Chega-se, quem sabe, até o limite;
uns dizem: volte; outros dizem: prossiga.
Só nossas dores que nos dão palpite,
só nossa solidão nos é amiga.
Amigos de ontem jogam n’outro time,
a rua deserta só nos castiga.
Não há nem fé que nesta hora acredite
ser possível viver nesta pocilga.
Os perdedores não contam moedas;
contar já é somar milhões de cerdas,
com sangue, em uma lâmina afiada.
Melhor deixar… jogar, no chão, a toalha,
secar o hematoma, que já não talha,
e descrer que haverá outra jornada.
O soneto Hematoma temporário combina bem com o título do livro no qual se encontra, Acre ácido azedo, publicado em 2015, o último do poeta mineiro Marcelo Dolabela, antes de seu falecimento em janeiro de 2020. Todo o livro é atravessado por um sentimento melancólico de tristeza, abandono, solidão, amargor. Algumas páginas antes, o soneto Hematoma, todo rimado em “essa/eça”, traz dois versos contundentes: “tudo o que eu vivi a ninguém interessa” e “entre aquela e esta, eu prefiro essa”. Nesse achado, Dolabela deixa claro que há valores (a morte, por exemplo, figurada na ambivalência de “essa”) que tentam driblar a onipotência da linguagem, a partir da irônica e preciosista indefinição entre um pronome e outro. O primeiro verso do primeiro poema do livro ilumina o conflito: “Cavo minha cova com arte e carícia”. A morte e a poesia são as protagonistas de Acre ácido azedo.
No entanto, quem conhece um pouco da vasta obra de Marcelo Dolabela (são dezenas de livros, afora suas múltiplas atividades no meio cultural) sabe de sua verve picante, engraçada, iconoclástica. (Meu amigo mineirixaba Raimundo Carvalho, também poeta de primeira, foi quem me apresentou a poesia de Dolabela.) Sobretudo nos poemas curtos, Dolabela conseguiu concentrar — oriundo que era da melhor tradição marginal setentista — camadas de sentidos que dão gozo e alegria a leitores desarmados: À maneira de Odair José: “Se ela é meu vício/ e só me dá serviço/ ninguém tem nada com isso/// Táxi,/ siga aquele tóxico.”; Solidão no 14: “não tenho vizinho/ não tenho café/ meu passarinho/ me chama: robin crusoé”; “O futuro em ruína/ brinda/ o ainda”. Seu surpreendente livro-objeto Haicaixas em si já solicita o riso, pois o trocadilho morfossonoro se realiza diante dos olhos, para quem tem nas mãos a caixa de fósforos que, contudo, em vez de palitos, carrega haicais.
Em Hematoma temporário, o poeta opta por um coletivo “nós”, como a dizer que sua solidão encontra na solidão de outros uma companhia. (E todo leitor, em seu virtual anonimato, não será uma projeção fantasmagórica daquela “falta que ama”, para lembrar expressão de outro mineiro?) As rimas seguidas em “i i i i/ i i i i/ e e a/ a a a” parecem encerrar a “solidão amiga” de quem se pensa por meio de versos. A poesia é, para poetas como Dolabela, espaço de pensamento acerca de si, do mundo, da vida, dos limites. O exercício necessário para a elaboração de um soneto confirma essa vontade de reflexão, que, dialeticamente, se recusa a ficar refém da forma. A transgressão a acentos, pausas, cesuras, hemistíquios rígidos, os itálicos que rasuram o lugar do “eu lírico” e a alternância discreta entre rimas toantes e consoantes mostram que, mesmo sob a capa paralisante do soneto em decassílabo, prevalece a ideia, a força, o pensamento, o insight – que brilham em poemas como “Samba da vanguarda” e “Os ídolos morrem”. Nesses poemas, se explicita o que Adorno chamou, em Teoria estética, de “melancolia da forma”: “A forma procura fazer falar o pormenor através do todo”. A aparente harmonia que a estabilidade do soneto oferece é quebrada não só pelo teor do que ele diz, mas pelas fissuras e transgressões internas.
Mais do que o fracasso (lugar-comum de sua poética), aqui em “Hematoma temporário” o tema transversal é a desilusão. Os amigos (certos amigos) já não são mais parceiros; a rua – espaço de circulação – se faz vazia; nem adianta apelar para a fé, pois a “pocilga” (habitat de porcos) tomou conta de tudo. A imagem lancinante de “milhões de cerdas, / com sangue, em uma lâmina afiada” sintetiza o sentimento extremamente doloroso que o poema desenha. A desilusão se abate sobre o lutador, que não crê mais em novas manhãs, então joga a toalha, percebendo que o hematoma “que já não talha”, a despeito do “temporário” no título, permanecerá. Em Acre ácido azedo, a dor da existência pontifica, a todo momento, inclusive nos dezessete primorosos sonetos em torno de Belo Horizonte.
Não é fácil (a poetas ou a qualquer pessoa de sensibilidade à flor da pele) conviver com tal sentimento – de desilusão – que “Hematoma temporário” explicita. Apesar de conhecida e reconhecida em alguns círculos literários, a obra de Marcelo Dolabela precisa ainda ganhar novos ares, mais e mais estudos. Ao contrário do fracasso sobre o qual tanto escreveu, como no saboroso “História universal do Fracasso” ou no irônico “Autobiografia lapidar” (“que um dia eu receba / da morte o abraço / e ouça o mote: / chega de fracasso”), a instigante e provocadora produção do mineiro de Lajinha está aí para ser abraçada, decifrada e fruída.
A desilusão do poeta sempre lhe serviu de matéria, que, debulhada, deu em poema, como no hilário “Os problemas do paideuma”: “até nosso paideuma / provoca celeuma / dizemos: borges / eles entendem: / j. g. de araújo jorge“. Ou seja, o poeta joga às escâncaras suas pérolas. Não à toa abre sua antologia Lorem ipsus com o engenhoso “poesia / até com uma costela / poesia / confia / em / quem / crema lodo balela”. No anagrama, em forma visual de epitáfio, seu rosiano recado do morro: onde se lê “j. g. de araújo jorge”, pode ser que (h)aja ali um “borges”; onde se vê apenas “balela e lodo”, se esconde a manha do poeta que assina com “crema” o nome “marce [lo/do…]” e um desejo de ver a obra (“carme[m]”) desvelada.
Se hematoma é, também, em âmbito literal e metafórico, uma mancha no corpo que, aos poucos, desvanece, a poesia de Marcelo Dolabela (crema lodo balela) vem manchando com cores bem fortes, há décadas, o corpo da poesia brasileira. Cabe, sobretudo, à crítica, examinar o que nela não é temporário, para que o hematoma, o conjunto da obra, não se desvaneça – entre esta e aquela – em vão. Se a sua última obra, Acre ácido azedo, dá a ver tantos sinais de desilusão, é porque o poeta quis dar forma à melancolia, à maneira de Caetano: “destino eu faço não peço / tenho direito ao avesso / botei todos os fracassos / nas paradas de sucessos”. O sucesso, Marcelo, para os poetas é – você soube e fez – ir “até o limite”.
(Em memória, também, de Cairo Trindade & Jorge Salomão.)