O caso dos dez negrinhos (romance policial brasileiro), de Braulio Tavares

Ecoa no poema de Braulio um profundo incômodo, que vem de todos os lados, que nos afeta, se a gente não se parece à “gente justiceira” do poema
Bráulio Tavares, escritor, compositor, letrista, poeta, dramaturgo e pesquisador de literatura fantástica
01/06/2021

Dez negrinhos numa cela, e um deles não se move;
de manhã cedo eles fogem, mas só são nove.

Nove negrinhos fugindo; e um deles, o mais afoito,
dançou: cruzou com uma bala… correram oito.

Oito negrinhos trabalham de revólver e canivete;
roupa cáqui vem chegando; fugiram sete.

Sete negrinhos passavam pela rua de vocês;
um pai chamou a polícia; correram seis.

Seis negrinhos dão o balanço: bolsa, anel, relógio, brinco…
Houve um erro na partilha: viraram cinco.

Cinco negrinhos de olho na saída do teatro;
um vacilou, deu bobeira, fugiram quatro.

Quatro negrinhos trombando, todos quatro de uma vez;
um deles a gente agarra… mas não os três.

Três negrinhos que batalham feijão, farinha e arroz;
um se deu mal: a comida dava pra dois.

Dois negrinhos se embebedam de brahma, cachaça e rum.
Discussão, briga, navalha… só fica um. 

E um negrinho vem surgindo no meio da multidão.
Por trás desse derradeiro… vem um milhão.

Esse poema de Braulio Tavares (nascido em Campina Grande –PB) foi publicado em Balada do andarilho Ramón e outros textos, de 1980, e participa da Antologia da nova poesia brasileira, organizada por Olga Savary em 1992, e de Os cem melhores poetas brasileiros do século, editada por José Nêumanne Pinto em 2001. Além de poeta, o campinense, radicado no Rio de Janeiro, é também antologista (sobretudo de contos fantásticos), contista, romancista, ensaísta, dramaturgo, ator, roteirista, cordelista, músico, letrista e tradutor (de H. G. Wells, Raymond Chandler, Philip K. Dick). Seu blog Mundo fantasmo contabiliza milhares de acessos. Há, de 2001, um curta-metragem, disponível na internet, de 6’30’’, de Inez Cabral, que propõe uma versão visual para o poema em pauta, e conta com a vocalização do autor. Há algumas entrevistas do artista na rede, sempre temperadas com refinado humor e evidente senso pragmático. Registre-se também que, ao que parece, seu poema mais conhecido é o despudorado Poema da buceta cabeluda, vindo a lume nas excelentes coletâneas de Eduardo Kac e Cairo Trindade (1984, Antologia), de Alexei Bueno (2004, Antologia pornográfica) e de Eliane Robert Moraes (2015, Antologia da poesia erótica brasileira). A despeito da longa e consistente trajetória, a fortuna crítica sobre a obra do poeta é bastante escassa.

O poema, desde o título, se declara tributário do clássico romance policial O caso dos dez negrinhos, de Agatha Christie, de 1939, reeditado com o nome E não sobrou nenhum, sob a justificativa de haver no título original (Ten little niggers) um termo de teor racista. Na versão nova da autora britânica, os “negrinhos” da conhecida parlenda infantil dão lugar a “soldadinhos”. No caso do “romance policial brasileiro”, qualquer acusação de racismo não procede, pois se trata exatamente de explicitar e denunciar a dramática situação de dez (supostos) menores envolvidos numa complexa rede de opressão e marginalidade, a que buscam — em vão — sobreviver. Se no romance de Agatha os negrinhos vão morrendo a partir de episódios pitorescos (engasgo, picada de abelha, afogamento), no romance em versos de Braulio as mortes ocorrem basicamente por conta da violência (em variadas manifestações).

Os dez dísticos mantêm a estrutura da “velha historieta infantil” do célebre romance, mas firmam a cor que, de fato, sofre historicamente na pele o preconceito e a exclusão. Passo a passo, os menores vão sendo dizimados, à maneira do que acontece dia a dia em terras brasileiras com pretos e pobres. A cena inicial já anuncia que os “negrinhos” estão presos, numa cela, e que a tentativa de fuga elimina dois deles: um que “não se move” e outro que “cruzou com uma bala”. Num flagrante de assalto ou similar (“trabalham de revólver e canivete”), um agente da lei (“roupa cáqui”) mata um terceiro. Se a morte não se narra de forma visível, ela está subentendida em cada momento, pois, desde o modelo parodiado, a cada etapa um “negrinho” desaparece.

Na quarta estrofe, a denúncia de “um pai”, decerto para preservar a segurança familiar, colabora para o sumiço de outro negrinho. Na sequência, em desavença interna, “um erro na partilha” resulta em mais uma eliminação. Noutra suposta cena de assalto “na saída do teatro”, nova baixa. A seguir, por conta de uma desordenada fuga, um dos sobreviventes foi agarrado pela “gente”, provavelmente “cidadãos de bem” da época. Reduzidos a três integrantes, agora por causa da escassez de comida e do aguçamento da fome, mais um fica para trás. O álcool estimula a violência, e os dois restantes se enfrentam em duelo fatal. O negrinho vencedor/sobrevivente de tantos paredões (para usar recente terminologia bélica popularizada por intermináveis reality shows) simboliza, contudo, a resistência de um grupo que, se pode ser entendido como “minoria” (no sentido de grupo distante de instâncias de poder e decisão), é efetivamente “maioria”, é “um milhão”, é um grupo que, unido em torno de um desejo comum, possui uma força de resistência, de transformação, de revolução — ainda não realizada em termos práticos. No poema, nenhum dos dez negrinhos tem um nome, o que os individualizaria; sem singularidade, metaforizam um grupo homogêneo — “os negrinhos”.

Há poetas e artistas no Brasil e no mundo que, negros ou não, dedicam obras ao tema do racismo e de tudo o que este implica. Muitos poemas de Adão Ventura e Miriam Alves, de Elisa Lucinda e Ricardo Aleixo, para citar poucos exemplos, dão a medida da qualidade e da intensidade desse engajamento. Vozes solidárias, a despeito de virem de pessoas brancas (o que, para alguns, problematizaria seus lugares de fala), se juntam a esse coro de, bem mais que descontentes, de massacrados, de matáveis. Ecoa no poema de Braulio Tavares um profundo incômodo, que vem de todos os lados, que nos afeta, se a gente não se parece à “gente justiceira” do poema. A sensação de harmonia advinda das rimas consoantes dos dísticos (move/nove, afoito/oito, canivete/sete, vocês/seis, brinco/cinco, teatro/quatro, vez/três, arroz/dois, rum/um, multidão/milhão) provoca também certo mal-estar, pois funciona como que pacificando, sonoramente, o choque a cada espanto, a cada morte.

O poema se elabora ludicamente, feito uma brincadeira infantil — cujos personagens têm um perfil de jovens e/ou menores — que, contudo, mata, a cada vez que um dístico se completa. As cenas de fugas, de flagrantes, de prisões, de assaltos, de brigas são familiares. O desfecho, que simula uma espécie de exército (“um milhão”) liderado pelo “negrinho”, assusta e abala o lugar de conforto do “branco”. Resta, na ambivalência do final, um conflito: terá esse exército poder para transformar a condição marginalizada dos “negrinhos” ou será ele também pouco a pouco subsumido, subjugado, exterminado, assim como os “dez negrinhos”, feto um ciclo de barbárie? A versão de Braulio, sem deixar de ser um “retrato de época” — no caso, de um Brasil sob ditadura militar, vide a “roupa cáqui” —, estende a tradição da parlenda, que tem com o romance O caso dos dez negrinhos uma ligação evidente, mas que se estende a um folclore e a uma literatura oral de várias partes do mundo. O poema pertence, assim, a um tempo (anos 1970), mas dialoga com um romance de 1939 e com tradições mais antigas, e demonstra ainda impressionante “atualidade” quando lido e pensado em cotejo com nosso tempo contemporâneo.

Numa de suas entrevistas, Braulio Tavares diz, na lata, sobre escrever: “Tenho sempre um lema: ‘Simplifique’. Não queira dizer tudo de uma vez só. Não queira colocar em cada parágrafo o somatório total dos seus conhecimentos sobre o assunto. Não queira fazer de cada frase uma obra-prima inquestionável. Vá simplificando”. Talvez o poema O caso dos dez negrinhos traga essa lição: embora haja nele um elemento de predileção da poesia contemporânea (a citação, o intertexto, a paródia), tudo se passa de modo claro, sem hermetismos, nem malabarismos linguísticos, nem afetação. Como diz Theodor Adorno em Minima moralia: “Primeira medida precaucional do escritor: inspecionar em cada texto, em cada passagem, em cada parágrafo se o motivo central surge suficientemente claro”. Todos entendemos o que se passa nesse “romance policial brasileiro” em que os protagonistas são “negrinhos” matáveis. Talvez por isso, por fazer da linguagem lírica um meio para chegar ao outro, e não para passear à volta do próprio umbigo, a obra de Braulio Tavares ainda não tenha conseguido o merecido reconhecimento.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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