O urubu, de Adelaide Ivánova

O poema da pernambucana pertence a um conjunto de dramas que, sim, têm nome e história, são de cada um, de cada corpo, de cada pessoa
Adelaide Ivánova, fotógrafa, poeta, escritora e tradutora brasileira
01/05/2021

corpo de delito é
a expressão usada
para os casos de
infração em que há
no local marcas do evento
infracional
fazendo do corpo
um lugar e de delito
um adjetivo o exame
consiste em ver e ser
visto (festas também
consistem disso)

deitada numa maca com
quatro médicos ao meu redor
conversando ao mesmo tempo
sobre mucosas a greve
a falta de copos descartáveis
e decidindo diante de minhas pernas
abertas se depois do
expediente iam todos pro bar
o doutor do instituto
de medicina legal escreveu seu laudo
sem olhar pra minha cara
e falando no celular

eu e o doutor temos um corpo
e pelo menos outra coisa em comum:
adoramos telefonar e ir pro bar
o doutor é uma pessoa
lida com mortos e mulheres vivas
(que ele chama de peças)
com coisas.

No recentíssimo As 29 poetas hoje (2021), com organização e prefácio de Heloisa Buarque de Hollanda, o poema de abertura é este o urubu, da recifense Adelaide Ivánova, do livro O martelo (2017), que ganhou o prestigiado Prêmio Rio de Literatura 2018 — na ficção, o contemplado foi Silviano Santiago, com o soberbo romance Machado. No livro de Adelaide, o urubu é o oitavo poema: antes dele, o bestiário reúne o elefante, o gato, a porca; depois, há o cachorro, a mula, e mais à frente a briga de galo e o bom animal. Todos esses e os demais são poemas avulsos, sim, autônomos, mas o livro pede uma leitura conjuntural, como se fosse um romance, uma história, uma vida que se conta. Talvez por isso o poema que abre a parte I se chame o martelo, mesmo título do livro e do poema que encerra a outra parte (II) de O martelo. Por vários poemas percorre a figura masculina de Humboldt, “o fantasma presente do começo ao fim do livro”, como diz Carol Almeida em seu preciso prefácio.       Os poemas se entrecruzam incessantemente, e alguns temas circulam, entre eles, o estupro — barbárie, vergonha que se perpetua dia a dia no Brasil e no mundo. (Aqui, aliás, o atual presidente, que defende torturadores, teve de pagar indenização a uma deputada por brutal ofensa relacionada a estupro. A deputada doou o dinheiro recebido para movimentos feministas.)

Urubus, como se sabe, vivem da morte alheia, da carne em putrefação. Na terceira estrofe, quando se diz: o doutor é uma pessoa/ lida com mortos, a analogia entre médico e urubu se fixa. No poema, a palavra estupro não se explicita, como a sinalizar a dificuldade que a vítima tem de “provar” a violência sofrida. Ao longo do livro, porém, a palavra retorna, feito um trauma, 12 vezes (estupro, estupra, estuprada, estupraria). Em o urubu, um poema desse livro-mosaico, a cena de um exame se desenha: corpo de delito, maca, médicos, mucosas, pernas abertas, laudo, tudo indicia que se trata de uma verificação para comprovação de um crime sexual, de um delito. A mulher “deitada na maca” e de “pernas abertas” relata — e o relato em tom descritivo espanta mais (produz mais efeito) do que se fosse elaborado em tom judicativo ou zombeteiro — o que se passa: enquanto a examinam, quatro médicos conversam sobre greve, copos descartáveis, se iam para o bar; um deles despacha o laudo e fala no celular, “sem olhar pra minha cara”.

“Sem olhar pra minha cara” é um verso-síntese do poema: os profissionais do IML, ecoando o comportamento do senso comum, já banalizaram de tal forma essas catástrofes do cotidiano, feito o estupro, que funcionam na base da superficialidade, da indiferença, da mecanização, da coisificação, daí as “mulheres vivas” e seus corpos ultrajados serem identificados a “peças” e “coisas”. Como bem indicou Gustavo Ribeiro, em Violáceo, vermelho-sangue: corpo e combate n’O martelo, de Adelaide Ivánova, no periódico Texto Poético, a força pregnante do corpo atravessa todo o livro, desde a capa:

A tinta vermelha que a recobre se desprende ao contato das mãos, sujando, contaminando qualquer um que toque o livro com a cor do sangue, implicando-o, assim, e de modo muito significativo, com a matéria tratada. (…) é a pele mesmo que começa a leitura, em prefiguração.

Desde o corpo, desde a pele, desde a capa, desde a cara, dizem o poema e a poeta: para se entender algo (um delito, uma infração, um estupro), é necessário olhar na cara, entregar-se, dar primazia àquilo a que se está dedicando atenção, não compactuar com o entorno que distrai (“copos descartáveis”, “celular”), que desvia (“greve”), que diverte (“festas”, “bar”), que leva ao fingimento, à acomodação, à cumplicidade pérfida. Até um urubu, diante da carne, olha na cara dela e a ela se entrega. Um doutor, que “é uma pessoa”, diante de uma paciente, deveria olhar para ela: olhá-la, fitá-la, mirá-la por/ admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado — guardá-la, como se diz no belo poema de Antonio Cicero. A dispersão dos médicos e do doutor se encena no aspecto disperso do corte dos versos e na ausência de pontuação, que produz trechos como um adjetivo o exame, sobre mucosas a greve, o doutor do instituto/ de medicina legal escreveu seu laudo.

No cenário da poesia brasileira contemporânea, Adelaide Ivánova tem sido um nome dos mais expressivos. Além de abrir a antologia de Heloisa Buarque (que, assim, reserva um lugar de destaque para o poema e para a poeta), um poema (a porca) de O martelo participa da também relevante antologia 50 poemas de revolta (2017), da poderosa Companhia das Letras. Antes, em 2016, em Blasfêmeas: mulheres de palavra, outros três poemas (a visita, a banana, o duplo) aparecem. A antologia Quando a delicadeza é uma afronta (2019), da revista Cult, com curadoria de Tarso de Melo, se abre com o contundente Metalinguagem, de Ivánova, em que explora sua experiência com a fotografia (registre-se que a Cult publicou duas outras excelentes antologias: Poemas para ler antes das notícias, de Alberto Pucheu, e Poemas para fazer o luto desse tempo, de Danielle Magalhães). Há, de fácil acesso na internet, um bom número de entrevistas de Adelaide, em que prevalece o “papo reto” e a nítida e consciente autoafirmação de feminista, socialista e comunista (ver Suplemento Pernambuco; revista Usina). E há uma emocionante performance de Adelaide Ivánova na Flip 2017, em que se dá nome — se rememora — a uma longa e triste lista de mulheres e de trans violentadas (espancadas, estupradas, assassinadas). A repetição frequente, no texto, por 19 vezes, de que “a foto está online” se cruza com reflexões de Susan Sontag acerca da força da imagem: “Assim como a pessoa pode habituar-se ao horror na vida real, pode habituar-se ao horror de certas imagens”. Um dos poemas mais fortes de O martelo é exatamente para laura, em que se recorda o assassinato da trans Laura Vermont.

O poema o urubu pertence a esse conjunto de dramas que, sim, têm nome e história, são de cada um, de cada corpo, de cada pessoa, são mesmo intransmissíveis, porque “a dor é de quem tem”. Mas também esses dramas individuais, de tantos e inumeráveis, compõem uma voz coletiva, testemunhal, como bem assinala Taís Bravo:

Penso que o testemunho enquanto um procedimento recorrente na poesia contemporânea feita por mulheres é uma estratégia literária e política. O testemunho assume a forma de um corpo a corpo contra o silêncio. Ao escrever aquilo que testemunham, as poetas inscrevem a sobrevivência dentro do campo simbólico. Colocam em palavras saberes que sempre foram cochichados.

Em O martelo, a marteladas, não se cochicha. No citado posfácio, Carol Almeida diz do tom maior e categórico do poema o urubu, do livro, da obra, das entrevistas, das fotos, das performances, da vida de Adelaide Ivánova: “É chegada a hora de soltar o verbo e o gozo de dizer o que precisa ser dito do jeito que precisa ser dito, ou de como estupro é estupro, trepada é trepada e literatura é sentir na pele o peso das palavras”. A pesada metáfora do “martelo” se multiplica, desde o primeiro poema, quando funciona como arma de defesa (contra estupradores e outros animais), até o último, quando, em alusão ao símbolo comunista da foice e do martelo, o poema provoca: “marx nunca falou sobre/ martelo/ algum quem já viu/ escola de pensamento ter/ símbolo qual seria o símbolo/ da escola de frankfurt se/ adorno tivesse escolhido um?”. Um martelo, sendo também símbolo da justiça, seria uma boa escolha.

As três estrofes de o urubu, se tivessem subtítulos, poderiam ser (acompanhando a ironia, a partir da linguagem teatralmente descritiva, do poema): o conceito, o exame, as coisas. Porque se mostra o quão impreciso e estranho é o conceito de “corpo de delito”, porque se mostra o modo como não se deve examinar alguém que foi vítima (de um estupro, de um abuso, de qualquer violência), porque se mostra que um corpo não é uma coisa, nem um doutor deveria ser tomado por um bicho que se apraz com carniça. Não há foto desse poema, do horror de que se fala nesse poema. Mas, para quem quer ver e saber, o poema está online.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

Rascunho