E agora, Jose?, de Reinaldo Santos Neves

O poema do autor capixaba mostra a grandeza de um escritor injustamente pouco conhecido fora dos limites do Espírito Santo, mas que “ombreia com os maiores”
Reinaldo Santos Neves, autor do poema “E agora, Jose?”
01/01/2022

E agora, Jose? Agora em ponto, quando
tudo entre nós em -nada é consumado,
e o nosso (nosso?) affair chega a seu fim
sem ter começo, e muito menos meio,
agora é hora da pergunta intravenosa:
que que nos fica em forma de sinopse
na folha amarelada da memória?
Muito pouco ou quase nada: o visco
de gestos e palavras natimortos
e a visão de conjunto de um equívoco.
Mas ficam, como espólio, estes poemas
que, bem ou mal, eu fiz pra ti nas alvas,
tenras coxas de Madame Poesia;
é: foste cantada em verso: quem diria.

O poema acima é o último de uma série de 50 sonetos que constituem o livro Muito soneto por nada, de Reinaldo Santos Neves, publicado em 1998 (embora os poemas, diz a Nota mínima do autor, que abre o volume, tenham sido escritos entre 1988 e 1991). Ainda no capítulo de datas, é bom informar que Reinaldo completou 75 anos em dezembro de 2021 e possui uma grande e grandiosa obra — não somente da literatura capixaba, mas da literatura brasileira. Autor de muitas excelentes obras em prosa (contos, crônicas, romances), Reinaldo, aqui e ali, se aventura nos versos (na verdade, pela Editora Cândida, em 2016 publicou Poesia 64-14, com dezenas de poemas ao longo das cinco décadas contempladas). No caso, para não perder a verve, compôs 50 poemas que, ainda que autônomos, contam uma sedutora e hilária história. De certo modo, ler este último poema antes de todos os demais não deixa de ser uma espécie de spoiler.

As duas evidentes alusões a Shakespeare (Muito barulho por nada) e a Drummond (E agora, José?) já dizem bastante do protagonista não só dessa mas de toda a obra de Reinaldo Santos Neves: a própria literatura. (Não à toa, em textos e entrevistas, Reinaldo declara a todo momento seu gosto pela obra de Borges, outro obcecado pela metalinguagem.) Ou seja, mais, muito mais do que a musa Jose, é a “Madame Poesia” a estrela a seduzir, e para tanto o poeta escolheu a clássica forma do soneto, que exige de seu narrador que as peripécias do enredo se enquadrem em cálculos e esquadros. Neste e noutros sonetos, a primazia absoluta é do decassílabo (ora heroico, ora sáfico), mas, quando querem, o poeta e seu poema pulam a cerca da métrica.

Todos os 50 sonetos se dão a ver como estrofe única, feito um parágrafo, indicando, possivelmente, seu caráter narrativo. Os 14 versos de cada “parágrafo”, o título do volume e a presença da palavra “soneto” em torno de trinta vezes ao longo dos poemas do livro não deixam dúvida de que, sim, o soneto é a verdadeira Jose a ser cortejada, “cantada em verso”. A cada poema/soneto/capítulo lido, os leitores vamos percebendo que haver ou ter havido alguma Jose real não é tão relevante quanto se imaginava a princípio. Nem sequer sabemos se o nome da personagem condiz com seu nome de “pessoa física”; aliás, nem sequer sabemos se alguma pessoa, alguma situação na vida real inspirou o autor a elaborar tais poemas. (Situação semelhante se verifica no “autoficcional” romance Sueli, de 1989, em que o narrador se vê às voltas com um amor, um desejo, uma paixão não correspondidos.) Se inquirido, o autor tem autoridade para tergiversar: Jose c’est moi — mesmo que não seja.

Tal situação de incorrespondência amorosa não é exclusividade do autor de Blues for name ou Deus está doente e quer morrer, do poeta de Muito soneto por nada, do narrador de Sueli: trata-se de um tema clássico, antigo e de sempre, que faz com que os artistas se desdobrem para encontrar formas inusuais para expressar tema tão recorrente. A obra do itabirano autor do poema E agora, José, por exemplo, é atravessada por essa incorrespondência, que ele maneja, feito o poeta inventado por Reinaldo para narrar os sonetos, com certo humor e alguma melancolia: “Carlos, sossegue, o amor / é isso que você está vendo: / hoje beija, amanhã não beija, / depois de amanhã é domingo / e segunda-feira ninguém sabe / o que será.” (Não se mate, Brejo das almas). Sob tal perspectiva, mesmo o romance-mor Grande sertão: veredas pode ser entendido como um imenso monólogo em que Riobaldo pensa por que não pôde realizar seu amor, a não ser transformando-o em linguagem. “Rio, pau enorme, nosso pai”, na síntese da canção de Milton e Caetano

De modo ainda mais explícito, é o que faz esse narrador/poeta sem nome no soneto n. 28, quando, em momento tenso, extravasa:

Não penses que te quero de verdade,
por amada ou por amante ou pura-
mente concubina, só porque o digo
e assevero em dialeto de soneto.
O que faria eu de ti? Não tens qualquer
talento além do corpo, e o teu corpo
duvido que ofereça o que alardeiam
tuas campanhas de publicidade.
Te quero, na verdade, de mentira,
que é da mentira que extraio poesia,
e é no poema que minto sem perjúrio,
promovendo uma hilota a ninfa e musa.
Te quero é no poema: é no papel;
melhor do que num quarto de motel.

Neste poema 28, os artifícios da sedução ganham eco e abrigo no segundo verso, quando a repetição de “por amada” e “por amante” reverbera no adjetivo “pura” do fim do verso, que, contudo, continua abaixo, e o adjetivo “pura” se torna o advérbio “pura-/mente”. Diferentemente da comédia de Shakespeare, em que a trama de desencontros se resolve ao final, na lírica de Reinaldo o desencontro entre o poeta galanteador e a musa impossível permanece, pois que não tem começo e “muito menos meio”, só se resolvendo, como vimos, como efeito ficcional, isto é, com o desejo (libidinoso, carnal, concreto) sendo sublimado em forma de arte (metafórica, verbal, abstrata).

Em análise que fiz alhures do magnífico conto Mistério na montanha (do livro Heródoto, IV, 196. Vitória: Cousa, 2013), lancei mão de reflexão de Theodor Adorno: “Todo o artista autêntico se encontra obcecado com os seus procedimentos técnicos; o fetichismo dos meios tem também o seu momento legítimo” (Teoria estética). Se o fetiche implica um desejo fabricado pela indústria cultural, que tudo transforma em mercadoria e assim coisifica o próprio desejo, fazendo-o parecer singular quando na verdade é uma fantasia já previamente fantasiada, no entanto, quando se trata de uma obsessão do artista autêntico, “o fetichismo dos meios tem também o seu momento legítimo”. Não é aquele tipo de fetichismo que conduz à noção de l’art pour l’art, de finalidade sem fim. É legítimo porque busca, pelo caminho da obsessão, o melhor para a fatura da arte, e, por conseguinte, para o sujeito que com ela tiver contato. E este melhor, não-idêntico, busca a “arte maior”, autêntica, radical. Ou seja, em vez de o encanto desse fetiche bem específico servir para a alienação, como os demais produzidos pela cultura de massa, ele servirá para o aprimoramento de uma sensibilidade estética. O desejo da palavra justa, precisa, exata, capaz de produzir mistérios e enigmas que poderão ser solucionados, a partir dela mesma — esse fetiche de querer alguém no poema, no papel, é legítimo, é “melhor do que num quarto de motel”.

Por isso, o poeta finge desconfiar que teve um affair com a musa (“o nosso (nosso?) affair”). Aliás, já o nome da desejada ninfa carrega o fingimento em si mesmo, sendo a pergunta que abre o soneto, “E agora, Jose?”, idêntica à famosa questão do personagem drummondiano, solitário, triste, sem saída: “E agora, José?”. Já seu nome, com a simples e eficiente retirada do acento agudo, passa de masculino para feminino, mas se perpetua como signo eminentemente literário. Lembrando o famoso dito de Kafka (“Nada que não seja literatura me interessa.”), o autor de Sueli (1991) escreveu na orelha deste “romance confesso”: “A função maior do homem no mundo, a meu ver, é transformar-se em literatura”. É o que faz, livro a livro, este capixaba cuja obra, injustamente pouco conhecida fora dos limites do Espírito Santo, ombreia com os maiores, o que me fez intitular assim um livro de ensaios: Prosa sobre prosa: Machado de Assis, Guimarães Rosa, Reinaldo Santos Neves e outras ficções.

Depois de 49 sonetos, feito capítulos de uma novela, em que Jose vem sendo descrita, desenhada, comentada, inventada, cobiçada, desejada, enfim, cantada, sempre tendo um(a) rival a seu lado (a arte, a literatura, a música, o jazz, a poesia, o soneto, a forma), chegamos ao capítulo final, cujo spoiler já se deu, com a leitura do soneto n. 50, que encerra Muito soneto por nada. O poeta assume seu fetiche maior, mais intenso, mais erótico: as “alvas / tenras coxas de Madame Poesia”, sempre o alvo-mor da “cantada”, termo em geral pejorativo para “conversa sedutora que visa uma conquista” (Houaiss), mas que se reinveste de sentido civilizado (sobretudo não machista) se pensado, com o teor cômico que a ambivalência produz, como “homenageada em canto”, logo, “cantada em verso”. O corpo da Mulher (Jose ou que nome tenha) se metamorfoseia no corpo da Madame Poesia. Cantada, assim, sem assédio, em forma de soneto, quem diria, vale muito, vale o verso, vale a pena e, discordando do título do livro, vale tudo.

Wilberth Salgueiro

Poeta, crítico literário, pesquisador do CNPq e professor de literatura brasileira na UFES. Autor de A primazia do poema, Lira à brasileira: erótica, poética e política, O jogo, Micha & outros sonetos, entre outros.

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