Fotografia
De cócoras
como quem ora
ou pragueja
sob a marquise
a mulher
Oculta
pelos caixotes
embriagada
entre sobras de repolho
Pela calçada em declive
cachorros lambem o chorume
Penso na foto
franzindo a testa
solidário
imprestável
O poema Fotografia faz parte de Baque, de Fabio Weintraub. Publicado em 2007, o livro reúne poemas que, como antecipa o título algo onomatopaico, falam de quedas, dissabores, reveses, sustos. O primeiro verso de Baque, o poema, parece sintetizar o tom geral da obra: um “buquê de sequelas”. Se buquê induz o pensamento a se cercar de flores, logo a seguir sequela rompe o rápido bem-estar, impondo a imagem triste da anomalia, do indesejado, do trauma.
Esse tom também se testemunha em Fotografia: o sujeito se depara com uma cena que o toca: uma mulher em condições bem precárias, sob uma marquise, dividindo o espaço com cães. O sentimento se mostra, no mínimo, conflituoso: a simpatia e a ternura são, de imediato, atravessadas pela força da impotência e da frustração. O conflito se visualiza nos versos finais em que uma palavra se opõe à outra (como o espelho dizendo à rainha de sua feiura): “solidário/// imprestável”.
A fotografia em que o poeta pensa (“Penso na foto”) se encontra à vista de todos: é o poema Fotografia. Roland Barthes fala, em A câmara clara, do termo punctum, aquele ponto da foto que magnetiza a atenção, que fere e punge, que se expande naquele que olha. O punctum é “também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno corte — e também lance de dados”. Em poema tão denso e condensado, não seria exagero afirmar que todo ele é um grande punctum, que pede um olhar de detalhe, que transite entre as estrofes, versos, palavras, sílabas.
Cinco estrofes sustentam a arquitetura visual do poema: em movimento descendente (como a calçada “em declive”), temos uma primeira estrofe com 5 versos, depois uma com 4, mais 2 estrofes com 2 versos e uma última estrofe também com 2 versos, mas “fraturada”: o dístico, como já se apontou, se compõe apenas de duas palavras que, já espacialmente, se contradizem: a vontade de solidariedade esbarra e para numa percepção de inutilidade. O sentido antitético dos adjetivos — solidário/imprestável — se reforça visualmente, quando postos em oposição recíproca. Vindo do mesmo sujeito, o sentimento conflituoso se mistura, se atrita e se estreita, haja vista a semelhança entre os termos, paroxítonos e com acentuada rima em /a/.
A escansão dos versos auxilia no entendimento da obra. Estrofe a estrofe, temos a sequência rítmica: 2/4/3/4/3 — 2/4/4/7 — 7/7 (ou 7/8) — 4/4 — 3/3. Vê-se que os versos se alongam até o núcleo do poema e retornam, reduzidos, ao tamanho do início. Mas o paralelismo é bastante visível: os primeiros versos das duas estrofes iniciais possuem 2 sílabas poéticas; na 1ª estrofe, como se ajustando o foco da câmara, os versos variam sutilmente em sua extensão; nas demais estrofes, a simetria se impõe (considerada a tensão possível no verso 11). De modo semelhante, as rimas — todas toantes — se espalham ao longo do curto poema, entre “cócoras / ora / caixotes / (sobras) / repolho / foto ”, “pragueja / mulher / testa”, “marquise / declive”, “oculta / chorume”, “embriagada / solidário / imprestável”.
O que toda essa construída arquitetura indicia? Que, a despeito da comovente e deplorável cena, ao poeta caberá captar, esteticamente, o que se passa a seus olhos. (Sim, como cidadãos, aos poetas e aos leitores cabe também uma ação prática, em perspectiva humanista, no sentido de uma transformação real, e se possível rápida, desse quadro cotidiano de indigência, sobretudo urbana, em que sobrevivem — muitas vezes, não — milhares e milhões de pessoas no Brasil e no mundo.)
Neste poema, para além da estrutura visual de estrofes e versos, o aspecto fanopaico impacta. De início, vemos “a mulher” (o artigo definido singulariza em uma pessoa um problema que, se é intransferivelmente dela, é também coletivo) em posição “de cócoras”, o que pode simular uma posição subalternizada (mais à frente validada, se em cotejo com a presença dos “cachorros”). A certa distância, não se sabe se a mulher “ora / ou pragueja”, alternativa que mais parece rasurar ou eliminar a diferença entre uma ação ou outra: dirigir-se a Deus ou xingar dá no mesmo nada. Estando “sob a marquise”, a ideia de tratar-se de uma pessoa sem moradia, sem teto, abandonada, descartada do sistema capitalista produtivo, se fixa.
A segunda estrofe confirma o estado bastante precário da mulher, agachada entre caixotes, que, se agora lhe servem de abrigo, antes provavelmente guardavam repolhos, dos quais apenas restam sobras. O detrito, o dejeto, o lixo comprovam que persiste, sim, ao contrário do que querem alguns, uma sociedade brutalmente cindida em classes: os que têm e os que não, os que têm de sobra e os que vivem da sobra. A precariedade e a indigência se amplificam quando, sem opções, o ser humano é levado a uma situação de depauperação psicofísica e alienação cultural e política. A condição de “embriagada” da mulher a deixa ainda mais desprotegida, entregue à sorte (ao azar) da rua e de suas inúmeras formas de violência. (Sua embriaguez, aqui, em nada se confunde com a filosófica “embriaguez dionisíaca”, lembrando Nietzsche, que supõe uma ruptura com valores normativos e opressores.)
Sendo chorume o “resíduo líquido formado a partir da decomposição de matéria orgânica presente no lixo” (Houaiss), o que se vê — e o poeta registra em sua foto verbal — na terceira estrofe é a confirmação da degradação humana: mulher, sobras de repolho, cachorro, chorume partilham, sem aparente choque, o mesmo ambiente inóspito, no entanto já naturalizado aos olhos dessensibilizados da população (que tem teto e repolhos frescos). Mas o poeta não: o poeta — e ora não se pretende nenhuma idealização ou sublimação do artista — se comove.
Comove-se e pensa na situação de que é testemunha ocular. Insere-se nela, em primeira pessoa: “Penso”. O gesto estetizante e racional sobrevém: pensa “na foto / franzindo a testa”. Há dúvida e conflito no gesto, posto que franzir é produzir uma dobra: ao seu alcance, talvez, ali, de imediato, caiba um ato de solidariedade, pontual, àquela mulher (real ou imaginada, pouco importa); a sensação de que tal gesto terá alcance curto, provisório, efêmero esvazia a vontade, deixando em seu lugar, mais forte (é a última palavra do poema: “imprestável”!), um sentimento melancólico de impotência. Movido pela comoção, pelo baque, o poema se torna o espaço ético possível, abstrato e prático, de resistência.
Este poema compacto de Fabio Weintraub aciona muitas tensões, como as relações sempre fugidias entre ética e estética, entre lírica e sociedade, entre teoria e práxis, entre sujeito e objeto. Theodor Adorno, em Dialética negativa, diz: “O objeto só pode ser pensado por meio do sujeito, mas sempre se mantém como um outro diante dele; o sujeito, contudo, segundo sua própria constituição, também é antecipadamente objeto. Não é possível abstrair o objeto do sujeito, nem mesmo enquanto ideia; mas é possível esvaziar o sujeito do objeto”. Se tomamos a cena toda (mulher, marquise, caixotes, repolho, calçada, cachorros, chorume) como objeto e o poeta como sujeito que vê e pensa, o poema será o espaço em que aquelas tensões — ética, estética; lírica, sociedade; teoria, práxis; objeto, sujeito — se encontram e em que os antagonismos da vida real retornam sob forma artística. Um poema (este ou qualquer poema) não resolve o problema da moradia, da miséria e da indigência de ninguém. Mas, ao “foto-grafar” o problema e trazê-lo aos olhos esquecidos de todos nós, presta, sim, um ato de digna e humana solidariedade.