[1] Minha terra tem Palmeiras
Coríntians, Inter e Fla,
mas pelo que se viu na Argentina
não jogam mais futebol por lá.
[2] Os amigos que aqui gorjeiam
dizem que a coisa vai aos trancos.
Falam de promessas de abertura
e de um suposto novo Santos.
[3] Nosso céu tem mais estrelas,
mas no chão continua o assombro:
a melhor conjunção do horóscopo
é a de quatro estrelas no ombro.
[4] Nossas várzeas têm mais flores
nossas flores mais pesticidas.
Só se banham em nossos rios
desinformados e suicidas.
[5] Nossos bosques têm mais vida
porque nas cidades se morre.
Quando não é assaltante ou vizinho
é um motorista de porre.
[6] Em cismar, sozinho, à noite
mais prazer encontrava eu lá.
Agora sei que cismar pode,
mas sozinho, e à noite, não dá!
[7] Minha terra tem palmeiras
mas anda escasso o arvoredo.
Tudo se corta, queima e derruba
menos, claro, o Figueiredo.
[8] Minha terra tem primores
de que os amigos me falam até tarde.
Lembro samba, feijoada, bons papos,
mas quem é essa Bruna Lombardi?
[9] Nossos bancos têm mais juros
nossos corruptos mais favores
nossos pobres mais desgraça
nossa vida mais amores.
[10] O sabiá, eu sei, já não canta
por questões ecolo-genéticas.
Mas ninguém sentiu muita falta,
agora existem as Frenéticas.
[11] Descobriram um sabiá renitente
que insistia em cantar, por mania.
Seu número não passou na Censura:
ele insistia em cantar “Anistia!”.
[12] Leio Veja, IstoÉ, JB,
mas o pacote chega atrasado.
Estou atualizadíssimo
com o Brasil do mês passado.
[13] Minha terra tem novidades
que compreendo mal e mal.
Mandei perguntar: “E o biorritmo?”
Responderam: “É lento e gradual”.
[14] Às vezes nos reunimos
para grandes sessões nostalgia.
Um disco do Chico, um retrato
ou uma leva de ambrosia.
[15] Minha terra tem sabores
que tais não encontro eu cá.
Todos os vinhos do exílio
por um gole de guaraná!
[16] Há coisas que não acredito
entre o trágico e o cômico.
Peste suína, carnaval subvencionado
vá lá — mas o senador biônico…
[17] Minha terra tem palmeiras
onde cantava o sabiá.
Grande questão só há uma:
a Júlia fica com o Cacá?
[18] Mas não permita Deus que eu morra
sem que eu volte para lá.
Nova canção do exílio, de Luis Fernando Verissimo, saiu na Revista de Domingo do Jornal do Brasil em 1978, e depois em Poesia numa hora dessas? em 2002. Com dezessete quadras e um dístico, o poema faz um “retrato de época” humorado e sinistro do final da década de 1970, foto em que aparecem a suspeitíssima Copa da Argentina, “promessas de abertura”, o governo Figueiredo, os exorbitantes juros bancários, a corrupção das instituições, o senador biônico, além de referências a Bruna Lombardi, Frenéticas e Dancin’ Days, novela de enorme sucesso. (Sobre este poema, há uma análise bem mais minudente em meu Poesia brasileira: violência e testemunho, humor e resistência, de 2017.)
O poema se soma às múltiplas paródias do clássico de Gonçalves Dias (por Oswald, Drummond, Murilo, Paes, Gullar, Chico, Cacaso, Quintana, Eduardo Alves da Costa, Dalton Trevisan, Jô Soares etc.). O verso inicial inscreve já a diferença, com “Palmeiras” indicando um clube de futebol, e não uma árvore. Corinthians é um adversário tradicional; Internacional, o time de Verissimo; e Flamengo, o mais popular do país. A alusão ao acontecido — “pelo que se viu” — explicita um traço do escritor: a crítica política com refinado humor. E o que se viu na Argentina? Que “não jogam mais futebol por lá”. Em junho de 1978, sob a presidência do general Jorge Rafael Videla, a Argentina sedia a Copa do Mundo. O país passava por uma bárbara ditadura militar, que tirou a vida de cerca de 30 mil pessoas. A corrupção invadiu os campos, e manobras espúrias permitiram que a equipe sul-americana ganhasse a Copa.
Sucedendo ao governo linha duríssima de Médici, Geisel está em seu quinto ano de mandato (1974-79). O poeta e o poema já sabem, conforme a estrofe 7, que outro general (Figueiredo) foi “eleito” em outubro de 1978. E já ouvem falar de “promessas de abertura”. O famigerado AI-5 há de terminar, após dez anos, em 31 de dezembro de 1978. A estrofe 3 é um primor de ironia: as estrelas, literalmente, “descem à terra”, isto é, a “melhor conjunção” é a que se alinha nos ombros de um general, metonímia do poder militar. A quadra deixa claro que posturas místicas (“estrelas” no céu, “horóscopo”) ficam em segundo plano para a “melhor conjunção” (“estrelas no ombro”, “chão”).
Poluição, assalto, atropelamento, insegurança, desmatamento: a violência se manifesta de variadas formas. Constrange que tal quadro (1978) permaneça décadas depois (2020). Mantendo o sintagma “Minha terra tem”, o poema envereda por outros “primores”: “samba, feijoada, bons papos” remetem a lembranças abstratas, que produzem riso com a entrada de uma referência concreta: “quem é essa Bruna Lombardi?”, de decantada beleza. A cordialidade brasileira se camufla de elementos do festivo, enquanto a estrofe 9 traz um quadro melancólico: aumento da taxa de juros e da inflação (40,8% em 1978 e 77,2% em 1979), política de favores (enraizando a corrupção nas instituições e nos costumes), arrocho salarial (“nossos pobres mais desgraça”).
Alusões a Chico Buarque se fazem frequentes no poema. O “sabiá” da estrofe 10 — “O sabiá, eu sei, já não canta” — alude à canção Sabiá, vencedora do III FIC, de 1968, de Chico e Tom, também uma canção do exílio. Tal sabiá — símbolo da liberdade — não cantava mais “por questões ecolo-genéticas”. Naquele contexto, despontam as Frenéticas, com um hit que dizia: “Abra suas asas/ Solte suas feras/ Caia na gandaia/ Entre nessa festa”. O clima era já de “promessas de abertura” e o convite à festa, ao prazer, ao hedonismo lembra o comportamento contracultural da geração desbunde.
O sabiá retorna na estrofe 11, mas um “sabiá renitente”, inconformado, teimoso — e, assim, censurado, pois “insistia em cantar ‘Anistia!’”, isto é, “esquecimento”. Note-se que “insistia” e “anistia”, além de rima interna, formam um anagrama: as letras de uma palavra “insistem” na outra — renitentes. Entre irônico e despretensioso, na estrofe 12 o poema evidencia que o sujeito que escreve é possivelmente de classe média, apreciador de vinho, e que busca se manter informado a partir de certa mídia impressa — Veja, IstoÉ, JB — e, ademais, da MPB.
O termo “pacote” aponta para o então recente Pacote de Abril, de 13 de abril de 1977, um conjunto de medidas abusivas do governo Geisel que ampliou o mandato presidencial, manteve eleições indiretas para governador, fechou por um tempo o Congresso Nacional e alterou as regras do jogo eleitoral, para manter a hegemonia da bancada governista, com a criação despudorada da figura do “senador biônico”.
As estrofes 14 e 15 enumeram outros elementos de predileção do exilado: músicas de Chico Buarque, bocados de ambrosia, gole de guaraná. A estrofe seguinte retoma fatos coletivos e traz um verso que sintetiza o sentimento do poeta diante do quadro geral da nação: “entre o trágico e o cômico”.
A “grande questão”, e “só há uma”, no país é hilária: “a Júlia fica com o Cacá?”. Sônia Braga e Antônio Fagundes formavam o casal da novela de Gilberto Braga. O poema diz da força descomunal da mídia televisiva. Theodor Adorno, nos anos 1960, em Televisão e formação, sinalizava: “existe uma espécie de função formativa ou deformativa operada pela televisão como tal em relação à consciência das pessoas, conforme somos levados a supor a partir da enorme quantidade de espectadores e da enorme quantidade de tempo gasto vendo e ouvindo televisão”. O Brasil vivia momentos bem difíceis: corrupção, insegurança, censura, violência, autoritarismo. Todavia, a “grande questão” gira em torno de um melodrama folhetinesco. Cacá, variação de caca, seria uma espécie de metáfora da elite brasileira.
A política truculenta e opressora do Estado cria sujeitos conformados e semiformados, medrosos, tristes, reificados. Enquanto o poeta sente falta de canções de Chico, as pessoas no país são seduzidas por Bruna Lombardi, Frenéticas e Dancin’ Days. Se o futebol funciona como instrumento de alienação, o poema se serve dele como meio de reflexão: viu o que fizeram na Argentina? Se a crença em horóscopos indica uma perspectiva também alienante, o poema mostra que as “estrelas” que mandam estão na terra, no ombro dos generais.
A despeito de tudo, o poeta quer voltar: “Mas não permita Deus que eu morra/ sem que eu volte para lá”. O conflito entre o cidadão (exilado) e o Estado (autoritário) não é resolvido, mas de alguma forma pacificado, suspenso, adiado. No final, sob a capa da cordialidade, o cômico encampa o trágico e uma Nova canção do exílio entra para a história do Brasil — e para a história literária da minha, da nossa terra, de uma nova terra, de um outro lá.