Essa pequena, de Chico Buarque

A canção de 2011, gravada no álbum “Chico”, mostra a relação entre um homem mais velho com um mulher jovem, em uma estrutura poética elaborada
Fotos: Divulgação
01/03/2022

Meu tempo é curto, o tempo dela sobra
Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora
Temo que não dure muito a nossa novela, mas
Eu sou tão feliz com ela

Meu dia voa e ela não acorda
Vou até a esquina, ela quer ir para a Flórida
Acho que nem sei direito o que é que ela fala, mas
Não canso de contemplá-la

Feito avarento, conto os meus minutos
Cada segundo que se esvai
Cuidando dela, que anda noutro mundo
Ela que esbanja suas horas ao vento, ai

Às vezes ela pinta a boca e sai
Fique à vontade, eu digo, take your time
Sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas
O blues já valeu a pena

De que fala essa canção de Chico Buarque? Da velhice, da finitude? Da relação amorosa entre um homem mais velho e uma mulher, entre um homem e uma mulher mais nova? Do choque de gerações? De como a vida alimenta a arte que dela se alimenta? Do tempo e da transitoriedade das coisas e das pessoas? Da beleza e de suas intensidades? Da paixão? Da isomorfia entre sentimento e forma? Decerto que de tudo isso e mais.

Lançado no álbum Chico, de 2011, esse blues tem jeito e cara de poema: as estrofes em quatro quadras, os versos com sutis simetrias, as rimas surpreendentes, os cortes que tensionam letra e música, o ritmo entre o falado e o cantado que emolduram uma história que, embora bastante conhecida, comumente chama a atenção da opinião pública e atrai comentários de toda ordem, sobretudo moralistas, do tipo vigiar e punir. Nessa canção e nesse álbum, Chico privilegia, como vinha e vem fazendo há tempos, composições mais líricas, ligadas ao cotidiano e aos amores. O contexto ditatorial que deu base a canções engajadas e de protesto havia ficado para trás. (Em 2011, era difícil imaginar que um estúpido governo de ultradireita estaria no poder uma década depois.) Ainda assim, como aponta Marcelo Moutinho em comentário ao disco (Chico x Chico), a faixa Sinhá, em parceria com João Bosco, que encerra o conjunto, conta a história de um escravo barbaramente torturado por ter visto nua a senhora do engenho se banhando no açude.

Lendo tão somente a letra do poema Essa pequena, sem o amparo de violão, violino, baixo e piano, além da voz arrastada de Chico, não se percebe o tom melancólico tradicional do blues, tom que no entanto é quebrado pelo sentido paródico e bem-humorado da letra, assim como pelo final que, se não prevê um happy end romântico para os amantes, afirma, a seu modo, que, se a vida é breve, a arte é longa. O desfecho do poema (da história, do blues, da canção, do caso) explora, com incomum felicidade, considerado o desgaste do uso, a proverbial expressão “valer a pena”, pois explora com igual intensidade o duplo sentido da “pena” e do “penar”, pois o amante prevê, sente que vai se afligir nessa relação, mas ter dado forma a essa “pena” (dor) por meio da “pena” (da escrita, da caneta, da arte, da música) terá valido o penar. Envolvido pelos acordes, o ouvinte provavelmente não terá se dado conta de que a pena (aflição e obra) vem da própria “pequena”, palavra e paixão. E o blues se encaixa à feição para recolher tão delicado sentimento.

O enamorado vai direto ao ponto: “Meu tempo é curto, o tempo dela sobra/ Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora/ Temo que não dure muito a nossa novela, mas/ Eu sou tão feliz com ela”. Velho, idoso, em idade avançada, de cabelo cinza, o poeta compositor sabe que não tem tempo a perder. Sua amada, jovem, todavia, tem todo um tempo à frente, com seu cabelo com exótica cor de abóbora, indiciando ousadia e liberdade. Tal qual a “pena” sai da “pequena”, do “tempo” vem o “temo(r)” da brevidade, daí a ideia de “novela”, que reúne não só o sentido de “narrativa curta” mas de “situação complicada e de difícil solução”. Mesmo assim, no verso e na canção, se destaca a conjunção “mas”, que se repetirá adiante mais vezes, afirmando — contra o senso comum, contra as adversidades, contra as diferenças (de idade, de gosto, de comportamento) — que, sim, o enamorado quer e deseja e vai viver, feito um carpe diem tardio, sua felicidade, que se traduz em curtir o instante, o presente, o amor, o canto “com ela”.

A segunda estrofe reitera a dissimetria com que encaram o tempo (“Meu dia voa e ela não acorda”) e, ademais, o espaço: enquanto ele se movimenta “até a esquina”, possivelmente cansado ou entediado, ela alça outros voos (“para a Flórida”, metáfora que remete a praia, paraíso e prazer). A própria língua com que se comunicam pode ser um entrave, pois o poeta nem “sabe direito o que é que ela fala”, no entanto (“mas”) esse ruído é superado, uma vez mais, pelo desejo de “contemplá-la”, encantado que está por sua jovial beleza. Os encontros e desencontros entre os amantes ecoam ora nas rimas consoantes (novela/ela, fala/contemplá-la, esvai/ai, pequena/pena), ora nas rimas toantes (sobra/abóbora, acorda/Flórida, sai/time) — o som e o sentido.

A consciência exacerbada, até obsessiva, do tempo que foge (tempus fugit) impregna toda a terceira estrofe, por meio da carregada aliteração nasalizante: “Feito avarENto, cONto os Meus MiNutos/ Cada segUNdo que se esvai/ CuidANdo dela, que ANda Noutro MUNdo/ Ela que esbANja suas horas ao vENto, ai”. O apaixonado e veterano compositor sabe que não pode desperdiçar minutos nem segundos, pois seu tempo se dissipa; já a jovem “esbanja horas”, pois sua medida é outra. A nasalização concentrada (EN ON UN AN AN UN AN EN) insinua o quão penoso tem sido dar conta de tanta diversidade, do que resulta o interjetivo queixume “ai”, antecipando algo do desfecho.

Desfecho que, feito um círculo, retoma imagem do começo: se o cabelo é cor de abóbora, agora a amada “pinta a boca e sai”, desacompanhada de seu cantor que, contudo, sem hesitar, lhe diz “take your time”, leve o tempo de que precisar, enquanto, quem sabe, fica a meditar e compor. A expressão em língua inglesa recupera a menção ao ruído entre ambos (“nem sei direito o que é que ela fala”), e funciona como efeito irônico, tipo “enquanto você pinta a boca e sai” eu me quedo aqui, nessa esquina, a elaborar rimas, blues e que tais. Como já dito, o penar (sofrer) na vida e no amor é que leva ao penar (escrever) o poema e a canção. Se ambas, letra e música, vêm do arrebatado compositor é porque ele quis e pôde se apaixonar, se entregar e transformar um momento em memento. Assim, aquela pequena, sua jovem namorada, agora é Essa pequena, única, faixa 3 de Chico, de 2011, cantada em quatro estrofes e, obra que é, para deleite de tantos quantos quiserem e puderem.

Entre estes, está José Miguel Wisnik, com a costumeira precisão, ao falar do “pequeno show” das rimas, do “verdadeiro virtuosismo paralelístico, dificílimo de fazer e naturalíssimo no modo como foi feito. Que dizer da rima de ‘sobra’ com ‘abóbora’, e de ‘sair’ com ‘take your time’. Que elas fazem com ‘acorda’ e ‘Flórida’ um incrível sistema de rimas toantes” (O Globo, 23 de julho de 2011), sistema ao qual se junta o show das três rimas em “mas”: semanticamente, o previsível era que as conjunções iniciassem os versos 4, 8 e 16, no entanto o cantor estende o canto dos versos 3, 7 e 15 até a palavra “mas” (a pausa, inovadora, vem depois do “mas”: nesse breve intervalo, o tempo oportuno para que o desejo se evidencie com mais força, sempre em setissílabos: “mas/ Eu sou tão feliz com ela”, “mas/ Não canso de contemplá-la”, “mas/ O blues já valeu a pena”).

Brunna Lima, em tese de 2015 na UnB, A cidade toda em contramão: uma leitura da hipermodernidade nas canções contemporâneas de Chico, tese específica sobre esse álbum de 2011, afirma: “O inusitado encontro amoroso é uma oportunidade de redescobrir o mundo, da qual fazem parte as variações entre encantamento e desencantamento, novidade e mesmice, finitude e eternidade. Ao reconhecer as condições para a consumação da relação, o eu-lírico aposta na possibilidade de ser feliz vivendo o momento, sem se ater a expectativas da eterna felicidade”. Como se o artista fosse, a um tempo, romântico e realista, ele incorpora conflitos e contradições dos quais a vida se nutre, e que se expandem ao sujeito e por conseguinte à arte. (Porque tudo é e não é.)

Deleite delicadíssimo é a crônica Um tempo sem nome, de Rosiska Darcy de Oliveira, publicada no jornal O Globo, em 21 de novembro de 2012, em que a escritora e feminista pensa a velhice, a partir da canção Essa pequena de Chico em Chico. Falando da “doce liberdade de se reinventar a cada dia”, Rosiska evidencia, com exemplos, que a ideia de velhice se transformou radicalmente nos últimos tempos: “A libido, seja por uma maior liberalização dos costumes, seja por progressos da medicina, reclama seus direitos na terceira idade com uma naturalidade que em outros tempos já foi chamada de despudor. Esmaece a fronteira entre as fases da vida. É o conceito de velhice que envelhece”. Não há por que se espantar com o homem de cabelo cinza e a pequena de cabelo abóbora, ou vice-versa: embora mais raros, a mulher de cabelo cinza e o pequeno de cabelo abóbora também se enamoram, também ficam — e também, e como, espantam. E mais espanta quando o afeto é entre cinza e cinza, ou abóbora e abóbora, feito a belíssima Bárbara, de Calabar (1972).

(Para finalizar, um parênteses: segundo dizem, Essa pequena seria uma homenagem ou alusão de Chico Buarque a sua então namorada, Thaís Gulin, bem mais nova do que o conhecido compositor, antes casado com Marieta Severo, e desde 2021 com Caroline Proner. A beleza da canção, a sutileza da letra independem dessas informações de bastidores, diríamos, “autoficcionais”. Como se sabe, a obra de Chico é repleta de personagens femininas, de diversificadíssimos matizes, além de cinza e abóbora. Para elas e para nós, uma de suas canções sussurra: “Não se afobe, não/ Que nada é pra já/ O amor não tem pressa/ Ele pode esperar em silêncio”. Take your time. Ler, ouvir, cantar Essa pequena, sem pressa, em som de blues, vale — açúcar e afeto — toda a pena.)

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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