O bicho
Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando comida entre os detritos.
Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.
O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.
O bicho, meu Deus, era um homem.
Datado de “Rio, 25-2-1947”, e publicado neste ano em Belo belo, o poema O bicho é um dos mais conhecidos de Manuel Bandeira. No entanto, talvez por simular-se demasiadamente simples e por destoar dos temas do poeta, parece que não vem atraindo a devida atenção da crítica literária. Mas, o que é comum nas grandes obras, a simplicidade, para se fazer forma, precisa de réguas, andaimes, engenhos, como demonstrou Davi Arrigucci Jr. em seu Humildade, paixão e morte – a poesia de Manuel Bandeira (1990), estudo incontornável para os que se dedicam à obra do autor de Libertinagem.
Se os dez versos do poema fossem reunidos em um parágrafo em prosa, a leitura continuaria fluida e objetiva em seu propósito de denunciar uma cena de animalização do homem. Dispostos, porém, nas quatro estrofes, percebe-se de imediato a ação reflexiva do poeta. Sua arquitetura se compõe de três tercetos e um monóstico. À primeira lida, o leitor pode não apanhar o esquema rítmico e rímico: os versos variam de 4 a 9 sílabas (5, 6-7, 9 /// 7, 9, 9 /// 7, 4, 4 /// 8) e as rimas externas se dão a ver em i-a-i /// o-a-a /// a-a-a /// o. As rimas em /i/ (“bicho”, “detrito”) se expandem internamente nos termos “vi”, “imundície”, “comida”, “engolia”, “bicho” e “bicho”; às seis rimas em /a/, de igual modo, se somam, dentro dos versos do poema, outras tantas com o som aberto (“achava”, “examinava”) ou, sobretudo, em tom anasalado (“catando”, “quando” e quatro vezes “não”). A cadência dos versos, a nasalidade e a sonoridade reiterativa produzem uma harmonia que se choca com o teor do que é enunciado.
O solitário décimo verso final encontra a rima em /o/ somente no quarto verso, e não à toa a palavra “homem” é a rima toante para a palavra “coisa”, como se a correspondência sonora confirmasse a proximidade semântica: “coisa é o nome do homem” (cantaria, em 1993, o multimidiático Arnaldo Antunes, em Nome). Chama a atenção a gradação — ou degradação — que o poema impõe, com o recurso do paralelismo, colocando o homem em grau abaixo de animais que, ironicamente, são considerados domésticos: cão, gato, rato.
Cada uma das quatro estrofes se centra numa cena: a visão do poeta, a ação do bicho, o espanto e a revelação. Visualmente, o verso final, destacado numa linha apenas, mas composto de três partes (“o bicho”, “meu Deus”, “era um homem”) parece ecoar e sintetizar o enredo e o sentido das três estrofes anteriores. No primeiro verso a visão é de “um bicho”, ainda a se definir; no derradeiro, já se sabe qual é “o bicho”. Entre este e seu espelho, o homem, encontra-se a evocação a Deus. Embora seja uma expressão corriqueira, desgastada, o vocativo “meu Deus” ganha, no contexto, uma ambivalente e sutil função: entre o apelo e a acusação. Como se o poeta quisesse avisar, mandar um recado àquele que, em algum lugar imaginário e transcendental, poderia estar protegendo a humanidade, mas, ao contrário, permitiu sua plena deterioração em coisa.
Há muitos bichos na poesia de Bandeira, desde o lírico Porquinho-da-Índia ao paródico Os sapos, passando pelo trágico Boi morto. Aqui, o bicho não se antropomorfiza (como o gatinho que “sai vibrando com elegância a patinha direita”, após fazer pipi na “pensãozinha burguesa”, em Pensão familiar), mas o homem é que se transforma em besta. Lembrando termos que Ezra Pound apreciava, a arquitetura (logopeia) sonora (melopeia) do poema sustenta, tensionando, a imagem (fanopeia) que ele produz. É bastante fácil imaginar, desenhar a cena que o poema nos coloca à frente: a de um homem esfaimado comendo detritos de um lixo. A fome elimina a razão e, assim, o instinto de sobrevivência se faz valer: entre os detritos, o bicho-homem “Não examinava nem cheirava:/ Engolia com voracidade”. O verbo engolir, que já pressupõe algo como devorar com avidez, ganha reforço com a voracidade: não se saboreia nem se mastiga, mas se engole o estragado catado na imundície. A todo o momento em que esta cena do poema acontece — em que há um ser humano com fome sem acesso digno à comida — é a própria civilização que rui, esboroa, fracassa, diante da brutal desigualdade econômica e social que separa os que comem e os que não.
O poema nos toca porque diz e desenha, com clareza e precisão, uma situação que permanece, que testemunhamos diariamente, perto de cada um de nós — nas cidades, nas ruas, nas calçadas, em muitos lugares.
A fome
Em 1946, um ano antes, portanto, de publicado o poema de Bandeira, outro escritor recifense, Josué de Castro, lançava Geografia da fome: a fome no Brasil, livro que se tornaria um clássico no campo da geografia e em áreas afins. Possivelmente o poeta tivesse conhecimento da obra do conterrâneo e contemporâneo. Possivelmente a cena do poema seja oriunda da paisagem de seu apartamento no Castelo, no Rio de Janeiro, onde morava à época. A existência real da fome no mundo faz com que ela seja tema recorrente na literatura: em Vidas secas (1938), de Graciliano Ramos, a fome é personagem, que leva os demais ao constante êxodo; em Grande sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa, a fome deixa sem razão os jagunços que, aparentemente pensando se tratar de um macaco, comem um homem. Na poesia, para ficarmos em dois exemplos apenas, também em 1956 João Cabral (que, em carta de 1951, elogiou a “expressão direta e dura” do poema do amigo e primo) registrava em Morte e vida severina que “morremos de morte igual,/ mesma morte severina:/ que é a morte de que se morre/ de velhice antes dos trinta,/ de emboscada antes dos vinte,/ de fome um pouco por dia”; e em 1962 Haroldo de Campos estampava em seu Servidão de passagem: “nomeio o nome/ nomeio o homem/ no meio a fome// nomeio a fome”. A fome é, antes ou acima de qualquer construção estética, um problema político, cabendo aos homens a sua solução efetiva (e não sua apropriação em atitudes meramente retóricas, demagógicas, vãs).
A lírica de Manuel Bandeira não se notabilizou pela abordagem crítica de problemas sociais. O cotidiano, a infância, a solidão, a morte, o amor, a própria poesia foram temas privilegiados em sua obra. Além de O bicho, também o célebre Poema tirado de uma notícia de jornal, o sintético O beco e o tragicômico Tragédia brasileira são mostras da força de sua lírica quando quer denunciar situações de opressão, miséria, violência. Em 1947, o Brasil e o mundo viviam um clima tenso e desesperançado do pós-guerra. A se crer no poema como um registro em versos de sua aguçada sensibilidade para desentranhar poesia de circunstâncias fortuitas, o poeta deve ter se deparado com tal visão, que destoa do ameno Belo belo do título, no dia 24 de fevereiro (“vi ontem”) daquele ano: um homem agindo, movido pela fome, como um bicho.
O poema nos toca porque diz e desenha, com clareza e precisão, uma situação que permanece, que testemunhamos diariamente, perto de cada um de nós — nas cidades, nas ruas, nas calçadas, em muitos lugares. Já em 1959, o filósofo Theodor Adorno afirmava em O que significa elaborar o passado: “Precisamente porque a fome perdura em continentes inteiros, embora pudesse ser abolida no que dependesse das condições técnicas para tanto, justamente por isto ninguém consegue ser realmente feliz com a prosperidade”. O poema (este ou qualquer outro) não deve servir para que, extasiados, pacifiquemos o conflito, o problema, a dor de que o poema trata. Ao contrário, como numa catarse que leva à reflexão (e não à purgação), o poema pode servir para que não nos esqueçamos de que a catástrofe da fome, da miséria, da coisificação é permanente.