Mamãe no Face, de Zeca Baleiro

Zeca Baleiro, autor de Mamãe no face
10/11/2016

Mamãe, eu fiz o disco do ano
E até mesmo o Caetano
Parece que aprovou
Mamãe, eu sigo na minha rota
Veja só o Nelson Motta
Disse que o disco é show 

Só falta que a Folha de São Paulo
Comece a incensá-lo
Dizer que eu sou o cara
Ou então que os rapazes da Veja
Me chamem p’r’uma cerveja
Veja só que coisa rara

Mamãe, não sou mainstream, nem sou cult
Eu sou assim vapt-vupt
Caiu na boca do povo
Mamãe, é bom ser experiente
Ainda mais independente
Não ser nem velho nem novo 

Só falta ser capa da Rolling Stone
O hype dos ringtones
O mega hit no YouTube
E as cantoras que há de sobra
Festejarão minha obra
Não saio mais desse clube 

Mamãe, eu fiz o disco do ano
Parece até que o Hermano
Falou bem na Piauí
Mamãe, o fato é que eu tô na moda
Mamãe, fiz um disco foda
Faz um download, ouve aí

A canção Mamãe no Face encerra o CD O disco do ano (2012) de Zeca Baleiro, com doze faixas. Nela, se repete duas vezes a expressão que dá título ao CD, que significa muito mais do que “uma alusão à obsessão que o mercado e os formadores de opinião têm quanto a fazer a aposta certa no grande disco feito no ano”, como se afirma no site da gravadora. A canção-poema elabora, em forma de sofisticado entretenimento musical, uma reflexão a um tempo bem-humorada e melancólica atinente à indústria cultural. Sabe a canção que as farpas dirigidas aos agentes que representam e administram esse mundo sem dó retornam, qual bumerangue, para ela mesma. Em 1949, em Crítica cultural e sociedade, Theodor Adorno dizia que “a existência da crítica cultural, qualquer que seja o seu conteúdo, depende do sistema econômico e está atrelada ao seu destino”. O poema de Baleiro parece explicitar a consciência de tal dependência: debocha dos outros, como se os estivesse reverenciando e, autoirônico, zomba de si mesmo — a começar pela infantil evocação à figura protetora da Mãe, a quem diz, entre orgulhoso e culpado: olha como seu filho fez sucesso. A que preço, porém?

Em 1944, Adorno e Max Horkheimer publicaram Dialética do esclarecimento. Nesse clássico da filosofia, cunharam o termo “indústria cultural”, que, desde então e até hoje, frutifica uma miríade de debates, de onde surgiram, apenas como pontas visíveis de um imenso iceberg, as figuras antagônicas dos apocalípticos e integrados, para usar as também conhecidas expressões de Umberto Eco. No capítulo A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas, os alemães, com a costumeira contundência e impressionante vitalidade, garantem: “Quem resiste só pode sobreviver integrando-se. Uma vez registrado pela indústria cultural, ele passa a pertencer a ela assim como o participante da reforma agrária ao capitalismo”. Nesse sentido, os versos de Zeca Baleiro insinuam reconhecer que sua vitória no campo artístico (“o disco do ano”) depende exatamente do interesse e da cumplicidade de uma engrenagem legitimadora (Folha, Veja, Rolling Stone, YouTube, Piauí, Caetano, Nelson Motta, Hermano Vianna) no campo do mundo administrado.

Quando diz “eu fiz o disco do ano”, a voz lírica (narcísica e triunfante) da canção — um “tango de tintura brega”, como sintetizou Luis Nassif em comentário no seu blog — dirige-se à mãe em uma espécie de carta via Facebook. O texto ganha sustentação vocabular e sonora em versos que variam de seis a nove sílabas, que a performance vocal e melódica se encarrega de harmonizar, em ritmo mais ou menos regular. Se divididas em cinco, as estrofes têm uma estrutura rímica idêntica: aaBccB. Há desde rimas consoantes previsíveis (obra/sobra; novo/povo), a rimas bilíngues (aprovou/show; cult/vapt-vupt; youtube/clube) e mesmo uma rima — consoante, mas surpreendente — que se apropria de um “palavrão” que se tornou gíria sobretudo de um público jovem, descolado: moda/foda (“eu tô na moda/ fiz um disco foda”). A variedade das construções rímicas ganha correspondência na variedade de figuras e instituições legitimadoras que a canção e o compositor pretendem e precisam alcançar para obterem o título de “o disco do ano”. As publicações referidas pelo filho representam posições estéticas e ideológicas diversas (compare-se o abismo entre Veja e Piauí, embora ambas sejam administradas por um mesmo grupo editorial). Decerto com sarcasmo, o “filho de sucesso” começa citando um compositor e um crítico, Caetano Veloso e Nelson Motta, há décadas canônicos na cena musical brasileira, mas, ao mesmo tempo, alvos — ambos — da desconfiança de artistas e intelectuais conscienciosos e engajados. No caso de Caetano, a alusão a seu nome, para além de qualquer questão pessoal, se deve a seu papel de polemista, que se perpetua desde os anos sessenta: para o bem e para o mal, o baiano provoca controvérsias com suas opiniões e “verdades tropicais”. Por isso, já na primeira estrofe, de imediato, o filho-compositor da canção quer dar a dimensão que seu disco (“do ano”) arrebatou: “até mesmo o Caetano/ Parece que aprovou”. Parece, mas, no mundo midiático, para aquém de mediações filosóficas, parecer é o que basta.

O que a indústria cultural busca, em sua sanha despudorada, é a massificação — e com esta venda e lucro. Por isso, coerentemente, o artista que fala no poema-canção explica à mãe (supostamente alguém distante do contexto em que ele transita) que é “independente” e “caiu na boca do povo”, uma equação difícil, se não inexequível. (Seria, guardadas as proporções, um caso raríssimo de sucesso de crítica e público.) Não me parece, todavia, que a canção Mamãe no Face de Zeca Baleiro tenha conseguido realizar, efetivamente, aquilo que performatiza. Noutras palavras, a despeito da fama de que goza o artista maranhense, Mamãe no Face acaba sendo a prova do fracasso que quer ser sucesso, pois não consta entre as canções mais ouvidas e conhecidas do poeta-músico. (Algo similar acontece com a canção Épico, só re/conhecida por caetanômanos, que, no experimental Araçá azul, de 1975, profetizava: “Destino eu faço, não peço/ Tenho direito ao avesso/ Botei todos os fracassos/ Nas paradas de sucessos”.) Talvez — mera hipótese — a regularização e a harmonização da letra e música de Baleiro não tenham sido suficientes para que a canção saísse da promessa sofisticadíssima que a letra (poema) formaliza. Mas nem disso a canção e Baleiro têm culpa: “o amor funesto do povo pelo mal que a ele se faz chega a se antecipar à astúcia das instâncias de controle”, afirmam Horkheimer e Adorno em Dialética do esclarecimento. Ou seja, uma vez instaurada a audição regressiva, o desejo é regressivo/repetitivo: “desejo aquilo que me faz mal, mas acho que me faz bem”. Daí, sem saber o que é mainstream e hype, nem atentar para a rima entre “[Folha de São] Paulo/ incensá-lo”, fica difícil, ou raro, que a Mamãe, no Face, ou algures, entenda a carta do filho. A Mãe da canção somos todos nós: ouvintes, indústria, fãs (jitterbugs), críticos, todos que querem um clube. O bumerangue vai, volta e acerta, sem dó, quem estiver — em frente.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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