O exorcismo
Madrid, novecentos sessenta.
Aconselham-me o Grão-Doutor.
“Sei que escreve: poderei lê-lo?
Se não tudo, o que acha melhor.”
Na outra semana é a resposta.
“Por que da morte tanto escreve?”
“Nunca da minha, que é pessoal,
mas da morte social, do Nordeste.”
“Certo. Mas, além do senhor,
muitos nordestinos escrevem.
Ouvi contar de sua região.
Já li algum livro de Freyre.
Seu escrever da morte é exorcismo,
seu discurso assim me parece:
é o pavor da morte, da sua,
que o faz falar da do Nordeste.”
Desde o primeiro poema do primeiro livro (Pedra do sono, 1942), exatamente intitulado Poema, João Cabral de Melo Neto se vê às voltas com o clássico e universal tema da morte: “(…) Ficarei indefinidamente contemplando/ meu retrato eu morto”. Seu livro de maior popularidade, aliás, traz estampado na capa: Morte e vida severina (1955). O fascínio pelo tema atravessa rios secos, cães sem plumas, urubus funcionários, nordestinos famintos, cemitérios gerais, em que a morte “Nunca ela vem para um só morto,/ mas sempre para a classe,/ assim como o serviço/ nas circunscrições militares”, dirá em Dois parlamentos (1960). O poeta dedica todo um livro, Auto do frade, em 1984, para mostrar o suplício e o fuzilamento de Frei Caneca. Em livro de 1987, Crime na calle Relator, o tema da morte reaparece, desde o poema de abertura com título homônimo ao do livro (em que se narra a morte feliz de uma avó doente, após ingerir una poquita de aguardiente), mas agora com ingredientes novos na elaboração do topos: a presença do humor e o desmascaramento do sujeito. É o que ocorre em O exorcismo, quinto poema do livro.
Exorcizar é esconjurar, afastar ou expulsar algo de dentro de si, sendo que esse algo possui a força pregnante de fantasmas e demônios. O sentido geral do poema não deixa dúvida: o poeta, travestido de paciente de um psicólogo ou afim (o “Grão-Doutor”), ouve de seu interlocutor que a insistência com que escreve sobre a “morte social, do Nordeste”, ou seja, sobre as catástrofes cotidianas que assolam grandes comunidades, é um disfarce — um exorcismo (antigo e constante, como vimos) — do “pavor da morte, da sua”, isto é, do medo particular da finitude. O próprio poema oferece, assim, fartos argumentos para se pôr em xeque a tão decantada antilírica cabralina, supostamente calcada em princípios avessos a qualquer perspectiva romântica ou subjetiva de arte.
Os dezesseis versos se distribuem em quatro estrofes, com versos hegemonicamente octossilábicos, consideradas algumas sinéreses, bem ao gosto do autor recifense (em cujo nome, aliás, se inscreve um perfeito octossílabo). As rimas em /e/ estão, todas toantes, nas quatro quadras: sessenta / lê-lo; escreve / Nordeste; escrevem / Freyre; parece / Nordeste. Se, em Autocrítica, de A escola das facas (1980), se sintetizam os lugares que “conseguiram / (des)feri-lo até a poesia” — a saber: Pernambuco e Andaluzia, Sertão e Sevilha —, aqui em O exorcismo estes lugares ganham corpo e forma sob os nomes Madrid e Nordeste.
Tanto quanto a figura do poeta-paciente, a figura do Grão-Doutor é contundente, pois se trata, sobretudo, de um poderoso leitor que, diferindo de uma terapia tradicional, vai dar primazia ao objeto escrito, que poderá desvelar traços constitutivos da alma do homem no divã. Pesquisador atento, o Grão-Doutor se refere a Gilberto Freyre, também recifense, que dedicou grande parte de sua obra a estudar as agruras e mazelas do Brasil, em especial da sociedade e da cultura nordestinas. Uma evidente e delicada questão se impõe: se falar (da morte) do outro não passa de um disfarce para falar (da morte) de si mesmo, isso diminuiria a dimensão e a importância do que se tem chamado literatura ou, no caso, poesia de testemunho? De modo algum. A vontade de testemunho passa, evidentemente, pela linguagem, que é sempre mediada e elaborada por um sujeito. Na célebre Palestra sobre lírica e sociedade (1957), Adorno afirma em dois momentos: “A referência ao social não deve levar para fora da obra de arte, mas sim levar mais fundo para dentro dela. (…) Só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da humanidade”. Noutras palavras, o poema nos faz pensar justamente no trânsito entre o individual e o coletivo, o manifesto e o inconsciente, e não à toa ele se estrutura em forma de diálogo, em que o autor, em sutil mise en abîme, se vê flagrado por um grão-leitor num poema do qual, no entanto, ele é o próprio autor, a “voz da humanidade” que se quer ouvida.
Diferentemente do tom taciturno e mesmo melancólico de obras anteriores quando o tema da morte se impunha, protagonista, em Crime na calle Relator descobrimos um Cabral bem-humorado, como se comprova em História de pontes, As infundiosas e outros poemas, como O exorcismo. O humor leve aqui se esboça desde o título, que parece antecipar um assunto e um tom que não se concretizam, se estende à estranha situação para um poema (diálogo entre médico e paciente), se insinua na figura algo exótica do Grão-Doutor e se fixa, enfim, nas estranhas rimas toantes e no flagrante que o incisivo diagnóstico esclarece: a causa do exorcismo está mais à vista do que se imagina: na obra do autor, sob os olhos do leitor.
É ainda o filósofo alemão Theodor Adorno quem vai propor uma singular definição em A arte é alegre?: “A arte é uma crítica da feroz sociedade que a realidade impõe sobre os seres humanos. Ao dar nome a esse estado de coisas, a arte acredita que está soltando amarras. Eis sua alegria e também, sem dúvida, sua seriedade ao modificar a consciência existente”. Com o respeito que toda situação de opressão exige, a alegria na arte seria, assim, um gesto reflexivo, que pode ser provocado, inclusive, por uma construção formal que leve ao riso, ainda que silencioso, ou, em sentido largo, a algum grau de humor. A alegria seria, em síntese, uma forma de fazer pensar. E é o que faz o poema O exorcismo, quando, como caixas superpostas, nos mostra que a dedicação intensa e concentrada ao objeto (o autor à obra, o doutor ao paciente, o leitor ao poema) pode ser um caminho para o entendimento de alguns de nossos fantasmas e demônios.