para Mário de Andrade
Eu insulto aquele que se acha burguês, o burguês pobre,
o burguês capataz!
A indigestão imperfeita de São Paulo!
O homem-tucano, o homem-bolsonaro!
O homem sendo mineiro, nordestino, português, chileno
se acha sempre da fina estirpe lacoste nas costas
Eu insulto as pseudoaristocracias burras do facebook!
Os Manés, Joões, os trouxas, os broxas
que aguentam os quinhões nas costas
e arrotam felicidade capitalista parcelada
e são felizes porque têm um bom emprego
e são cidadãos ditos responsáveis
Eu insulto o burguês capitão do mato
que acha fazer parte dos exclusivos, dos privilegiados
Fora o intelectual do twitter! Aquele que prega pela educação,
mas nunca estudou!
“— Comunista! Socialista! Vagabundos!”
Morte à hipocrisia!
Morte à estupidez!
Morte ao bom-mocismo machista!
Morte ao burguês de discurso da meritocracia!
ao burguês do conjunto residencial popular!
“— Ai, filha, bandido bom é bandido morto!”
“— Somos neoliberais, mas e a nossa aposentadoria?”
Oh! Classe média achatada!
Oh! Racismo reverso!
Ódio ao discurso do vitimismo negro!
Ódio à falácia da ditadura gay!
Ódio aos que pregam que corrupção é a dos outros
Ódio a gente de bem! Ódio à moral e aos bons costumes!
Ódio aos maconheiros que amam a polícia!
Ódio e insulto! Ódio e rancor! Ódio e mais Ódio!
Morte ao burguês de carnê!
Cheirando a lavanda de igreja cujo dinheiro é Deus!
Ódio vermelho! Ódio comunal! Ódio social!
Ódio fundamental e sem perdão!
Fora! Fora ao mimi do burguês otário!
O conhecidíssimo poema Ode ao burguês, de Mário de Andrade, foi lido, sob vaias, na Semana de Arte Moderna de 1922, mesmo ano em que foi publicado na obra Pauliceia desvairada. (Sobre o poema, o autor, a Semana e a obra há inúmeros estudos.) Em 2020, quase cem anos depois, o também paulista Fabiano Fernandes Garcez dá a lume este Ode ao que se acha burguês, em Badaladas de uma preliminar, que reúne livros antigos e poemas inéditos. A dedicatória ao criador de Macunaíma reafirma o vínculo inextricável entre os dois poemas. O poema de Fabiano mantém o tom aguerrido, colérico, apaixonado, vibrante, iconoclasta dos versos de Mário, mantendo inclusive a estrutura estrófica, a sintaxe e o ritmo de vários versos, e muitos vocábulos nucleares (insulto, burguês, morte, ódio). Diferem, contudo, desde o título: Mário ataca ferozmente, em 1922, o burguês; em 2020, Fabiano detona aquele que “se acha burguês”, um falso burguês ou, de modo mais preciso, um alienado conservador. Convergentes nos ataques ao inimigo de mesmo nome, há contudo radicais discrepâncias entre as duas odes.
A começar das décadas que distanciam uma da outra e, assim, do contexto histórico distinto. Em 2020, o Brasil adernava, em meio a um governo autoritário, persecutório, negacionista, avesso à cultura e à arte, que incitava a violência às diferenças; não bastasse, sobrevivíamos a uma pandemia de covid para a qual, então, não havia ainda saída, cura, vacina, e o tal governo agia como um segundo vírus. Por isso, enquanto Mário insulta, com imagens metafóricas, “O homem-curva! O homem-nádegas!”, Fabiano vai direto ao ponto, nomeando sem papas na língua “O homem-tucano, o homem-bolsonaro!”, explicitando já o perfil de quem se acha burguês, mas é “pobre” (verso 1), destituído pois de grandes bens materiais; é “capataz” (verso 2), ou seja, um preposto do patrão (este, sim, um burguês verdadeiro); é “tucano” (verso 4), pássaro que simboliza um partido, que governou São Paulo por muitos anos; é “Bolsonaro”, com isso dizendo que esse falso burguês se identifica com quem, durante os vários mandatos que teve, inclusive na presidência, jamais realizou ações tendo no horizonte a diminuição das desigualdades econômicas, que distinguem o privilegiado que detém o domínio dos meios de produção daquele que, assalariado, vive do trabalho, incessantemente explorado.
Na segunda estrofe, Mário xinga as “aristocracias cautelosas” e Fabiano as “pseudoaristocracias burras do facebook”, em corajosa investida contra certos guetos das redes sociais, gesto que repetirá na terceira estrofe, quando manda: “fora o intelectual do twitter”. Mário ataca barões, condes e duques, todos decadentes, e Fabiano “Os Manés, Joões, os trouxas, os broxas”, parte do povão que se acha — se iludindo — nobre, esperto, poderoso, “inbroxável” (como declarou-se, sem pudor, o dito “Mito”, para seu cercadinho de machões). No entanto, falsos burgueses que são, “arrotam felicidade capitalista parcelada”; como se dirá na penúltima estrofe, são “burguês de carnê” (a prestação em si, apesar de ser mais uma forma de exploração, não configura um problema, mas, para o que se acha burguês, vale a aparência: no caso, parecer que não depende de “parcelar a felicidade”). Fabiano arremata a estrofe citando o entediado sujeito da canção Ouro de tolo de Raul Seixas, e a expressão do título corrobora a ilusão do que se acha burguês sem sê-lo (tal qual outrora falsos alquimistas prometiam ouro a tolos “trouxas”).
O poema de Mário, no verso 3 da terceira estrofe, elabora um dos mais belos versos da língua portuguesa: “Fora os que algarismam os amanhãs!”, ou seja, fora/fu aqueles que tentam planejar, calcular até o futuro, cercando o porvir com impossível exatidão — atitude nada poética. O verso, ao contrário, exubera em som e sentido: o neológico verbo — “algarismam” — parece não rimar com o advérbio tornado substantivo plural, mas a força da nasalização se impõe: “…mam / amanhãs”. Lição de intensidade que Fabiano transforma, nessa estrofe em pauta, no contundente verso: “‘— Comunista! Socialista! Vagabundos!’”, zombando do estulto estereótipo que burgueses da direita costumam, feito papagaios, repetir, ignorantes, de um lado, do que seja comunismo e socialismo e, de outro, ofensivos (como de praxe) à massa trabalhadora.
Tanto o poema-matriz de Mário de Andrade quanto o poema-paródia de Fabiano Garcez engenham mil imagens. Aqui, em prol de um gesto comparativo, selecionamos algumas poucas. Na quarta estrofe, por exemplo, sobressai o grito anafórico “Morte!”. Mário põe na voz de algum burguês em ruína o desejo de dar à filha “Um colar… — Conto e quinhentos!!!” para se manter a capa de nobreza; Fabiano reitera a estultice anterior dessa turma decadente e estampa outra frase papagaiada à exaustão: “Ai, filha, bandido bom é bandido morto!”, a que se segue a frase: “— Somos neoliberais, mas e a nossa aposentadoria?”, ou seja, para os direitistas de mercado o Estado deve ser “mínimo” — e daí se multiplica um rosário de reclamações contra a Previdência, mas deve suprir a “aposentadoria” de todos. Não faltam contradições (para usar um eufemismo) no pensamento (para usar uma hipérbole) desses anacrônicos falsos burgueses.
A quinta estrofe do modernista possui 11 versos, dos quais 4 começados com “Ódio!” (36%); no poema contemporâneo, há apenas 7 versos, mas 5 deles se iniciam com “Ódio!” (71%). O percentual indica a veemência que se apossa do poema recente, provavelmente apontando a necessidade de uma resistência rigorosa e ativa contra tais forças regressivas: racismo, homofobia, corrupção, hipocrisia. O ódio dos poetas se estende à sexta e penúltima estrofe, e nos 5 versos de ambos o “Ódio!” comparece 8 vezes. E em ambos se denuncia o farisaísmo, a falsidade desses pseudoburgueses que adoram se mascarar com vestes de religião: Mário afirma que vivem “cheirando religião e que não creem em Deus!”, e Fabiano ecoa, décadas depois, que vivem “cheirando a lavanda de igreja cujo dinheiro é Deus!”. Não é à toa que, em tempos atuais, a bancada BBB tem se destacado em nosso Congresso, com suas pautas extremamente conservadoras, excludentes, violentas: armas, latifúndio e religião; bala, boi e bíblia juntos.
O monóstico que encerra Ode ao burguês de Mário diz: “Fora! Fu! Fora o bom burguês!…”, em que o “bom” não esconde a ironia da expressão, em poema que faz da ode ódio. O monóstico de Fabiano — “Fora! Fora ao mimi do burguês otário!” — confirma o aumento do sarrafo, em que o “bom” vira “otário”: embora controversa, a engraçada etimologia do adjetivo diz provir de focas (Otaria byronia) de baixa inteligência; no popular, e em termos sincrônicos, diz-se de alguém que se deixa enganar facilmente, o que se casa inteiramente com o caso em foco. Theodor Adorno poderia confirmar o sentimento dos poetas, quando diz, em Teoria estética (1970): “O caráter burguês tende profundamente a ater-se à mediocridade, em detrimento de uma melhor compreensão”. Decerto, o conceito de burguês se modificou profundamente desde Marx (modificações que não cabem explorar aqui; ver o longo verbete Burguesia, no Dicionário de Política, de Norberto Bobbio et alii). Hoje, o termo burguês, em boa parte das vezes, é usado para aquele que leva uma vida material efetivamente confortável, o que pode se vincular àquele que detém meios de produção e que acumulou riquezas (nada similar a esse “que se acha burguês” do poema de Fabiano Garcez: pobre, burro, hipócrita, machista, meritocrata, racista, homofóbico, corrupto, fariseu: otário).
O autor de Ode ao que se acha burguês milita há tempos na poesia e na educação. Professor, organiza saraus, faz doutorado na Unifesp. Na sua dissertação Sob o olhar da crítica: a poesia brasileira no século XXI — vínculos e rupturas com o Modernismo de 1922 (2022), a epígrafe pertence a Mário de Andrade: “O passado é lição para se meditar, não para reproduzir”. Sua paródia à Ode de Mário realiza essa lição, como faz também em tantos outros poemas, como Ditadura, Senso de justiça e Queria que meu poema. Neste, lemos os versos: queria “que o meu poema/ frequentasse os subterrâneos/ alertasse os subalternos/ desmoronasse as igrejas/ esquartejasse os coronéis/ aqueles que se julgam fiéis”. A poesia de Fabiano Garcez é uma meditação sobre o nosso tempo. Diferente de grande parte da poesia recente mais badalada, e evidentemente diverso desses que se julgam burgueses, não quer parecer o que não é. Quer o que pode — e sua Ode mostra que quer muito.