“[Eu gostaria hoje…]”, de Raphael Martinelli

O sindicalista, preso e torturado pela ditadura, experimenta o verso para, não só declarar o amor à filha, elaborar uma lista com desejos, sonhos e utopias
02/01/2021

A minha querida filha Rosa Maria Martinelli
16 de julho de 1970 (8º aniversário de minha filhinha)

Eu gostaria hoje…
de anunciar o fim das guerras
de anunciar o fim do analfabetismo no mundo
de anunciar o fim das fronteiras
de anunciar a cura do câncer
de anunciar a cura de todas as doenças
de anunciar o fim da fome no mundo
de anunciar o fim dos ódios raciais
de anunciar o fim dos terremotos
de anunciar o fim das indústrias de guerras
de anunciar o fim das secas no nordeste
de anunciar o fim dos desertos áridos
de anunciar o fim das enchentes
de anunciar o fim do colonialismo
de anunciar o fim da pena de morte
de anunciar o fim dos exércitos
de anunciar o fim da existência das classes sociais
de anunciar o fim das prisões (cadeias)
de anunciar o fim do explorado e do explorador
de anunciar a Paz Universal
Eu gostaria hoje…
que as flores não murchassem mais
de abraçar todos os amigos
de passear nas ruas da Lapa

Esse poema, sem título, foi publicado em 2014 no livro Infância roubada — crianças atingidas pela Ditadura Militar no Brasil, que reúne testemunhos de mais de 40 filhos de presos políticos, perseguidos e desaparecidos da ditadura, desde o golpe militar de 1964 no Brasil. Ao longo dos depoimentos, a convite da Comissão da Verdade do Estado de São Paulo, acontece uma intrincada relação entre rememoração dos fatos, enfrentamento do trauma e reflexão crítica que, décadas depois, os envolvidos se dispuseram a elaborar. Alguns títulos de capítulos, retirados das falas dos filhos, dão a dimensão dessa difícil rede entre reminiscência e presente: “Que um dia ninguém mais pense assim”; “Até hoje sou uma pessoa completamente sem identidade”; “Los niños nacen para ser felices”; “Filho dessa raça não deve nascer”; “Cuide da mãe que um dia eu volto para te buscar”. Entre os testemunhos de Infância roubada, há dois registros literários: esse poema de Raphael Martinelli, feito em forma de carta para a filha de oito anos, quando preso em 1970, e um curto conto da própria filha a quem dedicara o poema, Rosa Martinelli, intitulado Anos setenta (2008). São depoimentos de dor, sofrimento, tristeza, ausência, impossibilidade de uma vida normal.

O militante sindicalista, preso e torturado pelo regime militar, experimenta o verso para, não só declarar o amor pela filha, elaborar uma lista com desejos, sonhos, utopias de um mundo melhor, fraterno, solidário. Raphael lutou, resistiu, sonhou, atuou decisivamente para a transformação do país. Sua vasta militância se encontra na biografia Estações de ferro, publicada pelo jornalista Roberto Gicello Bastos em 2014. Sobre o ferroviário há também, de 2018, a tese Da Lapa aos porões da ditadura: as experiências de Raphael Martinelli (1939-1973), de Ana Cristina Alves Balbino, no Programa de História Social da PUC-SP. Raphael veio a falecer em fevereiro de 2020, aos 95 anos.

O poema começa com o futuro do pretérito (“gostaria”), indiciando já desde o primeiro verso a incerteza em relação ao que será anunciado. De imediato, se percebe o uso da anáfora como possível alegoria do cotidiano da prisão e, simultaneamente, figura que explicita a longa lista de desejos do sujeito encarcerado. A expressão “de anunciar o fim” (que se segue a “eu gostaria hoje”) ocorre 19 vezes, inventariando o desejo do poeta, do cidadão, do prisioneiro político para um mundo outro, por vir. O poema e o poeta ambicionam o fim de situações e condições que afetam a todos: guerras, analfabetismo, doenças, ódios, tragédias, desigualdade social, racismo, fome, etc. Só ao final, em efeito lírico de contraste, o poeta diz do desejo e da saudade “de abraçar todos os amigos / de passear nas ruas da Lapa”, bairro de São Paulo onde nasceu o líder sindical (com forte atuação no PCB, na ALN e no PT), que, aos 55 anos, se graduou em Direito.

Elemento expressivo no poema é o contraste entre a situação (melancólica) de preso e a vontade (esperançosa) de melhoria do planeta. É invejável e mesmo comovente que o preso poeta Raphael Martinelli, em condições totalmente adversas, componha um poema, movido por um espírito paterno de alegria e comemoração, pleno de esperanças e utopias em um mundo mais justo. A repetição sistemática do sintagma “de anunciar o fim” parece querer convencer ao poeta (e convencer à leitora criança, à Rosa pequenina, a que se destina) de que esses anúncios serão um dia realizados. No entanto, décadas depois, pouco do que sonhou o poeta efetivamente se concretizou na vida real.

Ainda um contraste evidente se verifica no gesto de o pai (o preso, o poeta) querer fazer e dedicar poema à filha em seu aniversário, data que mobiliza sentimentos de alegria, renovação, criação, vida, confraternização, eros. Em conflito com esses sentimentos, a condição de preso mobiliza tristeza, estagnação, destruição, morte, solidão, tânatos. O poema absorve e representa um gesto de dignidade, de grandeza, de alguém que, na contracorrente do sistema repressivo ditatorial, procura resistir como pode. E a arte é uma dessas possibilidades de resistência, não passiva, mas que parte pra cima, propositiva, rebelde, transformadora.

Após enumerar 19 desejos que, se atendidos, resolveriam gravíssimos problemas planetários (o fim de guerras, analfabetismo, doenças, fome, desastres, exploração, racismo, desigualdades, etc.), com certa sutileza o pai-poeta diz: “Eu gostaria hoje… / que as flores não murchassem mais”. A dedicatória do poema, como se sabe, é: “A minha querida filha Rosa Maria Martinelli”. Ou seja, as “flores” do poema, de caráter eminentemente universal, encontram na “Rosa” da dedicatória à filha de oito anos seu correspondente particular, singular, afetivo, único. Não “murchar” significa não perder o viço, o brilho, a exuberância, a beleza, a força, a cor, a potência, a vida: é isso que o poema do pai prisioneiro deseja para a filha em seus tocantes e enternecedores versos.

Vale frisar que a anáfora que estrutura verticalmente o poema simula o próprio trauma se realizando, pois que um dos traços constitutivos do trauma é a repetição. O poeta, preso, não pode realizar aquilo que sonha; daí, ele repete, repete, repete uma série de vontades que, exatamente por estar preso (e preso em função de ter lutado por um Brasil e um mundo mais dignos), não pode tentar fazer acontecer. Só lhe resta, nos dois versos derradeiros, querer “abraçar todos os amigos / [d]e passear nas ruas da Lapa”, isto é, poder dar e receber afetos e usufruir, com o prazer da nostalgia, daquilo de que a ditadura lhe privou: a liberdade.

Theodor Adorno, ao final de sua Teoria estética, questiona: “Mas que seria a arte enquanto historiografia, se ela se desembaraçasse da memória do sofrimento acumulado?”. A arte elabora, em sua forma, a grave e delicada relação entre trauma e memória, pois constitui uma espécie de “historiografia inconsciente” do sofrimento. Num mundo utópico, pacificado e harmonioso, sem traumas nem tragédias ou catástrofes cotidianas, a arte — a partir desse conceito radical do filósofo — nem sequer existiria, pois não haveria sofrimento a registrar.

Na Europa, nas Américas, na África, no Brasil, no presídio Tiradentes ou onde quer que o trauma se produza, o papel da memória é capital, pois por ela o passado se presentifica. Mas se as causas que permitiram a eclosão do trauma persistem é que este passado ainda não foi elaborado. É necessário cuidar, cuidarmo-nos, para que os elementos desse “indizível monstruoso” não retornem, embora estejam aí, perigosamente, a mancheias (nos indivíduos, nos hábitos, nas instituições). Hoje, a truculência, o negacionismo, o obscurantismo e a subserviência ao colonizador se entronizaram em Brasília. Como evitar que aqueles elementos monstruosos retornem, ou permaneçam, com a virulência e a barbárie que tipificam toda forma de fascismo? Talvez, com uma educação radical e maciçamente voltada para a autonomia e o esclarecimento, com acesso justo a bens materiais e simbólicos a todos, contra a coisificação do pensamento e contra a banalização da violência e da dor.

Sim, o poema de Raphael Martinelli não se quer lido a partir de uma ótica beletrista (traz versos pueris e piegas e alguns clichês; mas — e daí?). Ele é um poema de testemunho, um poema de um pai preso para uma filha criança, que faz oito anos de idade. E o que ele consegue e realiza, em plenitude, é desejar a ela, em versos, a “Paz Universal”, assim, em letra maiúscula, com aquela gravidade simbolista, para não deixar dúvida que ele, ela, nós temos uma tarefa das mais complexas e delicadas: impedir que as flores murchem. Para que a pequena Rosa dele desabroche, à maneira — como fez nosso poeta-mor — de uma rosa do povo.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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