Filosofia, de Eduardo Kac

O poema se assemelha a uma piada, mas epigramática, meteórica, que fala de algo (amor, sexo, corpo) de modo explícito, descolado, iconoclasta
O poeta e artista plástico Eduardo Kac, autor de “Filosofia”
01/08/2024

pra curar amor platônico
só uma trepada homérica

Esse pornodístico é um clássico (para não dizer, ironicamente, um cânone) da poesia marginal. Elaborado em 1980 e publicado em 1981 no livro Nabunada não vaidinha?, cujo trocadilhesco título funciona como cartão de visita, o poema reaparece aqui e ali em antologias, camisas, cartazes. Provavelmente pelo seu teor radical, abusado, debochado, antirromântico, apesar de sua fama entre poetas e leitores, o poema tem ficado à margem de ensaios, pesquisas, estudos, tanto quanto — no Brasil! — seu autor, Eduardo Kac (carioca que, desde 1989, reside nos Estados Unidos).

A Filosofia do irreverente jovem Kac, então com 18 anos, a despeito do favorável clima contracultural, antecipa de certo modo o espírito verdadeiramente radical, inventivo e experimental do artista que se tornou, de sólido reconhecimento internacional, com muitos prêmios. Diria Nietzsche: tornou-se o que já era. Uma rápida visita à sua página oficial (ekac.org), em especial à aba https://www.ekac.org/bio2pg.html, surpreende a tantos quantos não conhecem seu trabalho: “A carreira singular e altamente influente de Kac abrange poesia, performance, desenho, gravura, fotografia, livros de artista, trabalhos digitais e online iniciais, holografia, telepresença, bioarte e arte espacial”. É, de fato, espantosa a diversidade de engenhos e linguagens de que o poeta-artista lança mão ao longo de sua carreira, agora em plena maturidade.

O poema em pauta envolve quem com ele simpatiza (porque decerto há quem, como acontece, faça — careta — o sinal da cruz) de um só golpe: sendo curto, o olho capta intuitivamente as simetrias de que se compõe. O riso se produz de imediato, porque o poema se assemelha a uma piada, mas epigramática, meteórica, que fala de algo (amor, sexo, corpo) de modo explícito, descolado, iconoclasta — misturando o popular-coloquial e o intelectual-erudito. Tudo muito rápido, feito um insight: a expectativa do primeiro verso, “pra curar amor platônico”, bem comportado, domesticado, com tom de receita, se espatifa no segundo, “só uma trepada homérica”, quando nos damos conta da armadilha: o verso de abertura era só uma escada para a queda — queda, no caso, feita de riso e reflexão.

Antes mesmo que o leitor avance para uma “interpretação” da Filosofia à vista, o ritmo e os sons do poema já invadiram os ouvidos e seduziram os olhos:

a) o poema se desenha qual um quadro, que vemos de uma só vez: dois versos, quatro palavras em cada, ambos heptassílabos;

b) a força das proparoxítonas se impõe: “platônico” e “homérica” não rimam, em termos tradicionais, mas a ênfase na antepenúltima sílaba marca com intensidade a leitura, ainda que silenciosa;

c) o efeito das sílabas átonas finais (platôNICO; homéRICA) após as tônicas (tô; mé) também se faz sentir, como se, feito reticências, estivesse alongando as sete sílabas poéticas em nove;

d) o fato de serem setissílabos os versos faz com que as tônicas internas dialoguem: no primeiro verso as sílabas fortes e subtônicas caem em 1, 3, 5 e 7; no segundo, caem em 1, 2, 5 e 7; ou seja, há um ritmo bem regular, conforme o esquema:

PRA cuRAR aMOR plaTÔnico

SÓ Uma trePAda_hoMÉrica

e) as tônicas repetidas do primeiro verso — A, A, O, O — ecoam certa harmonia do “amor platônico”, que se deseja e idealiza;

f) as tônicas variadas do segundo verso — O, U, A, E — destoam, confirmando a quebra de postura e de comportamento para que a “cura” se faça;

g) os heptassílabos só são possíveis a partir de dois efeitos: dar ao “amor platônico” caráter universal, e assim dispensar o artigo “um”, que tornaria o verso um octossílabo; dar à cura, isto é, à “trepada homérica” um caráter individual, e assim necessitar do artigo “uma”, sem o qual o verso seria um pentassílabo;

h) curiosamente, a única elisão no dístico ocorre entre “trepada” e “homérica”, fazendo a justaposição “trepadomérica”, o que lembra poema do amigo Cairo Trindade: “ter par / pra / trepar”;

i) efeitos aliterativos atravessam o curtíssimo poema, com destaque para a presença forte de fonemas bilabiais e, nestes, o quiasmo nos sintagmas finais, quando o MOR (de amor) se cruza com o MÉ (de homérica), e o PLA (de platônico) se “transforma” no PA (de trepada).

Envolvido por essa estrutura sintático-sonora, o leitor vai tateando outros caminhos, em busca de sentidos. Tudo muito rápido, repetimos. Em um segundo, o nobre vocábulo “amor” dá lugar ao chulo termo “trepada”, para o qual o pudibundo dicionário Houaiss atribui as acepções de “ato sexual; cópula, coito”. Nenhuma dessas comporta o apelo cômico e popular que o termo “trepada” possui, como algo mais intenso, carnal, libidinoso. (A letra da canção Amor e sexo, de Arnaldo Jabor, exemplifica bem essa dicotomia.) Ademais, não é um amor qualquer, nem uma trepada qualquer, e aí o poema foi certeiro na produção do humor, ao fazer a rima com palavras proparoxítonas cujos sentidos, a partir do contexto do próprio poema, se mostram antitéticos: o platônico (amor) e a homérica (trepada). Não à toa, na sutil relação entre som e sentido, o /o/ fechado — platÔnico — diz de algo comedido, e o /e/ aberto — homÉrica — diz de algo desmesurado. Na verdade, vimos, em concepção tradicional, platônico nem rima mesmo com homérica.

Forças de calibre diferente
Não rima também em termos semânticos. Quando o poeta opõe esses termos, em forma adjetiva, sabe que está colocando em conflito forças de calibre diferente. Octavio Paz, em A dupla chama, sintetiza bem a dialética ascensional do filósofo grego quanto a Eros: Platão

vê o amor como uma escala: embaixo, o amor a um corpo belo; em seguida, a beleza de muitos corpos; depois, a própria beleza; mais tarde, a alma virtuosa; por fim, a beleza incorpórea. Se o amor à beleza é inseparável do desejo de imortalidade, como não participar dela pela contemplação das formas eternas?

Por platônico, ou especificamente amor platônico, pois, as pessoas entendem que é um amor idealizado, distante, romântico, secreto, casto.

Esse comedimento que se vincula ao sintagma “amor platônico” se pulveriza com a expressão “trepada homérica”. Presumível autor dos épicos Ilíada e Odisseia, obras grandiosas e colossais, de Homero, substantivo, produziu-se o adjetivo “homérico”, significando extraordinário, fantástico, desmedido, extraordinário, inesquecível e afins. Popular é o dito “porre homérico” (há quem diga que tal expressão viria do episódio em que o esperto Ulisses embriaga o gigante Polifemo). Assim, trepada homérica passa a ser aquela em que, voltando ao “sexo” da canção de Jabor, a cena erótica é selva, invasão, animal, carnaval. Na escala platônica, a “trepada” estaria no primeiro degrau, porque quer o corpo; enquanto o amor pleno estaria degraus acima, mais perto de uma “ideia”.

Desse modo, fica claro perceber por que o poema entende que o “amor platônico” é uma doença, que deve se “curar”. E o remédio é pôr o corpo em jogo — com a intensidade que vai do erótico ao pornográfico, do amor à trepada, do contido ao explícito, do comedido ao desmesurado, do platônico ao homérico, do romântico ao marginal…. O poema de Kac, distinto da tradição fescenina, não explora o aspecto fanopaico, isto é, não cria “imagens” para o prazer voyeurista do leitor (à maneira dos vídeos pornôs, por exemplo, ou dos nove pornogramas de Porneia, com nu explícito). O poema Filosofia se compõe de oito palavras que, em dois versos isométricos, engendra humor e riso ao entrecruzar conceitos conflitantes, palavras que chamam a atenção, entre elas um dito palavrão, de conhecimento e uso geral: trepada.

O título Filosofia remete, óbvia e ironicamente, a Platão, mas fala mais do comportamento de uma geração contracultural, herdeira de beats e hippies, que, articulando corpo e linguagem, quis “pôr no poema” o que pensava e fazia. Em Porneia (2022), bilíngue (“to cure a platonic love/ only a homeric fuck”), Eduardo Kac reúne parte de sua obra que se vincula ao Movimento de Arte Pornô (1980-82), com poemas visuais, caligramáticos, fotos e que tais, muito mais ousados, abusados, radicais, explícitos, perto dos quais Filosofia é pinto.

Nos anos 1980, sabemos, o Brasil começava a sair de uma ditadura autoritária, cruel, repressora, assassina. Kac e a Gang aprontaram e desafiaram o Poder, com arte que se engajava no incomodar caretas e censores. Fizeram da poesia uma “overgoze” (Kac). Fizeram até sonetos, mas saiu Someto (Kac). Fizeram uma poesia corajosa, audaciosa, do tipo que hoje muito pouco se vê. Como esse impressionante e politizado Vestibular (Kac):

( ) Foda          ( ) Poder

( ) Caralho     ( ) Tortura

( ) Buceta        ( ) Fome

( ) Cu               ( ) Exploração

( ) Chupada    ( ) Censura

Contra o que você protesta?

Assinale com um X a resposta certa.

Incisivo, o poema acima explicita o choque que algumas palavras (e, por extensão, atitudes e ideologias) provocam, por conta de posturas e costumes tradicionais e conservadores, enquanto questões efetivamente graves, relativas à vida, à civilidade, à sobrevivência, à liberdade ficam à margem. A obra de Eduardo Kac, desde jovem, vai de encontro à burrice, ao estereótipo, à caretice, à mesmice, à hipocrisia.

Em seu Porneia, Kac dá algumas dicas sobre sua obra. Em relação a Filosofia, diz:

Poema grito divulgado na época em camisetas, adesivos e cartões postais, além de performances, livros, periódicos e outros formatos. Pelo ritmo, pelo humor, pela concisão e pela veracidade de sua mensagem, essa obra tornou-se amplamente citada, recitada e parodiada, a ponto de evoluir para um poema popular no Brasil.

De fato, o poema de Kac foi e é um exemplo de como a poesia e a arte traduzem a um tempo aquilo que um sujeito pode elaborar em termos formais e também aquilo que a história pede, e mesmo exige. O jovem Kac desnuda, com veracidade, em seus versos e em suas performances um país bloqueado. De lá para cá, o Brasil mudou — Eduardo Kac mudou, mudou-se. A obra madura do artista mantém, contudo, décadas depois, a filosofia do poema: curar o que está doente (seja o corpo, seja a própria arte).

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

Rascunho