esse jeito
de meia-armador
(cerebral
distante)
é pra disfarçar
a vontade
de ser
goleador
poeta
centroavante
Assim Guimarães Rosa finaliza seu estupendo conto-prefácio Aletria e hermenêutica, que finaliza Tutameia (1967): “O livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”. De modo similar, um poema comporta um mundo que se condensa ali em seus limites — mundo que, entretanto, se liberta, escorre, explode a cada vez que um leitor aciona os versos de tal ou qual poema. O mundo/muito que não coube no poema está, contudo, nele mesmo, à espera das conexões e, no caso em pauta, das tabelas cabíveis entre as linhas do poema e as linhas de um campo de futebol. O poema de Régis Bonvicino perpetua e mobiliza a longa e consistente (e tantas vezes polêmica) tradição entre futebol e literatura.
As três estrofes parecem, sutilmente, dar a ver as três faixas que, em geral, constituem a estrutura de um time: defesa, meio, ataque (inclusive em sua configuração clássica: 4/3/3). O formato retangular do poema também induz a uma semelhança com o formato de um campo. Há uma fluidez métrica, que vai de duas a cinco sílabas, que encena certo gingado necessário à arte ludopédica (para usar terso termo): 3532 / 532 / 423. Tal fluidez encontra correspondência no bailado das rimas: se se destaca a rima consoante, plena, entre “distante” e “centroavante”, o extrato sonoro se mantém ativo no cruzamento entre as rimas dos dez versos: êôáâ / ááê / ôéâ. A alternância entre o timbre aberto e fechado (jêito / sêr / poéta; cerebrál, distânte / disfarçár, vontáde / centroavânte) colabora para realizar, na forma mesma do poema, essa questão dialética que o constitui: o “jeito cerebral” e o “desejo impulsivo”, seja para jogar bola, seja para fazer poema. Ao que parece, o poeta-jogador (mesmo desejando o êxtase do gol) opta por ambos, sabendo-os indissociáveis.
A seu modo, o poema em foco e a tal questão dialética traduzem de forma exemplar um dilema estético e comportamental entre poetas (e críticos!) da poesia marginal, sintetizado no clássico título de livro de Paulo Leminski: o trânsito entre o capricho e o relaxo, isto é, entre a ordem, a disciplina, a razão, de um lado; e, de outro, o desbunde, o espontâneo, o popular. Noutras palavras, de um lado o meia-armador, apolíneo, pensando o jogo do poema, suas entranhas; de outro, o centroavante, dionisíaco, curtindo a delícia do efeito, do gol na rede. Régis Bonvicino, em 1978, quando publica esse poema em Régis Hotel, está no centro da problemática, assim como seu amigo curitibano. De Bicho papel (1975) até Deus devolve o revólver (2020), entre dezenas de publicações (incluindo traduções importantes), Bonvicino veio e vem firmando uma sólida e reconhecida trajetória no cenário da poesia brasileira. No prefácio ao livro recente, Alcir Pécora diz: “A qualidade da poesia, por si mesma, é extraordinária — eis o que precisa ser dito antes de mais nada”. A seleta fortuna crítica dedicada ao poeta e obra (ver: http://www.regisbonvicino.com.br/) não faz jus ainda à grandeza do conjunto.
A tradição do diálogo entre futebol e literatura ganha corpo no poema de Régis: não cabe nele, mas dele se vale. No citado “Aletria e hermenêutica”, Guimarães Rosa escreveu que o chiste nos permite “dimensões para mágicos novos sistemas de pensamento”. Sendo mágico aquilo que fascina e escapa à previsibilidade do senso comum, o chiste se assemelha ao futebol e à literatura, no sentido da surpresa do lance, da jogada. Parece que um (futebol) se joga com os pés e outro (literatura) com as mãos, mas ambos se jogam mais e melhor é com a cabeça. José Miguel Wisnik, no magistral Veneno remédio: o futebol e o Brasil (2013), é incisivo: “A hipnose de massas é um nível e um modo da relação com o futebol, mas não o único, nem o mais importante: o desenho do jogo, suas variações narrativas, os instantes de beleza plástica e de inteligência, a própria rotina e o tédio convidam o espectador esclarecido a ir além da hipnose identificatória, a sair do papel restrito do torcedor clubístico ou nacionalista, e a render-se à reversibilidade e à alternância, que consistem no seu recado mais fundo”. O recado é claro: futebol é um fenômeno complexo. Não se trata de mera alienação, joguete da indústria cultural, fábrica de ignorantes, império de machistas. (Pode ser tudo isso, e hegemonicamente é, mas não necessariamente é sempre isso.) Há, hoje, inúmeros estudos e publicações sobre futebol, assim como dezenas de Grupos de Pesquisa nas áreas de Comunicação, Educação Física, Filosofia, História, Letras e Sociologia que se dedicam a examinar as engrenagens e as múltiplas faces do popularíssimo esporte.
Luis Fernando Verissimo, colorado roxo, desde sempre falou de futebol em crônicas e contos. Mas não só. Num poema pouco conhecido, Nova canção do exílio, do mesmo e triste ano de 1978 (de Régis Hotel), engendrou elaborada paródia do romântico poema de Gonçalves Dias, em dezoito estrofes, que assim se iniciam: “Minha terra tem Palmeiras/ Coríntians, Inter e Fla,/ mas pelo que se viu na Argentina/ não jogam mais futebol por lá”. João Cabral de Melo Neto publicou vários poemas em torno do ludopédio; em 1975, no livro Museu de tudo, deu a lume o belo O futebol brasileiro evocado da Europa:
A bola não é a inimiga/ como o touro, numa corrida;/ e embora seja um utensílio/ caseiro e que se usa sem risco,/ não é o utensílio impessoal,/ sempre manso, de gesto usual:/ é um utensílio semivivo/ de reações próprias como bicho,/ e que, como bicho, é mister/ (mais que bicho, como mulher)/ usar com malícia e atenção/ dando aos pés astúcias de mão.
O poeta recifense trata a bola feito a poesia — com astúcias de mão. Recentemente, Fabiano Calixto, em Fliperama (2020), trouxe duas pérolas: O silêncio de Sócrates, em que se misturam o filósofo grego e o Magrão corinthiano, e Dadaísmo maravilhoso, em que a figura de Dadá-Dario Maravilha recebe contornos inusitados.
Rubem Fonseca, Marcelino Freire, Tostão, Chico Buarque, Flávio Carneiro, Nelson Rodrigues e Drummond são mais alguns outros feras que tabelaram com o futebol em seus textos. Há muitos outros. O poema de Régis Bonvicino captou muito bem o sentimento de quem atua no meio de campo e de quem joga no ataque: “esse jeito/ de meia-armador/ (cerebral / distante)/// é pra disfarçar/ a vontade/ de ser/// goleador/ poeta/ centroavante”. Reza a lenda que é no meio de campo que se ganha o jogo, mas o time, a torcida, o mundo pragmático diz que o que vale é bola na rede. O passe é bem-vindo, é lírico e elíptico, mas o gol é decisivo, é épico e orgástico, é quando o chiste vira riso. Aqui, o fim (o gol) se justifica no meio (de campo). Se, nas quatro linhas, nem sempre o espetáculo vale a pena, porque um Pelé e um Zico não aparecem todos os dias, no campo de papel a literatura tenta compensar aquilo que, capital, tantas vezes falta no futebol: a beleza rara de ser um mágico novo sistema de pensamento. Se “o livro pode valer pelo muito que nele não deveu caber”, de forma parecida um gol vale porque para ele acontecer muita bola deveu rolar. No caso de um poema, o poeta tem de ser, a um tempo, meia-armador e centroavante: ele cria, dá o passe, finaliza e, gol feito, produz a catártica alegria.
Em 1978, data do poema, o Brasil atravessava um período autoritário, governado por militares golpistas. Hoje, em 2021, após novo golpe travestido de impeachment, o viés autoritário também é evidente: o governo — na figura de seu presidente negacionista, ignorante, machista —, em meio a uma pandemia que, até 10 de junho, matou 480 mil brasileiros, na contramão das diretrizes científicas, estimula aglomeração e menospreza a eficácia da vacina contra o vírus. Os jogadores da seleção brasileira até ameaçaram boicotar a Copa América (ou Cova América), mas amarelaram. Para usar, com a devida licença, termos do poema, faltou-lhes uma postura “cerebral, distante”, isto é, crítica, pensante, e sobrou apenas o clichê do clichê do mundo do futebol: a vontade de aparecer, a pretexto de honrar a “pátria de chuteiras”, de fazer gol, de jogar pra TV, pra plateia, pra empresários e patrocinadores.
Comentando versos do camarada Leminski (“apagar-me/ diluir-me/ desmanchar-me/ até que depois/ de mim/ de nós/ de tudo/ não reste mais/ que o charme”), Régis Bonvicino desvela a medula do poema: “A palavra charme, derivada do latim, significa ‘fórmula encantatória’, ‘poemas’. Ao rimá-la com desmanchar-me, Leminski indica — com poder invejável de síntese — a condição marginal do poeta em nossa sociedade pós-industrial: o que nada vale mas o que tudo nomeia; aponta, também, para a desagregação do homem, enquanto indivíduo, nessa mesma sociedade que vive em função do lucro e da aparência”. No poema de Bonvicino, o poeta é um ser em conflito: embora deseje a glória do gol, sabe que ele só virá se vier com a ajuda, com o “jeito de meia-armador”. Esse jeito, esse disfarce é que levam ao leitor o charme de um gol muito, muito bem tramado.