Um urubu que, jururu,
avoa com outro urubu
diz-lhe: “Compadre, quede um rango
mais suculento que calango?”.
O outro urubu diz ao primeiro:
“Há poucas horas, companheiro,
eu vi um pessoal que, na caatinga
perto daqui, morreu à míngua
após comer tudo o que segue:
uma asa branca e o próprio jegue
além de uma cadela feia
que eles chamavam de Baleia.
Do que terão morrido (como
diria em seu famoso tomo
que também trata de uns sem-teto
o João Cabral de Melo Neto),
quer de emboscada, fome, doença,
não faço ideia, não — paciência!
O charque ali será polpudo
se os vermes já não roeram tudo”.
Mas, por incrível que pareça,
se os urubus chegam depressa,
vivos que estão, os retirantes
comem os dois urubus antes.
Um dos maiores problemas mundiais é a fome. Embora estudos indiquem existirem condições técnicas para a erradicação total da fome, o fato é que inexistem condições políticas para tanto. O poema Os dois urubus, de Nelson Ascher, vai abordar o tema com humor a um tempo leve e corrosivo. Os versos se encontram em Parte alguma (2005), finalista do prestigioso Prêmio Portugal Telecom (hoje, Oceanos).
O poema de Ascher traz uma narrativa, assemelhada a uma triste e cômica fábula (sem moral edificante), de dois urubus, animais carniceiros, que conversam à cata e caça de “um rango/ mais suculento que calango”. Supondo mortas umas pessoas “na caatinga”, planejam ir lá locupletarem-se dos despojos, antes dos vermes. Nesse momento, o “narrador” retorna e alerta que é possível os próprios urubus serem devorados pelos retirantes sobreviventes.
As seis quadras do poema, com estrutura rímica fixa em AABB e versos octossílabos, apesar do tema trágico da fome, produzem um incontido efeito humorístico, desde o começo, com a insólita cena e com os coloquiais termos “urubu”, “jururu”, “compadre”, “quede”, “rango”, “calango”. A situação geral é, naturalmente porque fictícia, hilária: urubus com fome pretendem comer humanos que, com fome, poderão comer os urubus, que não são considerados alimentos (prazerosos, possíveis, imaginados). Outro impulso para o riso é a inserção de referências literárias no poema: segundo um dos urubus, o pessoal da caatinga, antes de morrer, comeu “uma asa branca e o próprio jegue/ além de uma cadela feia/ que eles chamavam de Baleia”, o que remete o leitor antenado ao romance Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos. Aqui, de fato, a família — sempre por causa da fome — devora o papagaio, todavia não come a cachorra Baleia (que é morta, porque estava doente, por Fabiano) e nem há alusão a jegue algum.
Na fala do urubu, ávido leitor, os tais retirantes poderiam ter morrido “quer de emboscada, fome, doença”, praticamente citando trecho inicial de Morte e vida severina (1955), de João Cabral de Melo Neto, quando o protagonista e retirante Severino diz que, lá, a morte se impõe como figura ubíqua: “morremos de morte igual,/ mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia”. Seja no nordeste severino de Cabral, ou no nordeste seco de Graciliano, seja em tempos recentes, em que ainda se morre “de fome um pouco por dia”, percebe-se a permanência dessa catástrofe que atinge a milhões de pessoas, sobretudo em populações que sobrevivem na extrema miséria, na África, em conglomerados urbanos ou onde quer que seja.
O tom tragicômico do poema se mostra, desde sempre, no embate entre bichos e pessoas, pois parece haver uma disputa mórbida entre retirantes e urubus. Tal situação degradante lembra o clássico O bicho, de Manuel Bandeira, em Belo belo (1948). Ou ainda o impactante Quarto de despejo (1960), de Carolina Maria de Jesus, diário em que a fome é a grande protagonista: “é preciso conhecer a fome para saber descrevê-la […] e assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual — a fome”. Entre urubus, calangos, papagaios, jegues, cadelas e vermes, os retirantes vão sobrevivendo.
De certo modo, a despeito de explicitamente citar Cabral e Graciliano, este poema de Nelson Ascher destoa do conjunto não só de Parte alguma, como de sua relativamente curta mas elaboradíssima obra poética, interessada em intrincados engenhos metalinguísticos e em torneios sobre poéticas e autores pelos quais o poeta paulista tem estima. Em Sonho da razão (1993), por exemplo, desde o título que lembra o famoso quadro de fim dos Setecentos do espanhol Francisco de Goya, desfilam poemas que têm por título mallarmé, haroldo de campos, décio pignatari, sá-carneiro, augusto de campos, leminski e maiakóvski. O poema joão cabral de melo neto é modelar:
Asperamente, na acepção
exata não de ainda úmida
pedra, mas de verso sem metro
fácil nem rima de costume,
João fala concreto armado
até os dentes cuja acústica
fere o ouvido não como lâmina
de faca, mas palavra justa,
num ritmo todo arestas onde
sopesa a flor durante a faina
para agarrar à unha o touro,
trazê-lo ao Recife, de Espanha,
pois, apto a despertar sentidos
dormentes, torná-los intensos,
raio X ele ensina aos cinco
e, ademais, à mudez, silêncio.
Duas das predileções formais do poeta pernambucano são incorporadas: o metro octossílabo e a rima toante. Ascher faz uma espécie de ensaio em versos, encena a “imitação da forma” (João Alexandre Barbosa). Aqui, o poema de Ascher (a) fala da aspereza da pedra e de sua lapidação; (b) dispensa o metro fácil e a harmonia sonora; (c) explora à exaustão o uso de enjambements; (d) aciona rupturas sintáticas, com elipses, hipérbatos e sínquises; (e) surpreende nas rimas: costume/úmida, acústica/justa, faina/Espanha; sentidos/cinco; (f) explicita a presença de Pernambuco e Espanha; (g) em suma, no “ritmo todo arestas”, Nelson cabraliza seu poema: realiza em joão cabral de melo neto o que João Cabral de Melo Neto realiza em sua obra. Tanto esmero ganhou de Antonio Candido, em carta na orelha do livro, curiosa síntese: “Eu diria que a sua é uma poesia por antífrase, que gera emoção no próprio ato de descartá-la, uma combinação sui generis de parnasianismo e concretismo. Um parnasianismo que signifique distanciamento e rigor formal, sem monumentalidade ou espírito de ornamento; um concretismo que recupera a integridade do discurso enquanto discurso”. Com a precisão de praxe, Candido ilumina para onde se dirige o holofote da poesia em pauta: para a própria linguagem poética. E mesmo o poema Os dois urubus, com alta voltagem política, não escapa ao desejo de pertencer à seleta tribo dos virtuoses.
Os virtuoses são raros e, não raro, incompreendidos. Ora são tomados como exemplos de erudita frieza, quando apenas emitem lances de amor pelo ofício; ora acusados de elitistas herméticos, sabem que “o hermetismo é o equívoco narcísico do discurso” (Marília Rothier Cardoso). Cerebrais, calculistas, com apreço pela tradição, os virtuoses querem preservar e elevar o que entendem por “altas literaturas”, evitando a vala da diluição e dos estereótipos. Querem dar a ver a “mímesis da produção” (Luiz Costa Lima). No soneto (forma em que Ascher rivaliza com Paulo Henriques Britto e Antonio Carlos Secchin, dois mestres no ofício) Defesa e ilustração, ainda de O sonho da razão, lemos:
Para que um texto quase
doentiamente ilustre
a sua própria indústria,
compete, frase a frase,
ao estro que extravase
de fleuma quando, ao ultra-
passar tudo que o nutra,
demonstra até a náusea
o quanto de rascunho
se arrisca, além da acídia,
no ofício que, importuno,
prevê menos saída
que a síndrome da imuno-
deficiência adquirida
Em hexassílabos, as rimas raras espantam: quase/frase/extravase/náusea; ilustre/indústria/ultra-/nutra/rascunho/importuno/imuno-; acídia/saída/adquirida. Nas palavras de Ezra Pound, “uma rima não precisa ser curiosa ou estranha mas, quando for usada, deve ser bem usada”. Ascher sabe e usa. O poema toca numa questão pública a partir da década de 1980: a aids, comparando — para prurido dos puristas — o ato de construir um texto (a sua própria indústria) e a “cura” (saída) da dita doença. A incorporação de termos médicos — defesa, doentiamente, fleuma, nutra, náusea, acídia, “sida’” — dá a devida gravidade da situação. Sem qualquer tom de piedade ou panfletarismo, olhar exótico ou religioso, o poema pensa a condição dos portadores do vírus HIV e, ousado, efetua uma comparação inusual entre o aidético e o poeta.
Para entender o lugar singular de Os dois urubus é relevante ter no horizonte o estilo, a pegada, os interesses nucleares de Ascher em seus livros. Na terceira estrofe, um urubu diz ao outro que o “pessoal da caatinga” comeu tudo o que foi possível, inclusive “uma asa branca”. Ora, além da alusão a Graciliano (via Baleia de Vidas secas) e a Cabral (via “uns sem-teto” de Morte e vida severina), há aqui uma alusão ao célebre baião Asa-branca (1947) de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, que fala exatamente de seca, fome, miséria: “Que braseiro, que fornalha/ Nem um pé de plantação/ Por falta d’água perdi meu gado/ Morreu de sede meu alazão”. A grande diferença é que, nos versos de Nelson Ascher, mesmo os poemas mais contundentes não se dissociam de um tom amargo, irônico, melancólico, tom que mais se intensifica com a presença de um humor sem culpa e mesmo cruel, como ele faz tantas vezes: vejam-se de Parte alguma os brilhantes São Paulo (um vômito pútrido) e Fumaça, em que o fumante tem plena consciência de seu hábito autodestrutivo.
Talvez, para o virtuose, o mundo não passe de linguagem (embora no mundo virtual das redes sociais o poeta exponha opiniões políticas bastante polêmicas). Por isso mesmo, com o mesmo humor com que carrega poemas delicados como Os dois urubus, não haja temor nem pudor em dizer: “Aqui jaz Nelson Ascher consumido/ pelo amor-próprio não correspondido”. Os dois decassílabos dizem da autoironia que simula sucumbir ao não reconhecimento da imodéstia. Nessa festa da linguagem, o poeta e o tradutor ainda aguardam a chegada de mais e mais leitores e críticos dispostos e aptos a nela se banquetearem.