Apanhado em meio à noite,
jogado no chão da cela,
o corpo nu conhece
a primeira humilhação.
Outras virão: o soco,
o choque, a ameaça,
o urro na escuridão.
— Quantos volts
suporta um corpo
— em coação,
até que dele escorra o fel
da delação?
— O que procura o tortura/dor
nas pedras do rim alheio
como vil minera/dor?
— O que ama esse ama/dor
da morte?
esse morcego suga/dor
sob os porões da corte?
esse joga/dor
do jogo bruto
e cria/dor do luto?
O tortura/dor se sente, e acaso o é,
um trabalha/dor diferente:
seu trabalho é destruir
o sonha/dor insistente,
como o médico que resolvesse
matar de dor
— o cliente.
Sob a tortura
o que há de melhor no homem
jamais se manifesta. Quando muito
podeis catar no chão
o pouco que dele resta.
Mas soltai-o em festa, ao sol,
e vereis que a verdade
de seus gestos se irradia.
Livre,
vestindo a pele do dia,
o torturado caminha
com seu corpo tatuado
de violência e poesia.
Mas ele não marcha só.
Apenas segue na frente
na direção da utopia.
Em prefácio para o livro de memórias Em busca do tesouro (1982), de Alex Polari, o psicanalista Hélio Pellegrino elabora uma reflexão fundamental acerca da tortura: “A tortura destrói a totalidade constituída por corpo e mente, ao mesmo tempo que joga o corpo contra nós, sob forma de um adversário do qual não podemos fugir, a não ser pela morte. (…) Ela nos racha ao meio e, no centro desta esquizofrenia, produzida em dor e sangue, crava a sua bandeira de desintegração, terror e discórdia”. O poema de Affonso Romano de Sant’Anna capta, com sensibilidade, parte desse terror, dessa crueldade, dessa bárbara desumanidade que se chama tortura (antessala do assassinato).
É importante saber que o poema O torturado e seu torturador, publicado em 1985 no livro A catedral de colônia e outros poemas, foi, como o próprio Affonso registra, uma encomenda da Anistia Internacional, em abril de 1984 (ver Rascunho nº 127, de novembro 2010): “É um belo desafio que gosto de enfrentar: [a] o trabalho de encomenda, [b] uma prova de técnica e [c] o sentimento”. O poema teve expressiva repercussão e recebeu então o título de O operário da utopia (alterado quando migrou para o livro).
Durante o regime autoritário dos anos de chumbo, houve uma intensa — apesar de censura, prisão, perseguição, tortura, exílio, assassinatos — demonstração de resistência no mundo artístico (cinema, literatura, música, teatro) contra a ditadura. Com a eleição indireta em 1985 de Tancredo, e logo a seguir a posse de Sarney, e depois a eleição de Collor (de caçador a cassado), o período Itamar, as gestões duplas de FHC, Lula, Dilma, o país veio pouco a pouco realizando um trabalho civilizatório de memória, que teve seu auge na Comissão da Verdade (necessária e fundamental, mas limitada no alcance).
O poema de Affonso vem se somar a um conjunto relevante de poemas que manifestam explicitamente uma posição de completa oposição à existência desse muito cruel “instrumento” de suplício corporal e mental (em junho de 2024, há 214 poemas em que ocorre o termo “tortura” no site do Memorial poético dos anos de chumbo: mpac.ufes.br). A linguagem referencial dos versos procura dar conta do (a) “trabalho de encomenda”, enquanto os cortes de versos e palavras, as rimas e as metáforas funcionam como (b) “prova de técnica”; no geral, do poema emana um (c) “sentimento” de absoluta solidariedade àqueles que sofreram tal suplício (e muitos levados a óbito) e, mais, o poema sugere que o torturado sobrevivente, com o “corpo tatuado/ de violência e poesia”, apesar do sofrimento, segue em busca de melhores horizontes, “na direção da utopia”.
Nos debates em torno do testemunho, a recorrente questão da indizibilidade entra em tensão com a necessidade de expressar, com o dever de tentar representar o irrepresentável: a dor, o sofrimento, a tortura, a animalização e, no limite, a própria morte. (Primo Levi diz que ele testemunha exatamente em memória dos que não puderam testemunhar, porque viram a Górgona de frente: morreram.) Diferentemente de Alex Polari, dez anos de prisão na ditadura do Brasil, e Primo Levi, onze meses no campo de extermínio em Auschwitz, testemunhas diretas do evento (superstes), Affonso faz um poema na condição de testemunha solidária, tendo vivido de perto, de dentro da ditadura, mas fora da prisão, os 21 anos de chumbo e treva. O poeta (e professor, ensaísta, crítico, teórico, pesquisador, escritor, presidente da Biblioteca Nacional) tem como elementos e fontes, além do conhecimento da própria história do país, os registros e testemunhos e toda uma literatura voltada para esse imperativo categórico de: não esquecer.
Affonso escolheu para esse poema um “eu lírico” em terceira pessoa, como um narrador que procura relatar e apreender, a certa distância, de um lado, desde a chegada do prisioneiro, os bestiais flagelos, a resistência, a soltura, a marcha da utopia (ecoando nessa estrofe derradeira o derradeiro ensaio de Oswald); de outro lado, esse narrador faz digressões existenciais, faz perguntas ao torturador, descreve cenas fortes, mas, provavelmente pelo contexto de fim de ditadura, em 1984, finaliza com um cenário otimista — tendo a utopia no horizonte.
Nas seis estrofes, apesar dos versos polimétricos, há um ritmo que vem das rimas e de sequências com versos de métrica regular, sobretudo nos versos heptassílabos finais. A terceira estrofe se vale das quatro interrogações para estabelecer uma harmonia sonora. Na estrofe cinco, visualmente o mais irregular, o poema explora rimas internas (manifesta, resta, festa, gestos, pele). Em síntese, há uma oscilação entre estruturas regulares e irregulares, que tem como efeito acionar no leitor uma postura atenta, desconfiada, reflexiva. Nas estrofes três e quatro, vemos o auge desse efeito, com a sequência de palavras “quebradas” para desentranhar e iluminar, a partir de um sufixo, o substantivo “dor”: minera/dor, ama/dor, suga/dor, joga/dor, cria/dor, tortura/dor, trabalha/dor, sonha/dor. Ainda mais dois efeitos, de caráter visual, colaboram para que a vigilância do leitor se redobre: os três sinais de travessão (“—”), que introduzem as perguntas do narrador, e os seis versos deslocados espacialmente, em busca de ênfase e atenção. Afinal, desde o título, O torturado e seu torturador, o poeta — articulando encomenda, técnica e sentimento — adverte que o assunto é sério e precisa de toda a concentração da parte de quem lê.
A primeira estrofe fala da prisão do sujeito que, de imediato, é transformado em objeto, coisa, corpo a ser torturado. A segunda faz alusão explícita aos choques elétricos, que, como toda tortura, provocam dores insuportáveis. O espanto do “narrador” se estende às perguntas seguintes, que querem saber como o torturador consegue, enfim, exercer a tarefa para a qual foi designado (decerto por instâncias hierárquicas superiores, como alegou Eichmann), um jogo bruto que cria o luto. Em torno ainda da psicologia desse “agente do Estado”, com amarga ironia, o poema suspeita que o torturador se sente um trabalha/dor, um médico às avessas: “que resolve/ matar de dor/ — o cliente”. Na penúltima estrofe, “em festa, ao sol”, “livre”, o torturado “caminha/ com seu corpo tatuado/ de violência e poesia”. (O corpo tatuado do torturado lembra o clássico Na colônia penal, de Kafka, publicado em 1919.) A sexta e última estrofe é a menor, com apenas três versos, mas concentra um chamamento, uma esperança, uma luz, uma solidariedade: o torturado “não marcha só”. Com a consciência política, com a militância, com uma vida dedicada à resistência a ditaduras e torturadores, “segue na frente”. No horizonte, esse “operário da utopia” (título original do poema) segue em busca de mundos melhores, mais justos, harmoniosos, felizes.
O poema não pormenoriza que utopia é essa, mas, considerando a versão primeira, o termo “operário” (aquele que produz/opera) explicita o chão concreto do trabalho, que se reforça com a ideia de coletividade, de massa, de povo, que emana de “ele não marcha só”. Ademais, se saímos do poema O torturado e seu torturador e vamos ao livro em que se localiza, A catedral de colônia e outros poemas, e, mais, vamos ao fecho do poema imediatamente anterior, Sobre certas dificuldades atuais, datado de 1979, leremos:
(…) Não está nada fácil ser poeta nestes dias.
Não está nada fácil ser poeta noite e dia.
Não está nada fácil ser poeta da alegria.
Não,
não está nada fácil ser poeta
e brasileiro
nestes dias.
A dimensão política, mesmo engajada, de poemas de Affonso se confirma no poema seguinte, Eppur si muove, dedicado aos irmãos Leonardo e Clodovis Boff, cujos versos iniciais (e todos os demais) são contundentes:
Não se pode calar um homem.
Tirem-lhe a voz, restará o nome.
Tirem-lhe o nome
e em nossa boca restará
a sua antiga fome. (…)
Enfim, não é coincidência que o poema O torturado e seu torturador esteja entre poemas tão incisivamente políticos. Na verdade, quem acompanha a longa e sólida obra de Affonso sabe que a presença da história brasileira é nela recorrente, em paralelo a outras fortes características de sua poesia, como o erotismo (desde cenas picantes a considerações polêmicas em relação ao feminino), a metalinguagem (em que se inclui um imenso leque de citações e referências intertextuais), o cotidiano (cenas, acontecimentos, viagens), digressões filosóficas (o poema como veículo de reflexões teóricas em sentido lato) etc.
Mineiro de Belo Horizonte, conhecido professor da PUC-Rio, Affonso Romano de Sant’Anna publicou trabalhos de leitura obrigatória para todo pesquisador de Drummond, de quem herdou o espaço da coluna no Jornal do Brasil. Se o Brasil, como se diz com frequência, tem sofrido do mal do esquecimento, ou seja, é um país com dificuldades de preservar a memória — sobretudo a memória dos vencidos —, ler e reler a obra de Affonso tem sido uma lição de como um poeta pode se dedicar, livro a livro, com técnica e sentimento, à marcha da poesia, sem esquecer aqueles que fazem, de fato, a marcha acontecer.