de segunda a segunda
gingando gingando
pra lá y pra cá
em tangas ou sungas
vagam vaga-
bundas bundas
Na vasta fortuna crítica acerca da poesia produzida nos anos de ditadura (1964-85), em especial a produção enfeixada sob o nome de Poesia marginal (com as variantes Poesia jovem, Geração mimeógrafo, Poesia alternativa, Geração desbunde ou simplesmente Poesia 70), é hegemônica a simpatia, sem condescendência, da crítica especializada. Há, claro, vozes dissonantes que não quiseram fazer coro para aquela tantas vezes indecorosa poesia. José Guilherme Merquior afirma, por exemplo, que muitos textos marginais se caracterizam por um “estado lamentável de miserabilismo verbal e penúria intelectual” (1983), estado também apontado no célebre e duríssimo Poesia ruim, sociedade pior, de Iumna Maria Simon e Vinicius Dantas (1987).
Outros ensaístas tentaram entender, contudo, o modus operandi daquela produção, com suas ambições e seus limites, como Heloísa Buarque e Beatriz Vieira, Fernanda Medeiros e Teresa Cabañas, Carlos Alberto M. Pereira e Silviano Santiago, e recentemente Viviana Bosi, com Poesia em risco – itinerários para aportar nos anos 1970 e além (2021), em que, com prudência, diz: “penso que se deva discernir, na poesia dita marginal dos anos 1970, uma produção no geral eufórica e acintosamente direta e outra dúbia, cuja negação do literário se deveu ao sufocamento do espaço social, conduzindo à descrença em relação à própria configuração do poema”. No poemão marginal (Cacaso) as diferenças de linguagem sempre se impuseram, como parece óbvio, considerando as centenas e mesmo milhares de poetas e poemas de então.
Em meio à ebulição do momento a um tempo autoritário e contracultural, um grupo, ainda relativamente desconhecido, ganha vulto e lança em maio de 1980 o Movimento de arte pornô (manifesto feito nas coxas), cujo quinto “artigo” sintetiza: “O Pornopoema vai pôr no poema”. Assinam o Manifesto mais de 20 poetas, entre os quais, Bráulio Tavares, Claufe, Denise Trindade, Flávio Nascimento, Glauco Mattoso, Leila Míccolis, Mano Melo, Tanussi Cardoso, Ulisses Tavares, e ainda os dois organizadores da Antolorgia – arte pornô (1984), Eduardo Kac e Cairo Trindade. É de Cairo o poema Ipanema – voyeur, que saiu na antologia Poesia jovem anos 70 (1982) e depois em seu libreto Liberatura – poesia contemporrânea (1990), sic.
O ondulante poema do Príncipe Pornô é uma versão bem suave do que o próprio Cairo, o Kac e a Gang faziam. Para dois exemplos curtos, lembremos o popular Filosofia, de Eduardo Kac: “pra curar um amor platônico/ só uma trepada homérica”. Sem papas na língua, Cairo não fica atrás: “ter par/ pra/ trepar”. O obsceno, o corpo, a nudez, o despudor, a provocação, o espanto estavam na praça, na praia, no teatro, na rua, nos panfletos e afins. Em Liberatura, com diagramação experimental, ao lado de Voyeur, há o mais radical Inocente fútil: “Não fuma, não bebe, não joga,/ não fede nem cheira; é careta,/ medíocre da classe média,/ cheio de meias medidas,/ meios termos, meio tudo;/ não curte, não vibra e vive/ entre a fuga do pecado/ e o medo da Liberdade;/ é um pobre: não fode/ nem sai de baixo”. Euforia, referencialidade, ambivalência, descrença, sufoco se entrecruzam nos poemas de Cairo, que tem, contudo, e antes, no humor, e não no pornô, sua força maior.
Numa entrevista, em 2015, a Anélia Pietrani, por Eduardo Sterzi e Cairo Trindade, ambos deram uma dimensão bem relevante ao recurso do humor. Sterzi, autor do sofisticado Aleijão, diz: “não acho que humor e reflexão estejam separados. A reflexão sempre passa pelo que podemos chamar de humor”. Cairo, despojado, parece praticar o que o colega de entrevista disse: “Quando digo que a poesia é fodamental, jogo com os diferentes elementos: é fundamental para minha sobrevivência neste mundo, é mental e é foda nos dois sentidos…”. Cairo, que tantas oficinas de poesia ministrou, experimenta o humor em muitas formas, inclusive no canônico soneto, quando, à moda pornô, elabora o inventivo e hilário Son&ton, em decassilábicos versos (tão elípticos quanto evidentes):
– – – – – – – – – unda
– – – – – – – – – erda
– – – – – – – – – orra
– – – – – – – – – ete
– – – – – – – – – alho
– – – – – – – – – ota
– – – – – – – – – elho
– – – – – – – – – oda
– – – – – – – – – ica
– – – – – – – – – u
– – – – – – – – – eta
– – – – – – – – – ica
– – – – – – – – – u
– – – – – – – – – eta
Um leitor antenado há de perceber, à primeira lida, que o poema Ipanema – voyeur de Cairo tem uma configuração isomórfica, procurando encenar “o que no como”, aquilo de que se fala no modo como se fala. No caso, um sujeito que vê pessoas passando, indo ou vindo da praia em trajes “mínimos”. Sendo “a” uma sílaba átona e “T” uma sílaba tônica, teríamos o desenho:
Ipanema – voyeur aaTaaT
de segunda a segunda aaTaaT
gingando gingando aTaaT
pra lá y pra cá aTaaT
em tangas ou sungas aTaaT
vagam vaga– TaT
bundas bundas TaT
A alternância entre os ritmos ternário e binário encena o movimento como um rebolado, “gingando gingando”. A diminuição do tamanho (métrico) dos versos pode dar a ver, insinuar que o/a passante se afasta: 6 5 5 5 3 3. A cadência se reforça imensamente se percebemos que todos os versos se sustentam aos pares: segUnda/segUnda; gingAndo/gingAndo; pra lÁ/pra cÁ; tANgas/sUNgas; vAgam/vAga-; bUndas/bUndas. A nasalização hegemônica colabora para a sensação de movimento pendular. Ademais, dos seis versos, em quatro o fonema /g/ se impõe, aparecendo oito vezes, e como que marcando, pela força da oclusão, o passo da pessoa: seGunda seGunda ginGando ginGando tanGas sunGas vaGam vaGa. As rimas internas se reiteram em segunda / sungas / bundas; e gingando / cá / vaga.
Esse voyeur tropical, em seu ócio macunaimicamente criativo, se delicia com a visão. No posfácio que fez para Poezya, que porra é essa? (2011), Marcus Quiroga diz com precisão que nos poemas de Cairo “reconhecemos que prevalece o espírito do carpe diem, da permanente celebração da vida e do sentimento hedonista”, reflexão compartilhada por Weslei Cândido, em A celebração da vida na poesia de Cairo de Assis Trindade (revista Texto Poético n. 18, 2015). Na orelha de Poematemagia (2001), entre comentários elogiosos de Victor Giudice, Olga Savary, Eduardo Guerreiro, Álvaro de Sá, há um quase-haicai de Carlito Azevedo que capta esse espírito: “coisa espantosa: nos versos do cairo a poesia portugoza”.
Os fonemas predominantemente nasais remetem ao referente “bunda”, a seu formato pictórico, ao próprio movimento das bandas da bunda, como visualizou Drummond no poema A bunda, que engraçada: “A bunda são duas luas gêmeas/ em rotundo meneio”. O curto poema de Cairo se concentra em poucos sons e se constrói em ritmo que mimetiza o caminhar de alguém, observado por outrem, na Ipanema de Vinicius e Tom, e da menina “que vem e que passa/ num doce balanço/ a caminho do mar”. Também, dizem, Oscar Niemeyer teria homenageado “a bunda” com aquele baita e curvilíneo “M” em plena Praça da Apoteose no Sambódromo carioca. Com o que parece concordar Marcus Freitas em seu verso “Oh, praça onde danço em apoteose!”, no Soneto da bunda branca — analisado no Rascunho nº 258, de outubro de 2021.
A canção de Tom e Vinicius, Garota de Ipanema, foi composta em homenagem a uma adolescente que, nos anos 1960, encantou a dupla. Conforme relata Ruy Castro, em Chega de saudade – a história e as histórias da bossa nova (1990), “quanto à famosa garota, é verdade que foi no Veloso [atual bar Garota de Ipanema], no inverno de 1962, que Tom e Vinicius a viram passar. Não uma, mas inúmeras vezes, e nem sempre a caminho do mar, mas a caminho também do colégio, da costureira e até do dentista”. Ipanema brilhava, como um dos points nos 70 — recordem-se as dunas da Gal (imagem que, aliás, em inevitável trocadilho, se coaduna ao texto de Cairo). Feito o bloco na rua de Sérgio Sampaio, que queria “gingar, pra dar e vender”, no poema de Cairo estão, gingando gingando, em jogo o ócio, o prazer, o corpo erotizado, o desbunde em tangas ou sungas: masculino, feminino e plural. Era a hora da micropolítica do corpo.
Como que jorrando pela areia depois de percorrer a superfície marítima, os versos finais (vagam vaga-/ bundas bundas), com um inusitado enjambement, reduplicam o efeito da nasalização e do movimento, fechando o poema e promovendo uma simultânea fusão & separação entre a onda (vaga-) e as bundas — que andam, ociosas, errantes, vadias, “na cadência mimosa, no milagre/ de ser duas em uma, plenamente” (Drummond). Ainda, arrematando, o “y” do debussyano verso bandeiriano pra lá y pra cá vem ressoar no passo do seguinte, gardeliano, pela possível analogia entre “tanga” y “tango”. De todo modo, paira no poema uma alusão à famosa tanga de crochê que o ex-exilado Fernando Gabeira usava na praia de Ipanema, desde sua volta.
No excelente artigo O Movimento de arte pornô: a aventura de uma vanguarda nos anos 80 (2013), Eduardo Kac faz uma trajetória do Pornismo, de 1980 a 1982, comenta vários de seus radicais Pornogramas, sintetiza algo da história da poesia pornográfica no Brasil e no mundo, e finaliza pensando a herança do movimento, quando “um jovem poeta rebelde e seu grupo se propuseram escrever um novo tipo de poesia e provocar o nascimento de um novo tipo de arte — para, com ela, dar origem a uma era de maior liberdade social e pessoal”. De lá pra cá, poemas como esse de Cairo Trindade parecem pueris, dóceis pirulitos, se comparados a certas propagandas de TV ou cenas de novela em horário nobre. Afinal, se ficar vendo vagando bundas de um lado para o outro pode caracterizar um ato hostil, invasivo, chegando às raias do assédio (se, por exemplo, o sujeito observador sai do voyeurismo e aborda a pessoa observada), compor um poema que fica elucubrando a forma do balanço da bunda é, ao cabo, pôr no poema aquilo que se quer: a língua pra fora, sem medo da liberdade, do gozo e da alegria — a santíssima trindade de Cairo (1946-2019).