diz-me com quem te deitas
angélica freitas
O curtíssimo poema — um dístico — de Angélica Freitas pertence ao recente livro Um útero é do tamanho de um punho (2012), que, desde o seu lançamento e a indicação para finalista na categoria Poesia no prestigiado Prêmio Portugal Telecom (agora Oceanos), tem dado à autora grande visibilidade, já iniciada com o também elogiado livro Rilke Shake, de 2007.
É conhecida a posição de Theodor Adorno, que sempre se colocou a contrapelo da “má vontade institucionalizada em relação à filosofia que tem a pretensão de um primado do objeto”, como diz na Dialética negativa (1966). A primeira impressão parece ser a de um corpo — o do poema — compacto, que, no entanto, denuncia uma invasão de privacidade. O convencional “eu lírico” (que não se confunde, sabemos, com a primeira pessoa gramatical) dá lugar a um “tu invasor”, já imperativo no modo verbal de expressão, que se manifesta em tom de ordem e intimidação, uma espécie de “outro bisbilhoteiro” que se intromete na intimidade alheia. Ocorre que a personagem nomeada no verso de arremate — “angélica freitas” — tem o mesmo nome da autora do livro em que se abriga o poema: Angélica Freitas. Este efeito constitui um recurso aqui e ali utilizado por poetas e artistas: a assinatura. Dos mais distintos modos, o poeta se projeta, como um alter ego de si mesmo, no poema — recorde-se o clássico “Vai, Carlos! ser gauche na vida” de nosso poeta-mor. Lembre-se ainda do paródico “Ninguém me ama/ Ninguém me quer/ Ninguém me chama/ Nicolas Behr”, do autor radicado em Brasília, ou o autoirônico “aqui jaz/ para o seu deleite/ sebastião/ uchoa/ leite”, em formato visual de cruz, do poeta pernambucano.
Ocorre ainda, e isso é fundamental, que se trata da vigilância (da bisbilhotice) sobre um corpo feminino — de uma mulher, que o poema, com sarcasmo, diz ser “de respeito”. O verso “diz-me com quem te deitas” é uma variação de aforismo moralizante. O fato é que se impõe, popular, o estigma moral e judicativo desta frase já proverbial. No poema, o estigma se estende: já não basta saber com quem andas, mas com quem deitas, isto é, o corpo — feminino — se torna uma propriedade a ser vigiada (e tantas vezes punida). Noutro contexto, mas com semelhanças, Caetano Veloso canta a difícil vida de uma mulher, Tieta, em ambiente tão conservador e tacanho: “Toda noite é a mesma noite/ A vida é tão estreita/ Nada de novo ao luar/ Todo mundo quer saber/ Com quem você se deita/ Nada pode prosperar”. Na Bahia ou em Pelotas, no campo ou na cidade, na metrópole ou na província, no Brasil ou alhures, o cerco à mulher se amplia, com a cumplicidade tácita dos homens que se calam.
O poema, quase um haicai em suas dezesseis sílabas, surpreende em seu arremate, com a inserção de um nome próprio que repete o da autora do poema e do livro. O leitor astuto (ruminante, diria Nietzsche) sabe que este nome-verso é e não é o nome da autora. Seria fácil arrematar o verso com algo tipo “diz-me com que te deitas/ verônica freitas” ou “rosângela seixas”, algo assim, inserindo um nome puramente fictício qualquer. Mas a opção por usar como persona poética o “próprio nome próprio” é estética e também política. (Tal opção a autora utiliza também no belíssimo poema “querida angélica” do mesmo livro.) Confundindo as máscaras do eu lírico e do “eu real”, a partir da coincidência dos nomes, a autora não só denuncia a questão do controle do corpo feminino, mas evidencia — ao assinar com seu nome pessoal — a sua solidariedade plena às mulheres que, de formas as mais variadas (sutis e explícitas), passam por tais constrangimentos.
A métrica regular (5/6/5) e as rimas (praticamente) consoantes em “respeito/ deitas/ freitas” criam uma sensação de harmonia sonora, com os três /ê/ fechados que se reforçam com a rima interna dos dois /é/ abertos de “mulher” e “angélica”, harmonia que, no entanto, é quebrada pelo teor mesmo do que se diz: afinal, querer saber da vida alheia, para controlá-la, será algo harmonioso, “de respeito”? Essa expressão “de respeito”, irônica e polissêmica, também indicaria que algo ou, no caso, alguém é “importante”, “exemplar”, “íntegro”. A visível homologia do título “mulher de respeito” com o verso “angélica freitas” (ambos com 5 sílabas, rima externa em /ei/ e interna, na segunda sílaba, em /é/) parece indicar que a mulher/personagem referida é, sim, “de respeito”, e portanto livre e autônoma para fazer do próprio corpo o que deseja, indo frontalmente na direção contrária do panopticum do invasivo verso intermediário — “diz-me com quem te deitas”. O poema — dialogicamente — incorpora a voz do outro (o bisbilhoteiro moralista) e assim evidencia seu travo ideológico, conservador, inquiridor. Este verso aciona outro sentido, mais elíptico e pernóstico, da expressão “de respeito”, como quem diz “mulher que se dá ao respeito”, francamente moralizante, conforme se verifica com frequência em justificativas de estupradores, alegando que as suas vítimas mulheres — por usarem tal ou qual roupa, ou por se comportarem de tal ou qual jeito — não se deram “ao respeito”, e assim “induzidos” ou “seduzidos” por uma incrível “culpa da vítima” foram levados à prática (ignominiosa e bárbara!) do estupro.
Chama a atenção também, e colabora para o tom de humor que ecoa do poema, o próprio significado do nome “Angélica”, “pura como um anjo”, que amplificaria o conflito estabelecido no poema entre uma voz invasiva (“diz-me”), que representa o controle social e o rebanho do senso comum ressentido e coisificante, e uma voz feminina (“angélica freitas”) que se quer livre, autônoma, autêntica e efetivamente “de respeito”.
Em contato com o poema, o pensamento se mediatiza a partir de nexos e relações concretas e históricas: (a) o lugar do poema e do livro no cenário poético brasileiro; (b) o poema como um corpo invadido (pelo tu inquisidor); (c) a coincidência dos nomes da persona poética e da autora real; (d) as alusões (intencionais ou não do poema, mas motivadas no leitor) a Caetano, Drummond, entre outras; (e) a concisão do poema, feito um haicai, que se apreende em gesto gestáltico; (f) a presença do humor, a despeito do mal-estar da temática da opressão; (g) a harmonia formal do poema (métrica, rimas) em conflito com o seu teor crítico e desestabilizador; (h) o poema como um libelo contra a cultura do estupro (patriarcal, machista, falocêntrica); (i) a resistência e, mais, a recusa da mulher em ser coisificada: daí, a afirmação da “mulher de respeito”, que se expõe, assina, ri, ironiza, zomba, faz o poema que quer, como quem deita com quem quer.
O respeito, aqui, implica reconhecer a situação histórica de oprimida e silenciada da mulher, assim como reconhecer que é necessário vontade de entender essa situação e, mais, transformá-la. Muito dificilmente, um homem poderia ter escrito esse poema, e não só pela dupla assinatura feminina que carrega (da autora e do eu lírico), mas porque ele, o homem, sempre quis controlar e aprisionar o corpo da mulher — então não sabe, historicamente, o que é ter sido por séculos e séculos silenciado, reprimido, invadido, violentado. Generalidades à parte, o que um homem pode fazer é pensar sobre tudo isso, sobre todo esse passado que o poema re-apresenta. Nesse sentido, aquela “má vontade institucionalizada em relação à filosofia que tem a pretensão de um primado do objeto” encontra eco na boa vontade institucionalizada em relação aos homens que têm a pretensão de um primado sobre a mulher.