São os travestis do Hilton,
são tão alegres rapazes!
Ah, confessa! Alguma vez
já correste de salto alto?
Podes rir, em ti não dói.
Sabes lá o que é ser dois?
Quem faz a barba de manhã:
Joãozinho ou Vivian?
Quem vai ao enterro da mãe?
Podes rir, não te faz rugas…
Quem é que empreende a fuga
guardando a dignidade?
De quem é a identidade,
quem apanha dos milicos
e quem paga o silicone?
Quem atende o telefone?
E quem tem os faniquitos?
É aquela esquizofrenia.
Quem se autodefiniria
antes que um outro o defina?
São tão bonitas meninas!
Sim: podemos ser felizes.
Ou: não façamos o gueto.
Queremos ser objeto?
Onde estão nossas raízes?
Que o cílio não se desfaça,
que o dente não apareça,
que a barba espessa não cresça!
Há mil porradas na praça,
há mil gringos de avidez.
Quem sou eu? Quem são vocês?
Somos travestis do Hilton,
tão alegres contumazes,
tão loucos e tão felizes
(ou quase).
No site do Memorial poético dos anos de chumbo (mpac.ufes.br), esse poema ganhou o seguinte comentário: “Publicado em Lampião da Esquina, em 1979, jornal que abria espaço a questões ligadas à homossexualidade de maneira literária ou jornalística, o poema Os travestis do Hilton, de Renata Pallotini, explicitamente descreve as adversidades sofridas por travestis durante o regime de opressão instaurado no Brasil com a ditadura militar, como a violência dos agentes de controle da moral e bons costumes impetrado pela ditadura, ao afirmar, em seus versos, que elas apanhavam dos milicos”. O pesquisador Cleidson Frisso, autor da nota, resgatou do célebre jornal muitos poemas que entrecruzam uma luta no campo de sexualidades não-heteronormativas e uma luta no campo da resistência contra o autoritarismo.
Posteriormente, o poema foi republicado em Cantar meu povo, de 1980. No jornal, veio a lume em apenas uma estrofe; no livro de Renata, um ano depois, reapareceu com cinco estrofes, que funcionam como cortes visuais e semânticos. À exceção do último verso, “(ou quase)”, um dissílabo, todos os demais são setissílabos ou variações, o que dá ao conjunto uma regularidade rítmica, reforçada pelos doze 12 (de 35) versos interrogativos. No comentário de Cleidson, chama a atenção o uso “politicamente correto” de a travesti, no feminino, diferentemente do poema que, desde o título, opta pelo masculino, o travesti (nessa época, o modo hegemônico). No próprio poema, essa hesitação se configura, ora com expressões do tipo “alegres rapazes”, ora “bonitas meninas”. A cena do travestimento — que seduz e incomoda — chega ao ápice nos versos 7 e 8: “Quem faz a barba de manhã:/ Joãozinho ou Vivian?”. O esquema rímico também varia, com efeitos sonoros surpreendentes: “dói/dois”, “manhã/Vivian/mãe”, “gueto/objetos”, “avidez/vocês”, “Hilton/felizes”. Importa, em síntese, perceber que o bem-humorado poema, a despeito dos dramas que testemunha, é solidário à sofrida vida daqueles que têm o corpo como instrumento de desejo (para o cliente) e de sobrevivência (para a travesti).
Em artigo bem esclarecedor, de 2016, Travestis paulistanas na mira da Polícia Civil: a prática da Contravenção Penal de Vadiagem (1976-1977), o historiador Rafael Freitas Ocanha comprova a perseguição a tais profissionais do movimentado mercado do sexo. Em um trecho, cita explicitamente a rede de hotéis que dá o mote ao poema de Pallottini: “Em 1976, uma equipe do delegado Guido Fonseca é designada para fazer um estudo de criminologia sobre as travestis e a contravenção penal de vadiagem. Por meio de uma portaria do 4º Distrito Policial, Guido estava autorizado a abordar todas as travestis das proximidades do Hotel Hilton, área da Boca do Luxo paulistana, para verificar sua comprovação de renda”. A abordagem resultou, como de praxe, em assédios, processos, prisões. O combate ao trabalho das travestis atendia a uma pauta conservadora de costumes que, hipócrita, então e hoje, quer determinar qual o comportamento certo e qual o errado, onde está o bem e onde o mal, incapaz de reconhecer a diferença, a alteridade, a multiplicidade do mundo e da cultura — e de que os corpos são uma face visível: LGBTQIAPN+ (Lésbicas, Gays, Bi, Trans, Queer, Intersexo, Assexuais, Pan, Não-binárias e mais).
O poema de Pallottini fala de um grupo sobre o qual há imensa curiosidade, há tabus e fetiches, deslumbres e preconceitos: as travestis. Aqui, as travestis que atuam próximo a um hotel cinco estrelas, ou seja, de clientes burgueses endinheirados (talvez, como é clássico, alguns que usem o serviço à noite, e de dia sejam cúmplices da perseguição; “cidadãos de bem”). Do início ao fim, a voz do poema se transforma e o verso de abertura — “são os travestis” — vira “somos travestis” na estrofe final, em gesto isomórfico de quem se transmuta para entender o outro. Ao longo, contudo, dessa paulatina metamorfose, o poema procura captar quem é esse sujeito: “Sabes lá o que é ser dois?”; “Joãozinho ou Vivian?”; “É aquela esquizofrenia”. Com leveza, diante das agruras de cada dia ou noite, o poema brinca com estereótipos, feito a vaidade (“Podes rir, não te faz rugas…”); com rotinas de perseguição dos homens da lei (“quem apanha dos milicos?”); com temores de aparência masculina (“que a barba espessa não cresça!”); com a violência incessante (“Há mil porradas na praça”).
No Brasil e no mundo, em momentos e lugares de civilidade, a perspectiva identitarista tem se ampliado bastante, com estudos em distintas áreas do saber e movimentos cada vez mais organizados. No entanto, na vida real, casos de transfobia ocorrem hodiernamente, com ofensas, linchamentos e assassinatos, casos com tácita aceitação dos homens cisgêneros, brancos. Na literatura, é bem rara a presença de personagens e de autores trans (ver, por exemplo, Representação de personagens transgêneras em narrativas literárias brasileiras: um problema de gênero, de Emerson Silvestre). Na política, também essa presença é bem rara. Curiosamente, a primeira travesti e preta eleita para deputada federal em São Paulo (pelo PSOL), com longa história de militância, se chama exatamente Erika Hilton, cujo sobrenome parece ser uma alusão à socialite Paris Hilton, bisneta do fundador da… Hilton Hotels.
Conforme depoimentos, a própria Erika já passou por experiências semelhantes às travestis do poema de Pallottini, publicado há mais de três décadas no jornal Lampião da Esquina, que teve 38 edições, entre 1978 e 1981, com tiragens de 10 a 15 mil exemplares em média, distribuídos pelo país (hoje acessíveis digitalmente). Em anos autoritários, regressivos, conservadores, lgbtfóbicos, violentos, manter um “jornal homossexual” é sem dúvida uma postura radicalmente política (como política foi, guardadas as diferenças, no show de Madonna em Copacabana, em maio de 2024, a exibição de imagens de Gilberto Gil, Mano Brown, Marina Silva, Paulo Freire e a combatente trans Erika Hilton, enquanto no palco as provocações e homenagens continuavam com Anitta e Pabllo Vittar).
Renata Pallottini faleceu em 2021. Seu nome tem sido lembrado sobretudo pelo trabalho na área de teatro, como professora, dramaturga, tradutora, ensaísta. Formou-se em Filosofia e Direito. Lésbica, sua peça A lâmpada (1960) já girava em torno do tema da homossexualidade. Traduziu Hair. Engajou-se na luta contra a ditadura (teve peças censuradas). Corinthiana, ao time dedicou alguns poemas. Além de peças, escreveu poesia, romance, literatura infantojuvenil, estudos teóricos, fez muitas traduções, trabalhou na TV. Eclética, recebeu prêmios, exerceu importantes cargos de gestora, viajou bastante. Fruto de uma viagem pela América do Sul, Coração americano, de 1976, é seu livro mais politizado. Dele, é o corajoso Vivadeus (segue trecho):
Deus é morto. Viva Deus.
Sangre Deus; que Deus se desfaça;
que ele renasça, se pode,
que Deus surja de onde se esconde.
Que ele estoure da História,
ou da Igreja, se ali esteja.
De Marx, se ali ele jaz,
de Freud, se é que pode.
(…)
Deus é morto. Adeus. A vinda
nova de Deus é saudada,
a vinda de Deus será linda
com a lindeza da Liberdade,
a contralindeza da saudade,
a antilindeza da nostalgia,
a safadeza da alegria;
e todos os adeuses a todos os deuses
da tortura e da tirania.
No ótimo artigo Renata Pallottini: uma poética em luta contra espaços asfixiantes (2000), Kátia Bezerra percorre a obra da poeta, destacando a opressão que as mulheres sofrem, tendo de superar muitos obstáculos para realizarem seus desejos: “Depara-se com um sujeito consciente da importância de lutar contra papéis e valores tradicionais e modernos que têm cerceado o seu caminhar, um ser fragmentado por um sentimento de repulsa e atração pelos modelos veiculados por um discurso dominante, um ser que se solidariza com seu povo pelo vínculo de opressão que os une, celebrando, ao mesmo tempo, a força que o(s) faz sobreviver a todas as vicissitudes e que, no entanto, ainda enredado pelo temor em vivenciar sua sexualidade de forma plena, sofre”. É essa solidariedade que testemunhamos em Os travestis do Hilton.
O poema não esconde nem romantiza o drama das travestis que “faziam ponto” no Hilton (ou em qualquer outro lugar): há que correr, há fugas, surras, porradas. Mas também há o riso, a alegria, a felicidade. Para ser travesti do Hilton, há que ser intenso, faceiro, obstinado: “tão alegres contumazes”; há que ser intenso, excessivo e venturoso: “tão loucos e tão felizes”. Contudo, a vida é real e de viés, é sempre “quase”, e é exatamente esse clima instável, de incompletude, de corda bamba, do céu ao inferno (“já correste de salto alto?”), que faz com que o poema não se encerre de modo exemplar, edificante, com um adocicado happy end. Quando a vida é quase significa que não é plena, não é toda. O advérbio “quase”, além de rimar com “contumazes”, finaliza o poema, deixando-o em aberto. A poeta mulher, em mundo de machos (milicos que batem, gringos exploradores), se solidariza com os travestis, com as travestis. Para tanto, outrora ou agora, carece de ter coragem, muita coragem, diria Diadorim, travesti do sertão.