O reino universal da picaretagem, de Ademir Assunção

Os oito dísticos que compõem o poema presente no livro “A voz do ventríloquo” não deixam dúvidas, põem a nu o negócio em que se transformou a fé
Ademir Assunção, autor de “Pig Brother”
01/03/2021

velhacos vendem graças
pra desgraça alheia

almas bem fodidas
igrejas sempre cheias

lorotas milionárias
escroques indecentes

castelos habitados
por ratos e serpentes

celebridades big brother
pastores bad boy

vendendo a mãe o padre
e um lugar ao sol

o paraíso em prestações
melhores juros do mercado

deus meu, que bom negócio
jesus, muito obrigado

Esse poema de Ademir Assunção pertence ao livro A voz do ventríloquo, vencedor do prestigioso Jabuti em 2013. Os oito dísticos não deixam dúvidas: sem papas na língua, põem a nu o negócio em que se transformou a fé (se não para a maioria de crentes e religiosos, para uma parte bastante expressiva de evangélicos e afins, sobretudo para os empresários travestidos de bispos). A religião, e tudo o que envolve sua existência, é sempre um tema delicado e polêmico, quando não “tabuizado”. Para melhor entender o fenômeno, há que se considerar a multiplicidade de aspectos e perspectivas que o tema invoca, a partir de um olhar transdisciplinar envolvendo história, sociologia, filosofia, arte, teologia, economia, psicanálise, política, antropologia, etc., pois a dependência de um mundo-além, mágico e transcendental, vem desde priscas eras. Por isso, na década de 40 do século 20, Adorno e Horkheimer assim começavam seu clássico livro: “No sentido mais amplo do progresso do pensamento, o esclarecimento tem perseguido sempre o objetivo de livrar os homens do medo e de investi-los na posição de senhores. Mas a terra totalmente esclarecida resplandece sob o signo de uma calamidade triunfal. O programa do esclarecimento era o desencantamento do mundo. Sua meta era dissolver os mitos e substituir a imaginação pelo saber”. Quando escreveram Dialética do esclarecimento, o mundo vivia a segunda grande guerra. Hoje, décadas depois, a treva se transmutou, mas permanece. No Brasil, se instalou, espessa, na máquina do Estado.

Nenhum poema, nenhum ensaio há de condensar tamanha complexidade que a metafísica mística comporta. Desse modo, resta acompanhar, nos versos, os aspectos nos quais o poema lança luz, com evidente sarcasmo e postura crítica. Desde o título, O reino universal da picaretagem, o alvo primeiro se desenha, e é o grupo Igreja Universal do Reino de Deus (o longo verbete no Wikipédia atende a uma pesquisa introdutória). Tal grupo é associado a uma ação de fraude, de embuste, de enganação, por meio da expressão popular “picaretagem”, que já dá o tom de papo reto que o poema pretende. Ao longo dos 16 versos, há um verbo apenas, que se repete: “vendem” e “vendendo”. Todo o restante são frases curtas, que parecem querer atingir (como num ritual repetitivo de missa) a “consciência” do ouvinte/leitor. Aqui, no entanto, em vez de seduzir e engambelar o fiel, com bordões, à cata de dízimos e que tais, o que se quer é retirar o véu da ilusão, dar a ver o fel da fé, dando primazia à razão, ou, nas palavras dos filósofos, ao pensamento, ao esclarecimento, ao desencantamento, ao saber.

A repetição das frases encontra eco na regularidade métrica e rímica. A escansão dos versos e as rimas externas explicitam a estrutura em modo pregão, como se o poema, lançando mão da mesma estratégia de um pregador, estivesse “vendendo” uma outra versão do rentável “negócio das almas”: 6-5, 5-6, 6-6, 6-6, 7-5, 6-5, 8-8, 6-6 sílabas — os versos são ditos em um só fôlego; a-e, i-e, a-e, a-e, o-o, a-o, o-a, o-a são as vogais de base — a única rima branca (em /i/: “fodidas”) parece querer destacar o termo supostamente chulo. A cada par de versos, um petardo se dispara: em “velhacos vendem graças / pra desgraça alheia”, já se denuncia que patifes trapaceiros ludibriam a “boa fé” de incautos, opondo claramente a falsa “graça” vendida, que se transforma na real “desgraça” do outro; o dístico seguinte — “almas bem fodidas / igrejas sempre cheias” — mantém a pegada de, sem meios-termos, ir direto ao assunto: aqui, se insinua que a desesperança, a miséria, a ignorância produzem uma massa de desinformados (semiformados, em termos adornianos) que lotam e abastecem os templos. (Esse poema de Ademir Assunção lembra um tanto a canção Igreja, do titã Nando Reis, do impactante Cabeça dinossauro, de 1987: “Eu não gosto de padre / Eu não gosto de madre / Eu não gosto de frei. (…)”.) A terceira estrofe fala em “lorotas milionárias / escroques indecentes”, ratificando um sistema de mentiras que move e sustenta fortunas de “escroques” (“aquele que se apodera de bens alheios por meios ardilosos e fraudulentos”) feitas à custa de pobres e mesmo indigentes.

E por aí segue o poema, na sua particular via-crúcis para denunciar riquezas (castelos) de sujeitos (ratos, serpentes, celebridades, pastores) que se arvoram a prepostos de um amado e temido Deus ou Cristo, e em nome deles e da igreja e de “um lugar ao sol” e de um “reino universal” vendem de tudo (mãe, padre, água benta, vassoura, álcool em gel), se apropriam do pouco que a maioria dos fiéis possui, prometendo ilusões, felicidade, vida eterna, cura, bênção divina, o paraíso, ainda que em devidas prestações. O dístico final, em itálico, destaca uma outra voz no poema, exatamente a voz da picaretagem denunciada: “deus meu, que bom negócio / jesus, muito obrigado”. A mercantilização da fé como negócio que se faz em nome de ídolos se confirma nesse arremate, seja essa voz a dos “velhacos” que abrem o poema, seja uma blague do próprio poeta imitando pastores e que tais, seja ainda a figuração do iludido crente que, mesmo enganado e expropriado, agradece a “graça” do “bom negócio”.

As célebres frases “A religião é o ópio do povo” e “Deus está morto” sintetizam reflexões filosóficas que dizem respeito à ideia da religião como consolo e fantasia (Marx, Crítica da filosofia do direito de Hegel, 1843) e como prisão a valores e crenças sobrenaturais (Nietzsche, A gaia ciência, 1882). Já Freud, em O futuro de uma ilusão (1927), enfatiza que o desejo humano pela transcendência se vincula à ideia de recompensa: creio, desejo, porque espero receber algo em troca. (A indústria dos milagres, com apoio da mídia de massa, procura satisfazer tal esperança, que conforta e pacifica oprimidos, adestrando-os.) Quem se deixa envolver por esse mundo não se dá conta, a contento, da trama dessa ilusão, que acaba se estendendo para o além, para o paraíso — do qual, salvo engano, ninguém voltou com provas de que as prestações pagas foram usufruídas. O irônico verso “melhores juros do mercado” mescla, no contexto, o sentido pecuniário de “juro” (empréstimo corrigido) e o sentido religioso de “jurar” (acreditar com devoção).

Há, felizmente, pessoas religiosas — pensantes, esclarecidas, politizadas — que nada têm a ver com os personagens de O reino universal da picaretagem, poema incisivo sobre o grande comércio que tomou conta de grande parte do mundo da fé, da igreja, da religião. Como é possível levar a sério, acreditar em figuras como Damares Alves, Edir Macedo, Flordelis de Souza, Marcos Feliciano, R. R. Soares, Silas Malafaia, Valdemiro Santiago, alguns com fortunas de milhões e, mesmo, bilhões? Se, pela Constituição, o Estado brasileiro é laico, ainda não avisaram ao presidente, que, defensor da violência e da tortura, se diz religioso e repete, feito ameaça, que quer indicar alguém “terrivelmente evangélico” para o Supremo Tribunal Federal, em cujo plenário, aliás, reina soberano na parede um crucifixo, contrariando a própria Constituição a que deveria obedecer.

Fabrício Marques diz, na orelha de A voz do ventríloquo, que “o espaço, neste livro, está bem delimitado: a urgência da vida”. Afirmação que se harmoniza com o belíssimo verso de Sérgio Sampaio, na epígrafe: “O pior dos temporais aduba o jardim”. Se poemas fortes como O reino universal da picaretagem e Chacina never stops, Videogame, Jack Kerouac na praia Brava, Armadura em carne mole, A volta do anjo torto e A origem do mundo incomodam e espantam é porque, neles e noutros, a urgência da vida se impõe. “A vida apenas, sem mistificação”. E sem picaretagem.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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