(H)ojeriza, de Leila Míccolis

O tom desbocado e despudorado e o diálogo franco com o leitor são marcas da poesia de Leila Míccolis
Leila Míccolis por José Luiz Tahan
27/05/2016

Você sabe o que fazer
com a anestesia
a assepsia
a asfixia
a idolatria
a covardia
a demagogia
a dicotomia
a tirania
a vilania
a diplomacia
a regalia
a mordomia
a patifaria
a hipocrisia?

Enfia…

Este poema de Leila Míccolis se encontra na segunda parte dos inéditos que compõem Desfamiliares (2013), livro que contém a poesia completa da autora carioca, abrangendo quase cinco décadas de produção (1965-2012). Nele, estampam-se alguns traços que acompanham os versos de Leila ao longo desse tempo: a clareza, o humor, a postura crítica, a linguagem referencial, o gosto do grand finale, o tom desbocado e despudorado, o diálogo franco com o leitor, o chiste, o chulo, a insolência. O próprio poema pode ser lido como uma síntese de temas que, nessas décadas, ela vem mapeando: covardia, demagogia, tirania, hipocrisia e outras formas substantivas de comportamento que — no poema terminadas em “ia” — constituem um conjunto que causa intensa aversão à poeta, como o título trocadilhesco já antecipa: “(H)ojeriza”. O advérbio “hoje” do título, acoplado à “ojeriza”, em poema e livro recente, não deixa dúvida de que tal náusea advém do nosso tempo presente e a ele se dirige.

O desabafo final destemperado, mas nada intempestivo, pode provocar o riso, pois de repente aparece um verbo — “Enfia” —, em monóstico, que arremata uma sequência de 14 substantivos com rima em “ia”, seguido de capciosas reticências (…), induzindo o leitor a completar o que se omite com expressão bastante popular. A primeira acepção que o Dicionário Houaiss dá ao verbo enfiar — “fazer entrar (fio) em orifício” — faz perceber que o xingamento obsceno “enfia no cu”, deveras ofensivo, se sustenta em sua composição mórfica “en- + fio + -ar”. Assim, a despeito da agressividade explícita, há certa sabedoria (ainda que “politicamente incorreta” e indecorosa!) no xingamento, que, no poema, se manifesta, ironicamente elíptico, com força e sem culpa.

Em curioso e provocador artigo de 1956, Sinais de pontuação, publicado em Notas de literatura I (2003), Theodor Adorno discorre acerca dos sentidos filosóficos que sustentam o uso de vários dos sinais de pontuação (vírgula, travessão, exclamação, interrogação etc.), sentido filosófico que se articula com o sentido propriamente gramatical, escapando-se-lhe. Do sinal de exclamação, por exemplo, dirá que “se assemelha a um ameaçador dedo em riste”. Mas, para a análise de (H)ojeriza, interessa o que o autor de Dialética negativa afirmou sobre os “três pontinhos” (que encerram o poema de Míccolis): “As reticências, que eram o meio preferido, na época do Impressionismo comercializado como ‘atmosfera’, para se deixar uma frase aberta a vários sentidos, sugerem a infinitude de pensamento e associação, justamente o que falta aos escritores de segunda categoria, que se contentam em simular essa infinitude por meio do sinal gráfico”. Noutras palavras, o filósofo ironiza o desejo de certos escritores de, com o uso das reticências, sugerir uma “infinitude de pensamento e associação”, mas o tiro sai pela culatra, pois as reticências encobririam exatamente a carência ou ausência de tal infinitude. O poema de Leila, ao fugir de tal nobre pretensão, alcança efeito hilário imediato, já que o leitor — aquele “Você” que abre o poema — sabe com precisão como preencher as reticências, que insinuam o já sabido, bem distante de querer deixar a “frase aberta a vários sentidos”. As reticências aqui não simulam a omissão ou elipse de nada grandioso, misterioso, poético, metafísico; na contramão, apenas encenam a “hipocrisia” de banir os ditos palavrões da linguagem poética, como se a falta de decoro se resumisse ao uso de certas bocagens e turpilóquios, e não em regalias, mordomias e vilanias com as quais nos deparamos dia a dia.

A poesia brasileira de hoje, com frequência bem comportada e voltada a devaneios narcísicos e de metalinguagem, anda precisando de mais doses de culminante desobediência.

Leila Míccolis, escritora contemporaníssima, é costumeiramente vinculada à geração marginal, dados o escracho, o coloquial, o deboche que marcam sua obra, nesse sentido herdeira de uma tradição que inclui tropicalistas, modernistas, românticos e mesmo barrocos, como, para citar exemplos pontuais, Gregório de Matos (de furtar e foder e do Pica-flor), Bernardo Guimarães (d’O elixir do pajé e d’A origem do mênstruo), Oswald de Andrade (de Serafim Ponte Grande e o Primeiro contato de Serafim e a malícia: “A-e-i-o-u / Ba-be-bi-bo-bu / Ca-ce-ci-co-cu”) e Os Mutantes (de Sabotagem: “Eu vou sabotar/ Vou casar com ele/ Vou trepar na escada/ Pra pintar seu nome no céu/ Sabotagem!/ Sabotagem!/ Sabotagem!/ Eu quero que você se… top top top UH!”). Entre os poetas atuais, o minúsculo palavrão que o poema de Leila não precisou dizer aparece, entre outros, na aparentemente pudica Adélia Prado (“De tal ordem é e tão precioso/ o que devo dizer-lhes/ que não posso guardá-lo/ sem que me oprima a sensação de um roubo:/ cu é lindo!/ Fazei o que puderdes com esta dádiva”), assim como no poema sagrado-profano de Waldo Motta: CéU. Acompanhada dessa tribo rebelde e marginal, Leila se alinha a uma contra-dicção, bem no espírito do título de um de seus livros, a antologia O bom filho a casa torra.

A repetição dos 14 substantivos terminados em “ia”, todos paroxítonos, confere ao poema um ritmo de ladainha, que só se ameaça quebrar quando, visualmente, se oferece uma nova estrofe. Esta, composta de um único verbo no modo imperativo que mantém no entanto a rima em “ia”, produz um curto-circuito que gera o cômico: é um verbo que quebra a sequência da classe gramatical repetida à exaustão, mas mantém a sonoridade da cantilena em “ia” e, no entanto, ainda, surpreende, pelo aspecto semântico, quando conclui o poema respondendo “Enfia…” ao interlocutor, sutilmente — ou nem tanto — acusado de cúmplice dos comportamentos catalogados. Este fecho parece afirmar que tais comportamentos, a despeito da diferença conceitual entre eles, mais se assemelham que divergem, e assim a lengalenga sonora das 14 rimas em “ia” — reforçada pelo fato de serem todos termos femininos, gerando igualmente 14 vezes o artigo “a” — parece reunir tudo em um só pacote, facilitando, ironicamente, o descarte de todos num só movimento, gesto, decisão e verbo: enfia.

Como este (H)ojeriza, na obra de Leila Míccolis são inúmeros os poemas que testemunham o descaso, a exploração, a miséria, a violência, a opressão, a submissão. É uma poesia que, definitivamente, não se envergonha de seguir engajada, atenta à “vibração democrática que irradia daquela palavra [“engajamento”], cuja parcialidade pela esquerda se deve à repercussão generosa de Sartre”, aponta Roberto Schwarz em Sequências brasileiras (1999). Com tal atitude estética e ideológica, que causa tanta… ojeriza em certos meios acadêmicos, Leila vai, sob o céu de Maricá, fazendo das suas, como Dose (“Queres saber o que ocorre?/ O nosso amor, de tão sóbrio,/ virou um porre.”) e Democracia (“A índia enrabada,/ a negra explorada,/ a branca fodida,/ direitos iguais.”). A poesia brasileira de hoje, com frequência bem comportada e voltada a devaneios narcísicos e de metalinguagem, anda precisando de mais doses de culminante desobediência. Sem ser receita, o poema lista alguns sintomas nefastos que assolam nosso tempo. Cabe a cada um, cabe a “Você” o ojerizar-se, sem agá.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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