Manguinhos, de Maria Amélia Dalvi

O poema fala, sem concessão ou pieguice, da absoluta indiferença da natureza quanto a qualquer elemento humano
Maria Amélia Dalvi, autora de “Poema algum basta”
01/09/2024

O azul do mar não sabe que o miramos
vendo ali uma paz apenas imaginada
— mais nada.
O mar mesmo não sabe da guerra,
sequer sabe da terra, de suas perdas.
Tanto faz para ele
se matamos, morremos.
Nem mesmo as pedras lhe importam:
ele as contorna,
espera sua erosão completa.
Ignora solene, indiferente
quanto nos doemos.

Nem imagina os projetos irrealizáveis
que traçamos,
os pontos sem nó
— quedamos.
Não se dá conta do quanto
somos uns arrogantes medonhos.
Enfadonhos.
O mar, do fundo de sua imensidão,
nem mesmo quer que a gente se foda:
menos vale um de nós
que qualquer de suas gotas.

Nem todos os leitores devem saber que Manguinhos, no título do poema, é um belo balneário capixaba. No livro Poema algum basta (Cousa, 2019), Manguinhos é um belo e melancólico poema, que encerra a primeira parte da obra, Paisagem, na qual há também outros espaços (Montanha, Beira-mar, Ponte, Penedo, Líbia, Vitória), em torno dos quais Maria Amélia Dalvi elabora reflexões políticas e existenciais, que se espraiarão com a mesma alta intensidade nas demais partes: Exercício, Substância, Impermanência.

A força do poema chamou a atenção de Adriana Lisboa, logo na abertura de seu preciso texto na orelha do livro, cujo compromisso, diz Lisboa, “parece estar entre a aceitação de um vivo que é mínimo no mundo e o lembrete incisivo da imensa responsabilidade que, não obstante, também é do humano”. Afinal, o poema fala, sem concessão ou pieguice, da absoluta indiferença da natureza (aqui, na figura do mar de Manguinhos) quanto a qualquer elemento humano: nenhum pensamento ou sentimento — nada que é nosso interessa a esse mar, “do fundo de sua imensidão”.

Os versos de Dalvi vão na contramão do que, em poesia e na arte, comumente se faz, quando se quer apreender algum fenômeno da natureza: o que se faz é, via de regra, uma antropomorfização da natureza, projetando nela algo da psique do poeta/artista e nela buscando cumplicidade, como se a natureza respondesse à projeção do desejo. O poema abole (destrona, destroça) a ilusão de conforto que o senso comum já “naturalizou”, conforto que vem de um inventado bem-estar que se sente quando diante do imenso, desmesurado, misterioso, divinizado belo natural.

De modo semelhante ao espírito que sustenta o poema, Theodor Adorno afirma em Teoria estética:

O belo natural é o mito transposto para a imaginação e, talvez por isso, liquidado. O canto das aves a todos parece belo; nenhum homem sensível existe, no qual sobreviva algo da tradição europeia, que não fique comovido com o canto de um melro depois da chuva. No entanto, no canto das aves, espreita o terrífico, porque não é um canto, mas obedece ao sortilégio que o subjuga.

No entanto, repetimos, se há alguém sensível e comovido que se encanta com o canto de um pássaro — ignorando ou fingindo ignorar que tal canto não se dirige à contemplação ou ao embevecimento alheio (humano) —, há também alguém sensível, de outro jaez, que sabe que tal canto vem de um sortilégio, um dote, um destino, uma condição que ignora a contemplação de que é objeto (sendo, na verdade, sujeito pleno da própria ação).

A sensibilidade que percebe essa dissimetria pode resultar num estado de melancolia não paralisante, que, por sua vez, pode se fazer poema — no caso, Manguinhos. A leitura fluida das duas estrofes disfarça um pouco o ritmo ondulante, em vaivém, que os versos polimétricos produzem, conforme o desenho da escansão das sílabas poéticas:

10 13 2 9 11 6 6 7 4 9 9 5

13 3 4 2 7 9 3 11 9 6 7

A polimetria, simulando o balanço e o esfumaçar das ondas, ganha reforço com as rimas externas (quase todas toantes) em todos os versos:

a a a e e e e o o e e e

a a o a a o o a o o o

Ou seja, nos 23 versos, há 8 rimas em /a/; 7 em /e/; 8 em /o/ — logo, nenhuma rima (externa!) nem em /i/, nem em /u/, tampouco nenhum verso branco, embora todos livres, para usar nomenclatura clássica. Essa harmonia sonora abranda a irregularidade métrica, dando equilíbrio ao que parece instável. Para muito além de qualquer virtuosismo no manejo de técnicas de versificação, que o livro mostra com sobras, no caso em pauta o domínio da forma parece o refúgio possível diante da impassibilidade do objeto: a maneira de envolver a matéria é uma espécie de vingança sutil (e humana) diante da indiferença do mar à vista (nem fria, nem imensa, só pura indiferença). Vingança de quem, alvo da indiferença, faz da indiferença um objeto singular, incomum, diferente — um poema, o poema Manguinhos.

Marcus Freitas publicou um excelente artigo sobre Poema algum basta, na revista Matraga (nº 52, 2021), com o título Toda a rudeza, na verdade, é calma, bonito decassílabo sáfico que retirou de Montanha. Entre descobertas e análises preciosas, o poeta e crítico diz, do livro, algo que se encaixa à feição ao poema em foco: ambos “deixa[m] à mostra em sua própria organização esse movimento combinatório do estático e do dinâmico, entre um anseio contemplativo e uma ética da ação (que vai se encontrar com o tema da educação), entre o essencial e o contingente”. Freitas aponta que, a despeito das quatro partes que o constituem, os poemas e seus temas se movimentam, dialéticos, e não se deixam estancar numa seção ou noutra (como, aliás, frisou Drummond na antologia que fez da própria obra): “as seções parecem agrupar poemas por temas: as projeções do eu-lírico sobre a natureza, em Paisagem; contundente crítica política e social, em Exercício; poética, em Substância; e amor, em Impermanência”. Drummond, aliás, paira sobre todo o livro, mas jamais como o pai a quem se deve seguir (a autoridade da herança), nem como pai que se deve matar (a ansiedade da influência). Nem tradição, nem ruptura.

Se a epígrafe, por exemplo, insinua uma identificação da poeta com o poeta e seus conflitos com o mundo (“Se se admiram de eu estar vivo,/ esclareço: estou sobrevivo”), o próprio título — Poema algum basta — dá a ver um confronto, se o cotejamos com o título da também obra de estreia do itabirano: Alguma poesia. A poesia dá lugar ao poema, e nesse movimento se engendra uma decidida transformação: importa, sobretudo, a forma concreta na qual a história (individual, coletiva) se entranha; a inversão do pronome, anteposto em Alguma poesia e posposto em Poema algum, gera um sentido negativo, crítico, metapoético às avessas, pois se afirma com contundência (basta) que nenhum poema (nem os de Drummond, nem os de Poema algum basta, nem de ninguém) dá conta de entender (e menos ainda de resolver), por exemplo, o drama existencial e político que se passa em Manguinhos: nossa miséria humana não vale nem o que vale uma gota qualquer do mar?

Tal como nesse poema, no livro muitas questões densas e difíceis vêm à tona. Em Recall da humanidade (parte 2, Exercício), acontecimentos reais, factuais de estupro, homofobia, racismo, assassinatos espantam o leitor, mesmo habituado a tantas formas de violência; em Poética (parte 3, Substância), o trecho “berro porque o instante/ insiste. bardo bom não é/ brando” parodia conhecido poema de Cecília Meireles, problematizando posturas na arte que sejam autotélicas, pacificadoras, alienantes; em Lonjuras (parte 4, Impermanência), amor e desamor, paixões e medidas se encontram, e mais uma vez Drummond dá o tom com sua lírica das incorrespondências, que ecoa nesses versos de Dalvi: “onde floresceu a beleza/ sobreviverá plena/ incômoda permanência?”. Sobre seu livro de estreia, em entrevista a Andreia Delmaschio e Vitor Cei, a autora revela: “é um material acumulado e decantado desde que ingressei na faculdade de Letras, em 2001; completa neste 2019 uma simbólica maioridade. É um diálogo com dimensões da existência e uma resposta muito pessoal ao meu percurso como leitora e estudiosa da poesia de Drummond” (Notícia da atual literatura brasileira: entrevistas). A autora fez mestrado e doutorado sobre a poesia do mineiro (ambos os estudos publicados em livro), o que explica um pouco a apropriação de tantas faces (dele, nela), às vezes à vista, ora só a sombra, quase sempre rasura (“eu risco/ meus livros: / a lapsos”).

O poema Manguinhos (como tantos do livro) coloca o leitor em situação constrangedora, porque não tem a piedade piegas de eufemismos e orvalhos. Mas não falta solidariedade: a poesia de Maria Amélia Dalvi se dá de modo generoso, de mãos dadas vai junto problematizar questões sociais, políticas, amorosas, filosóficas e/ou poéticas. Desde o primeiro verso, os personagens do drama estão no proscênio: de um lado, um ancestral e mítico mar — azul, imensidão, indiferença; de outro, um nós-lírico concreto — com guerras, dores, interesses (“pontos sem nó”), arrogâncias. O poema parece sugerir que aqueles que se importam com a deferência e, no limite, com a misericórdia do mar vão quedar — arrogantes, medonhos, enfadonhos —, pois essa imensidão azul pode esperar a “erosão completa” de qualquer pedra, de qualquer destino.

Mas quem pensa — apesar da beleza que seduz e ilude — que o mar pode ser entendido a partir do nosso lugar de mira, então, sem sublimar a finitude que nos define, pode brincar de arte e transformar o “enfadonho” em “foda”, fazer do verso ondas, converter uma situação melancólica (da pequenez humana diante do esplendor do mar) em situação afirmativa: o mar que se mira vira agora o poema Manguinhos, balneário capixaba.

Se o mar “ignora, solene, indiferente/ quanto nos doemos”, ignora também que podemos fazer de suas gotas um engenho rítmico chamado poema. Isto pode não bastar, mas ao menos ficamos de algum modo quites. Bonito, por fim, é o sentimento que resta no leitor: desprezado pelo mar, encontra abrigo na pessoa do poema: nós. Esse sentimento de solidariedade anda escasso na narcisista poesia brasileira: cada qual quer ser um mar mais imenso do que o outro, mas mal chega(m) a ser o Manguinhos de si mesmos.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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