya alkathir min alsabr/ liqira’at alayat bilughat ’ajnabia/ lam tutarjim ’iilaa alburtughalia/ baed kuli shay’ ’ana baraziliun wa’atahadath alburtughalia/ yatimu bialfiel nafyuhum ’iilaa hadin ma fi alealam”. Com um toque, o Translator oferece ao estranho estrangeiro o paraíso artificial do sentido e pacifica a vontade do leitor de iludir-se quanto ao que diz a fulana ou beltrana na misteriosa língua. O mundo, contudo, não se deixa traduzir assim de modo tão confortável. O verso não traduzido, ou abduzido pelo Translator, não vinga.

Por isso a brasileira, doutora e poeta prefere não, lembrando o Bartleby de Melville. Melhor não. Melhor que o próprio poema se dê pleno, que o verso em francês alemão grego ou inglês se desvele em português. Não importa, repita-se, que venha em rodapé a versão do verso. O que a leitora não quer é entrar no jogo do constrangimento de ter que saber ou não saber tal ou qual língua, ou entrar no jogo de ter que fingir que sabe qual ou tal língua, ou entrar no jogo de ter que recorrer à imediata máquina-de-traduzir. Ler um poema é como dançar — com leveza, sem assédio.

O poema Para ler um poema, use o Google translator destoa, até certo ponto, da pegada explícita e radicalmente política, engajada, feminista, combativa, vingante do livro em geral, livro que, em versos, revira a história contemporânea, sem receio ou pudor de hipócritas tabus, e para tanto encara de frente o inimigo-mor de qualquer poeta (para não dizer de qualquer pessoa): o estereótipo. O estereótipo é o fácil, o falso, o cômodo, a aparência, o viável — o Google Translator. O estereótipo é sentir-se constrangido “por não saber francês alemão grego ou inglês”. O estereótipo é evitar o conflito, disfarçar a postura, fingir que sabe. Se não tem a tradução, “que poderia vir em uma nota de rodapé”, e não se quer o recurso a um tradutor instantâneo (hostil a sutilezas), a leitora prefere — sobretudo: diz, assume, torna público, sem subterfúgios ou poeira sob o tapete — pular a linha, ir à língua. É da língua que se alimenta o monstro do estereótipo. Por isso a poeta, ladina, desconfia do tradutor automático. Por isso a leitora, exilada, deseja a generosidade da tradução. Por isso a doutora brasileira, sem xenofobia, com tese em poesia, sabe a língua que lusa.

Destoa, mas nem tanto, porque em Para ler um poema, use o Google translator Danielle também se vinga, tomando o expediente do verso/poema não traduzido, se vinga de certa poesia contemporânea descompromissada do social, indiferente ao leitor, mais preocupada com o próprio umbigo e com malabarismos verbais, com lascas de arrogância, de que resultam em geral melodramas herméticos numa redoma de efeitos. O uso de tal expediente, por si só, obviamente não faz do poema um vilão, nem do poeta um cancelado. Não se trata de patrulha, lugar-comum de um limite estreito. Mas, para um livro forte, à flor da pele, feito Vingar, coração e razão na ponta da lança, qualquer palavra conta. Qualquer vacilo contra (contra o verso, contra o “restante do mundo”), pode ser a gota d’água. Para ler Vingar, não use artifício, use arte físsil: não é preciso nem pular linha, pois, sem enganosa candura, todos os versos vingam.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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